quinta-feira, março 26

A limpeza da biblioteca


Dramaturgo e político português, Amílcar da Silva Ramada Curto (1886-1961) em uma das suas crônicas do “Diário de José Maria”, fala das férias que o “professor livre de ensino secundário, floricultor e filósofo” tirou, em 35 anos, e aproveitou para cuidar da biblioteca. “Os meus livros! Durante estes anos todos, consegui alinhar uns mil volumes, que fazem vista nas três velhas estantes de mogno. Há de tudo: literatura, viagens, livros de estampas reproduzindo as obras dos museus. Poetas tenho os clássicos e os românticos: o Hugo, o Musset, e todos os nossos – do tempo em que nós tínhamos poetas que se entendiam e escreviam em verso”.

José Maria, com o “casaquito de seda crua, que um discípulo grato e amigo me mandou da Índia, e estou fresco e bem disposto”, resolveu que não faria festas ao canário ou se renderia ao companheiro: um cão fox. “(...) Me levantei hoje com a intenção decidida de arrumar as minhas estantes, que têm muitos volumes fora do seu lugar, estão vergonhosamente desordenadas.

(...) Gosto de arrumar livros. Levo um tempo infinito. Tiro um da prateleira, abro-o e, irresistivelmente, leio umas linhas. Atrás das linhas, se o assunto me interessa vai uma página. Sem eu dar por isso, encontro-me sentado, a ler, atentamente, com as estantes mais desarrumadas, à espera que eu continue.

Este que me veio agora à mão, por exemplo. Comprei-o no meu quinto ano em Coimbra, tem sinais de leitura atenta, notas a lápis. Sento-me numa cadeira ao pé do Bob (o cachorro), para lhe deixar a minha, e continuo a leitura”

A arrumação das estantes não se completa e José Maria, em “O meu cão, os meus livros e uma nuvem”, acaba por divagar em considerações sobre os livros que ia retirando para limpeza. Ao fim, se rende ao almoço e ao sol lisboeta. “E olhando para o céu verifiquei que a nuvenzita branca se desfizera – como se desfazem todas as certezas humanas”. Inclusive as de muito se programar uma limpeza na biblioteca.

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