quarta-feira, dezembro 27

O fim da história

1.

Quando o scanner do tempo foi instalado em Genebra, em meio à euforia geral, especulou-se se acaso ele também não poderia mostrar o futuro. Bem, só mesmo leigos para ter ideias tão ingênuas. Afinal, como o pleroma poderia conhecer algo que ainda não foi criado? Saber algo sobre o futuro é tão difícil como escapulir para fora do Universo. O Universo está em expansão, assim como o tempo. Um condiciona o outro.

Todavia, podemos apontar para o fato de que o futuro não é mais o que era antigamente. Na verdade, a história teve seu fim no ano 2170. Desde meados do século XXII não aconteceu mais nada importante. Nenhum dos códigos vai além desse momento. E por quê?

É claro que continuaram a nascer novas pessoas, e que se continuou a comer, fazer a digestão, sentar diante da tela e assistir à história. Mas somente daí não surge uma nova história. Por isso, sempre se volta a reivindicar que a contagem do tempo seja abolida. Hoje em dia, tanto faz se contarmos os anos ou as contas do rosário, nenhum dos dois tem mais sentido.

Com o scanner do tempo, a história chegou a um fim. E talvez também se possa dizer o mesmo da vida. O mundo gira em falso. As pessoas grudam na cadeira e colhem a nata da história.

2.

Esse “dilema cultural” foi esboçado pela primeira vez por Nietzsche em seu ensaio “Da utilidade e da desvantagem da história para a vida” (1874, código “História da filosofia”, verbete 2916). Mais tarde Nietzsche deu a esse ensaio o título mais incisivo de “A doença histórica”, cf. verbete 2968). No prefácio, Nietzsche cita um depoimento de Goethe, no qual ele afirma abominar “tudo o que apenas me ensina sem ampliar minha atividade ou vivificá-la diretamente”. Nietzsche acrescenta que “todos nós sofremos de uma dilacerante febre histórica”.

Nietzsche, portanto, já reconhecia que a história pode representar uma ameaça à vida vivida. Em sua opinião, existe um “grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, que se dá em prejuízo do vivente e que ao final o leva à ruína, seja ele um homem ou um povo ou uma cultura”. Um excesso de história leva a que ao final a vida se corrompa e degenere, e nesse processo também a história acaba por se corromper.

Nietzsche queria combater o hegelianismo. Mas suas palavras, como crítica cultural, são bem mais atuais hoje do que em sua época. Hoje nos falta o que Nietzsche chamou de “força plástica de um indivíduo, um povo, uma cultura”.
A vida precisa de esquecimento. A saúde do homem depende de sua capacidade de esquecer. De cada ação e de cada momento de felicidade também faz parte o esquecimento. O conhecimento nunca deve se sobrepor à vida.

Há um trecho em que Nietzsche compara uma pessoa empanturrada de história a uma cobra que engoliu uma lebre e depois fica cochilando ao sol, sem conseguir se mexer.

O homem moderno, segundo Nietzsche, sofre de um enfraquecimento da personalidade. Ele se tornou um espectador lascivo e errante.

Nietzsche reporta-se a Hesíodo (700 a.C, “História da filosofia”, verbete 0017), que acreditava que a Idade de Ouro da humanidade já havia passado. Os homens estariam se tornando cada vez mais fracos. E um dia viriam ao mundo com cabelos brancos. Segundo Hesíodo, nesse momento Zeus extinguiria a humanidade.

Nietzsche via a “cultura histórica” como uma espécie de encanecimento inato. Para ele, damos a impressão de que a humanidade é velha e sua ocupação é a mesma dos anciãos: a retrospectiva. Seríamos, por assim dizer, “seres ociosos e mimados no jardim do saber”.

Podemos afirmar em sã consciência que nesse sentido o velho carrancudo foi quase um vidente. Desde sua época, muita coisa mudou. Nietzsche não viveu o desenvolvimento da tecnologia da comunicação que esbocei aqui, pois morreu em 1900, o ano em que tudo começou. Contudo, ele pressentiu o que iria acontecer.

No século XIX, ainda era comum fazer alguma coisa. Alguns poucos — devido a Nietzsche cada vez mais — subiram às tribunas desde então. Mas a maioria trabalhava. Hoje toda a humanidade está nas arquibancadas. Todos somos espectadores. E nem mais saímos para dar uma volta. Para nos deslocarmos, não precisamos nos movimentar fisicamente. E o que observamos não é o nosso presente. O que se passa nas telas de nossas casas aconteceu há milhares de anos lá fora sob o céu aberto.

3.

Foi a visão de Hegel do Espírito Absoluto que apontou para o futuro. O que Zaratustra temia aconteceu: Apoio venceu Dioniso, e hoje temos que ir a um antiquário se quisermos comprar gaze e esparadrapo.

Para Hegel, a história da humanidade era um processo no qual o espírito do mundo despertava para a consciência de si mesmo. Houve um tempo em que o espírito era uno e indivisível. O objetivo da história, porém, é o retorno do espírito a si mesmo.

Na verdade, esse retorno pode ser datado em 2120, o ano em que o scanner do tempo foi instalado. Hegel não caberia em si de alegria.
Jostein Gaarder, "O Pássaro Raro"

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