Aquarela de Onnalee Graham |
Com os livros, não há amabilidade. Estes amigos, se passarmos o serão com eles, é porque realmente temos vontade disso. A eles, pelo menos, muitas vezes só os deixamos a contragosto. E quando os deixamos, não temos nenhum desses pensamentos que estragam a amizade: — Que terão eles pensado de nós? — Não tivemos falta de tacto? — Teremos agradado? — nem o medo de sermos esquecidos por um deles. Todas estas agitações da amizade expiram no limiar dessa amizade pura e calma que é a leitura. Também não há deferência; só rimos com o que diz Molière na exata medida em que lhe achamos graça; quando ele nos aborrece, não temos medo de mostrar um ar aborrecido, e quando estamos decididamente fartos de estar com ele, pomo-lo no seu lugar tão bruscamente como se ele não tivesse nem gênio nem celebridade. A atmosfera desta pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra. Porque nós falamos para os outros, mas calamo-nos para conosco mesmos. É por isso que o silêncio não traz consigo, como a palavra, a marca dos nossos defeitos, das nossas caretas. Ele é puro, é verdadeiramente uma atmosfera. Entre o pensamento do autor e o nosso não interpõe elementos irredutíveis refratários ao pensamento, os nossos egoísmos diferentes. A própria linguagem do livro é pura (se o livro for digno desta palavra), tornada transparente pelo pensamento do autor que dele retirou tudo quanto não fosse ele próprio até o transformar na sua imagem fiel; cada uma das frases, no fundo, semelhante às outras, dado que todas são ditas através da inflexão única de uma personalidade; daí uma espécie de continuidade, que as relações da vida e o que estas associam ao pensamento como elementos que lhe são estranhos excluem e que permite muito rapidamente seguir o próprio fio do pensamento do autor, os traços da sua fisionomia que se refletem neste espelho tranquilo. Sabemos apreciar os traços de cada um deles sem termos necessidade de que sejam admiráveis, pois é um grande prazer para o espírito distinguir essas pinturas profundas e amar com uma amizade sem egoísmo, sem frases, como dentro de nós mesmos.
Marcel Proust(1871 - 1922)
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