Hoje quem mais reinventa o português são os brasileiros e os africanos
Perguntei à Siri, a sempre imprevisível assistente virtual do iPhone, se acreditava em Deus. Respondeu-me que enquanto nós, humanos, precisamos de religiões, ela apenas necessita de silício. Repeti a pergunta. A inefável e insubstancial personagem abandonou o sarcasmo e optou pela poesia: “Tudo são mistérios!”, disse-me.
Acontece-me durante algumas entrevistas pensar na Siri. Há poucos dias, por exemplo, uma jornalista telefonou-me, querendo saber como eu classificaria a língua em que escrevo: “Os seus romances decorrem em diferentes cidades de língua portuguesa, Luanda, Rio de Janeiro, Lisboa, até mesmo em Pangim, a capital de Goa (na Índia). Afinal, que língua portuguesa é a sua?”
Que língua portuguesa é a minha?!
Pensei em responder ao estilo da Siri: “Querida, tudo são mistérios!” Infelizmente faltou-me a coragem e tropecei na resposta. Contudo, fiquei a pensar naquilo. Algumas coisas eu sei. Sei, desde logo, que a minha língua não está limitada por fronteiras políticas ou geográficas. O português que me interessa é o português total.
Há alguns anos, em Lisboa, num evento em que se discutia pela milésima vez a reforma ortográfica, um sujeito ergueu-se aos berros, no fundo da sala: “A língua é nossa!” Não fiquei surpreendido. A verdade é que ainda persiste em Portugal uma certa saudade imperial e, sobretudo, uma enorme ignorância no que diz respeito à história do próprio idioma. É sempre bom recordar que antes de Portugal colonizar África, os africanos colonizaram a Península Ibérica durante oitocentos anos. A língua portuguesa deve muito ao árabe. A partir do século XVI, com a expansão portuguesa, a língua começa a enriquecer-se, incorporando vocábulos bantos e ameríndios, expressões e provérbios dessas línguas, etc.. A minha língua é esta criação coletiva de brasileiros, angolanos, portugueses, moçambicanos, caboverdeanos, santomenses, guineenses e timorenses. A minha língua é uma mulata feliz, fértil e generosa, que namorou com o tupi e com o ioruba, e ainda hoje se entrega alegremente ao quimbundo, ao quicongo ou ao ronga, se deixando engravidar por todos esses idiomas.
“Da minha língua vê-se o mar”, escreveu o romancista português Vergílio Ferreira: “Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.” Vergílio Ferreira tem razão. A presença do mar, e essa inquietação criativa são parte da natureza da nossa língua.
Creio não ofender ninguém se disser que no mundo de hoje quem mais reinventa o português são os brasileiros e os africanos. Os brasileiros por razões óbvias — constituem a esmagadora maioria dos falantes; os africanos porque em Angola ou Moçambique a língua portuguesa convive de forma dinâmica com outros idiomas. Os novos falantes do português são provenientes dessas línguas. Todos os dias levam alguma coisa delas para o português. Além disso têm com o português uma relação de esplêndida irreverência. Falam um português sem culpa e sem gravata.
Na última década a juventude portuguesa vem adotando com entusiasmo o português angolano. É um movimento que apenas surpreende os desatentos. Os africanos dominam hoje a cultura popular em Portugal. A fadista mais famosa, Mariza, é uma mulata moçambicana. A mais poderosa e internacional banda portuguesa, os Buraka Som Sistema — grupo que se tornou conhecido pela releitura do kuduru das favelas de Luanda — contam com angolanos entre os seus membros. O cantor mais popular do momento é o angolano Anselmo Ralph. Nos últimos anos, Anselmo transformou-se num extraordinário fenômeno de público, vendendo milhares de discos e enchendo as maiores salas de espetáculo de Portugal, como o belo Pavilhão Atlântico, com capacidade para receber 20 mil pessoas. Assisti a um destes shows. Portugueses a africanos, muito mais portugueses do que africanos, dançavam em conjunto. Em Lisboa, e um pouco por todo o país, multiplicam-se as escolas de kizomba.
Viajantes ingleses, holandeses e alemães, que visitaram Lisboa ao longo dos séculos XVI e XVII, manifestaram-se impressionados com a quantidade de negros nas ruas da cidade. “Lisboa é uma cidade africana” — diziam. Voltou a ser, e mais exuberante do que nunca.
A minha língua é o resultado de toda esta festa. É um brinquedo de criar prodígios. Veja-se o que fizeram, brincando com ela, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luandino Vieira ou Mia Couto — e um abraço ao Mia, já agora, que está entre os dez finalistas do Man Booker International Prize, um dos mais importantes prêmios literários do mundo.
Leia mais o artigo de José Eduardo Agualusa
Nenhum comentário:
Postar um comentário