Christian Krohg, Villa Britannia, Bélgica, 1885 |
quarta-feira, julho 29
Mundo sem livro?
Deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. De maneira que muito antes da escrita vem a leitura. Um leitor tem uma vida muito mais longa que outras pessoas, porque não morre antes de acabar o livro que está lendo.Rosa Montero
Estranho destino
Estranhos destinos dos livros... Eles ali estão, nas vitrinas ou nas prateleiras da livrarias, nos comentários dos críticos, nos anúncios dos jornais e revistas, nas sugestões dos amigos que os leram antes, e, no entanto, quantos deles não passam ou não passaram despercebidos, alheios aos nossos interesses ou à nossa curiosidade imediata de tentaculares leitores, atraídos ou envolvidos noutros caminhos , por outros livros, outros escritores. Quantos não nos dizem nada à primeira vista, restamos distantes ou indiferentes aos seus títulos, aos nomes dos seus autores, ou, às vezes, vamos adiando o seu conhecimento, por desfastio ou inércia, por temor, talvez, por defesa prévia, contra possíveis decepções ou desencantos – e também a perspectiva de que eles não nos acrescentarão nada - ou ainda de que não serão, certamente, como os “nossos” livros, os livros que escolhemos, os livros que amamos, os livros e autores a que já nos habituamos, por intimidades anteriores, por afinidades, por gozos - tornados, assim, nossos companheiros de indagações e respostas, de diálogos, afinal, e no entanto...
Américo de Oliveira Costa
terça-feira, julho 28
O livro muda o mundo
Giovana Mediros |
Uma vez eu estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de prisões particulares – uma ampla indústria em crescimento nos Estados Unidos. A indústria de prisões precisa planejar o seu futuro crescimento – quantas celas precisarão? Quantos prisioneiros teremos daqui a 15 anos? E eles descobriram que poderiam prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples, baseado em perguntar a porcentagem de crianças entre 10 e 11 anos que não conseguiam ler. E certamente não conseguiam ler por prazerNeil Gaiman
Será o Benedito!
A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde agüentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:
— O hôme da cidade, chi!...
Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar.
- Mas será o Benedito! Não é assim, moço!
Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.
- O que é isso?...
- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.
- Será o Benedito...
E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.
Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho:
- Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.
E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”. E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui.
Mário de Andrade (1939)
— O hôme da cidade, chi!...
Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar.
***
Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:- Mas será o Benedito! Não é assim, moço!
Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.
***
Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele, ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a tuberculose que..."- O que é isso?...
- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.
- Será o Benedito...
E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.
Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho:
- Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.
E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”. E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui.
Mário de Andrade (1939)
segunda-feira, julho 27
O poder do livro
Sergei Arsenevich Vinogradov A presença de livros, de muitos livros, tem um poder calmante, como flutuar num oceano pacífico, olhando o céu, numa tarde de solJosé Eduardo Agualusa
Assim começa o livro...
Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas. Winston Smith, queixo enfado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele.
No interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que de alguma forma dizia respeito à produção de ferro-gusa. A voz saía de uma placa oblonga de metal semelhante a um espelho fosco, integrada à superfície da parede da direita. Winston girou um interruptor e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras continuassem inteligíveis. O volume do instrumento (chamava-se teletela) podia ser regulado, mas não havia como desligá-lo completamente. Winston foi para junto da janela: o macacão azul usado como uniforme do Partido não fazia mais que enfatizar a magreza de seu corpo frágil, miúdo. Seu cabelo era muito claro, o rosto naturalmente sanguíneo, a pele áspera por causa do sabão ordinário, das navalhas cegas e do frio do inverno que pouco antes chegara ao fim.
Fora, mesmo visto através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Lá embaixo, na rua, pequenos rodamoinhos de vento formavam espirais de poeira e papel picado e, embora o sol brilhasse e o céu fosse de um azul áspero, a impressão que se tinha era de que não havia cor em coisa alguma a não ser nos pôsteres colados por toda parte. Não havia lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto de bigode negro a olhar para baixo. Na fachada da casa logo do outro lado da rua, via-se um deles. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO E M VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. Embaixo, no nível da rua, outro pôster, esse com um dos cantos rasgado, adejava operosamente ao vento, ora encobrindo, ora expondo uma palavra solitária: Socing. Ao longe, um helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma libélula e voltou a afastar-se a grande velocidade, fazendo uma curva. Era a patrulha policial, bisbilhotando pelas janelas das pessoas. As patrulhas, contudo, não eram um problema. O único problema era a Polícia das Ideias.
domingo, julho 26
O bom melhora a cada leitura
Camille Lane Já deve ter sido dito, mas não há mal em repetir: o livro banal é o que perde à segunda leitura;o bom livro é o que ganhaVergílio Ferreira
Aprendendo com os mestres
Achille Beltrame copiando e desenhando, Walter Molino (1915-1997) |
O conselho universal aos que querem se tornar escritores é conhecido: leia. Leia sempre. Leia bons escritores. Leia maus escritores. Perceba a diferença entre eles. Imite. Tente escrever no estilo de algum escritor de que você gosta; tente o estilo de quem você não gosta. Aprenda as diferenças. É claro que o conteúdo é importante. Esse não se aprende. Mas a técnica pode ser aprendida. É um caminho solitário e tortuoso. Solitário principalmente.
Meu avô se dedicou à escrita além da advocacia. Contribuiu por algum tempo com colunas semanais para jornais brasileiros, e vendo que eu, criança, havia mostrado uma certa habilidade para a palavra escrita, recomendou que eu copiasse um, dois, ou três parágrafos, um conto ou uma crônica de que eu gostasse; que eu simplesmente copiasse o texto, para aprender melhor como o escritor chegou ao resultado que havia me encantado.
