O título vai entre aspas, assim mesmo, em latim, porque não é meu: é o título de um pequeno livro que recebi de Umberto Eco, um pequeno tratado sobre bibliotecas. Como ele, tenho conhecido algumas bibliotecas. A palavra como todos sabem é grega – de biblos -livro, e theke - armário e, pois, significa "armário de livros". Talvez fosse melhor chamá-Ias de bibliodaimos - armários dos demônios.
A primeira biblioteca que freqüentei não era pública nem particular: era a biblioteca monástica do convento em que me formei, com livros guardados em severos armários holandeses de pinho de riga. Algumas prateleiras eram trancadas a chave e seu acesso era proibido aos consultantes comuns. Essa parte da biblioteca era oficialmente denominada inferno pelos padres professores. Guardava os livros cuja leitura podia constituir pecado mortal.
Parti para a depravação de possuir a minha própria biblioteca: já tinha uns 600 livros aos 18 anos, quando a polícia do Estado Novo me seqüestrou e me roubou a biblioteca inteira. Reincidi. Aos 25 anos tinha de novo, duramente comprados, às vezes docemente furtados, uns 1500 livros, na maioria edições francesas, alemãs, italianas, espanholas. A polícia também reincidiu. Levou, inclusive, uma lista de livros que eu encomendara, onde constavam os nomes de Nietzsche, Holderlin e Gôngora. Fui torturado uma noite inteira no DOPS, com a presença de um coronel enfurecido, que me exigia o endereço de Nietzche, de Holderlin e de Gôngora. Eu não sabia. Posto em liberdade, tomei a providência, por segurança, de me informarem que cemitério estão enterrados aqueles delinqüentes. Até visitei seus túmulos. Nunca se sabe. Posso ser preso de novo e escaparei da tortura delatando esses cúmplices em suas covas perigosas, mas isso também é outra história.
A biblioteca foi, assim, para mim, a árvore da ciência do bem e do mal. Filho de Eva, a tentação do saber também me perdeu para sempre como ao imprudente casal do paraíso terrestre. Depois, me encontrei com Mallarmé: Ia chair est triste - helàs! - et j' ai lu tous les livres. Perdido no mundo, minhas primeiras incursões pecaminosas na grande cidade foram à biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura, a uma outra na Avenida Rio Branco, que não existe mais, e que acho que era do Liceu de Artes e Ofícios. E, naturalmente, ao palácio babilônico da Biblioteca Nacional, onde minha primeira aventura foram as odes de Anacreonte em grego. Ainda hoje sei algumas delas de cor.
Gerardo Mello Mourão (Folha Proler, setembro de 1999)
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