quarta-feira, dezembro 20

O pequeno barco de velas brancas

Nasci nas Minas Gerais. Minas não tem mar. Minas tem montanhas, matas e tem céu. É aí que me sinto em casa. Uma ialorixá, sem que eu perguntasse, me revelou que meu orixá era Oxóssi, o guarda das matas. Acreditei. E, por causa disso, quase fiz uma loucura. Estava no aeroporto, vi uma loja de arte, entrei para ver, e o que vi me fascinou: uma coleção de máscaras de orixás, assombrosas, fascinantes. Entre elas, a máscara do meu orixá, Oxóssi. Perguntei o preço. Muito cara. Mas eu estava em transe, enfeitiçado. Puxei o talão de cheques. “Vou levar”, eu disse para a vendedora. “O seu cartão de embarque, por favor”, ela disse. Mostrei. “Mas o seu voo é doméstico. E essa loja só vende artigos para voos internacionais.” Saí triste, sem o meu Oxóssi.

Minas não tem mar. Lá, quem quiser navegar tem de aprender que o mar de Minas é em outro lugar.

O mar de Minas não é no mar.
O mar de Minas é no céu,
pro mundo olhar pra cima e navegar
sem nunca ter um porto onde chegar.


Acho que é por isso que em Minas nasce tanto poeta. Poeta é quem navega nos céus.

Comecei a navegar no mar de Minas quando era menino. Me deitava no capim e ficava vendo as nuvens e os urubus. Pensava poesia sem saber que era poesia. A Adélia diz que poesia é quando a gente olha para uma pedra e vê outra coisa. Como no famoso poema do Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra...” Estou certo de que essa pedra que ele via era outra coisa cujo nome ele não podia dizer. Pois eu ficava olhando para as nuvens e não via as nuvens: via navios, bichos, rostos, monstros. As nuvens me ensinaram minha primeira lição de filosofia. Elas me ensinaram a filosofia de Heráclito: “Tudo flui, nada permanece”. “Sou e não sou no que estou sendo” (Cecília). Todo ser é um permanente deixar de ser. A vida acontece morrendo. Como o rio. Como a chama.

Meus mestres navegadores eram os urubus. Desajeitados em terra, não conheço poeta que tenha falado deles com carinho. É romântico dizer da amada que ela se parece com uma garça branca. Mas quem diria que ela se parece com um urubu? Que eu saiba, somente a Cecília viu a sua beleza:

Até os urubus são belos
no largo círculo dos dias sossegados.


Urubus voam sem bater asas. Nas alturas, apenas as inclinam ligeiramente para flutuar ao sabor do vento. Voam sem fazer nada. Fazer nada é o seu jeito de fazer, para voar. Deixam-se ser levados. Flutuam ao sabor do vento. São mestres do taoísmo.

O mar de água, eu só fui ver depois que me mudei para o Rio. Debruçado na amurada de pedra da praia de Botafogo, ficava a ver os barcos de velas brancas levados pelo vento. Como as garças, voando no céu de Minas.

O mar me fascina. Mas, como não sou do mar, sou das matas, não vou. O mar me dá medo. Mar é perigo, naufrágio. Disse Fernando Pessoa, gravemente: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu...” Ele, português, sabia do que estava falando.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Sabia disso Dorival Caymi quando cantou o jangadeiro que entrou no mar e a jangada voltou só. Doce morrer no mar? Talvez. Melhor morrer no mistério indecifrável do mar que morrer as mortes banais da terra seca.

Mas o perigo não importa. O fascínio é maior. Somos os únicos seres que amam o perigo. Sabia disso a Cecília, que nasceu olhando o mar.

A solidez da terra, monótona,
parece-nos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.
Queremos sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana
que se opõe ao mesquinho formigar do mundo.


Lá está o barquinho de velas brancas, navegando no mar! Bem que ele poderia navegar só nas baías e enseadas, onde não há perigo e o mar é sempre manso. Mas não! Deixando a solidez da terra firme, ele se aventura para sentir o vento forte enfunando as velas e o salpicar da água salgada que salta da quilha contra as ondas. “Sem nunca ter um porto onde chegar”, ele navega pelo puro prazer de entrar no mar.

A vida é assim mesmo. É sempre possível deixar o barco atracado ou só navegar nas baías mansas. Aí não há perigo de naufrágio. Mas não há o prazer do calafrio e do desconhecido.

Segundo o taoísmo, a vida é assim: somos pequenos barcos de velas brancas no mar desconhecido. O remos são inúteis. A força dos elementos é maior que a nossa força. Gosto de ver os urubus voando nos prenúncios de tempestade. Eles não batem asas. Não lutam contra o vento. Flutuam, deixam-se levar. A sabedoria dos barcos a vela é a mesma sabedoria dos urubus. Brincar com vento e onda, vela e leme, e deixar-se ser levado. A sabedoria suprema não é fazer – remar –, mas não fazer nada, deixar-se levar pelo mar da vida que é mais forte. Eu nunca consegui chegar a lugar algum usando remos. Sempre fui levado por uma força mais forte que a minha razão a praias com que nunca havia sonhado. Foi assim que me tornei escritor, porque o mar foi mais forte que o meu plano de viagem.

De fato,
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


Talvez seja por isso que os navegadores navegam: porque no perigo e no abismo eles veem refletida a eternidade.

Rubem Alves, "Se eu pudesse viver minha vida novamente"

Nenhum comentário:

Postar um comentário