De fato, o carioca não podia pensar em outra coisa, ter entusiasmos ou entregar-se mesmo ao curso normal de suas impressões no momento angustioso em que lhe ameaçam extinguir a tradição mais profunda da cidade, a mais original e querida de todas.
O carioca é um ser resignado que vive aos 36º de temperatura, que suporta a poeira da Light, que perde dez horas, pacientemente em qualquer repartição pública onde tem caído um requerimento, que vai ali ao correio da Avenida Central por uma carta e gasta três horas a esperar que Deus o ajude com um selo, que não há jeito de receber um telegrama com menos de doze horas de atraso; que de improviso pode ser bombardeado pelo João Cândido ou por outros, que é servido por criados, cocheiros, choferes que vêm diretamente da Galiza, que agüenta todas as carestias do regime protecionista, que vai ao Lírico neste verão, que não tem água suficiente enquanto as montanhas túmidas a ofertam, que vive contente com todos os governos, que não é anarquista, que respeita a sistematização das classes, que não tem “reivindicações” a fazer; o carioca é, enfim, o ser mais paciente, mais tolerante, mais resignado do mundo.
Gentil Correa |
O carnaval entre nós deixa de ser assim a festa pagã que o cristianismo não estragou de todo – em que resta alguma vivacidade e algumas alegrias dionisíacas – para ser mais do que tudo isto: uma tradição venerável, uma festividade adorada, um hábito da sociedade que yem a significação de um desafogo na existência árida do brasileiro, que vive sem comodidade, sem dinheiro, sem orgulho, sem heroísmo, sem coisa nenhuma.
Eu, de mim, sou insuspeito, porque não morro de amores por Colombina, tanto que uso fugir discretamente da cidade para a ver de longe ou para a não ver.
Mas a multidão pensa de outro modo, e ela tem mais direitos do que qualquer um de nós, pois que ela é que sofre mais e é ela que durante os meses do ano, penando, ansiando, fazendo sacrifícios, vai acumulando economias para o carnaval, para o fazer brilhante, como uma noiva que reúne com esforço todo cabedal para a festa do casamento. Pode até dizer-se que o carnaval é a festa nupcial da população do Rio, o período em que ela se casa com a Alegria, de que anda sempre divorciada com a sua fisionomia sorumbática, com a sua gravidade, oh! a hedionda mazorrice de povo cansado, que não tem capacidade nervosa para o prazer.
E foram esses boatos de que iam proibir o carnaval – que a tanto importava o catolizá-lo – que deu preocupação e tão graves nuvens carregou no sobrolho do carioca.
Felizmente, esses boatos são mentirosos. Nem o Presidente da República quis negar a subvenção anual do estado, que é uma norma e um dever até porque corresponde a um hábito da população que vive empobrecendo para enriquecer o estado, nem o Sr. Chefe de Polícia pretende, como tão levianamente se propalou, converter Pierrô à igreja e o constranger a trocar as suas vestes frívolas pelo balandrau respeitável e obrigá-lo ao uso de óculos pretos, barbas negras, e a andar pela rua lento, conselheiral, com o passo de um senador antigo.
O Sr. Chefe de Polícia, como bom católico, não gosta de malandrices, mas também não deseja mal a esse pobre Pierrô, coitadito, que é quase um anjo do Céu, um ingênuo com a sua face branca e a sua jovialidade infantil…
Felizmente, os desmentidos são claros, positivos. Desfizeram-se os boatos. O carnaval continuará pagão; aparecerão os préstitos fulgurantes e o carioca, rejubilado desde ontem e de hoje à noite no regozijo da certeza de que o deixarão em paz, aí estará pela rua a zabumbar, a zaragalhar, a pintar o diabo.
E tu, Pierrô, desanuvia a fronte, trincoleja os seus guizos, sarabandeia, que dessa vez ainda serás rei.
Gilberto Amado
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