Por isso mesmo, através dos anos, acabei com uma quantidade grande de trechos de livros copiados numa série de cadernos simples com anotações bibliográficas em geral incompletas. Esse hábito me persegue até hoje. Este blog se assemelha um tanto a esses meus cadernos. Mas ainda me surpreendo quando escolho um trecho, que me encantou, porque descubro o uso de uma palavra que passou despercebida na leitura inicial ou uma colocação de vírgulas, dois pontos, ou divisão de parágrafos que eu não teria notado se não tivesse tido o cuidado de copiar o texto. Esse hábito me tornou uma leitora cuidadosa.
O mesmo conselho foi dado aos pintores. Tradicionalmente, desde a idade média, quando eram treinados nas Guildas de São Lucas, pintores que demonstravam habilidades, copiavam seus mestres. Começando aos onze ou doze anos, dedicavam-se primeiro à fabricação de tintas, aprendendo a ralar as pedras coloridas usadas pelos mestres. Esse longo aprendizado – de muitos anos — ensinava todos os truques do ofício até o jovem ter o direito de pintar os ramos de flores em uma tela do pintor responsável pela sua educação, ou a paisagem de fundo. Era uma escola rígida, o ofício era levado a sério. E só era permitido que alguém se chamasse pintor depois de passar por tal sistema. Dentro desse esquema, copiar o mestre era comum e um mérito.
Por isso mesmo, através dos anos, acabei com uma quantidade grande de trechos de livros copiados numa série de cadernos simples com anotações bibliográficas em geral incompletas. Esse hábito me persegue até hoje. Este blog se assemelha um tanto a esses meus cadernos. Mas ainda me surpreendo quando escolho um trecho, que me encantou, porque descubro o uso de uma palavra que passou despercebida na leitura inicial ou uma colocação de vírgulas, dois pontos, ou divisão de parágrafos que eu não teria notado se não tivesse tido o cuidado de copiar o texto. Esse hábito me tornou uma leitora cuidadosa.
O mesmo conselho foi dado aos pintores. Tradicionalmente, desde a idade média, quando eram treinados nas Guildas de São Lucas, pintores que demonstravam habilidades, copiavam seus mestres. Começando aos onze ou doze anos, dedicavam-se primeiro à fabricação de tintas, aprendendo a ralar as pedras coloridas usadas pelos mestres. Esse longo aprendizado – de muitos anos — ensinava todos os truques do ofício até o jovem ter o direito de pintar os ramos de flores em uma tela do pintor responsável pela sua educação, ou a paisagem de fundo. Era uma escola rígida, o ofício era levado a sério. E só era permitido que alguém se chamasse pintor depois de passar por tal sistema. Dentro desse esquema, copiar o mestre era comum e um mérito.
Assim começa o livro...
“Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre... Sinto no corpo o suor da agonia”, é o que se lê pouco antes do fim. Na margem da última página, estas palavras: “meia-noite e pouco”.
Talvez tenha morrido naquela madrugada, mas eu não quis saber a data nem a hora: detalhes que não interessam. Uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a for- ça de um fogo escondido pela infância e pela juventude. Ainda guardo seu caderno com desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num cartão-postal de Londres: “Ou a obediência estúpida, ou a revolta”.
O leitor multimídia
Há alguns anos gravei um audiobook lendo “Vale tudo — O som e a fúria de Tim Maia" e vislumbrei novas possibilidades de formatos multimídia. Se em vez de apenas um narrador, tivéssemos também as músicas, os vídeos, as fotos, os documentos, no momento em que eles são mencionados na narrativa, seria muito melhor.
Melhor ainda se tivéssemos ruídos, de rua, de festas, de brigas, tiros, e uma trilha sonora instrumental pontuando as ações. E vozes de atores lendo as falas dos personagens. Mas logo desanimei: estava inventando o radioteatro com um século de atraso...
Mas lendo o romance “As mulheres do meu pai", de José Eduardo Agualusa, um vibrante road-livro sobre mulheres e música que percorre o sul da África, com suas cidades e suas praias, sua cultura ancestral e seu presente conturbado, várias vezes parei de ler para abrir o Google Image e ver os cenários naturais e urbanos da história.
Não que a narrativa de Agualusa seja insuficiente; ela instiga o bastante para tocar a história para frente, sem gastar palavras para descrever locações como o fabuloso Hotel Polana, em Maputo, capital de Moçambique, por onde passa a equipe que está fazendo um documentário sobre o lendário músico angolano Faustino Manso, suas sete mulheres e dezoito filhos.
Quanta beleza e surpresa nos cenários de Angola, Moçambique e África do Sul, onde se desenvolve a ficção de Agualusa, uma teia de encontros e desencontros de novos portugueses de origem africana em busca de suas raízes, de africanos modernos em busca do futuro, de paixões e acasos se entrelaçando nas ruas perigosas de Luanda, Maputo e Cape Town.
Claro que o livro tem o mesmo valor literário sem as imagens que vi, em detalhes, ampliadas, e sem as músicas do Duo Ouro Negro que ouvi no You Tube, o primeiro grande sucesso internacional da África Negra nos anos 50, em que Agualusa se inspirou para criar Faustino Manso. Mas ler a história ouvindo aquelas músicas e vendo aqueles cenários maravilhosos, além do que o leitor cria em sua cabeça, é uma nova e deliciosa forma de ler na era digital. E talvez gere uma nova forma de escrever.
Melhor ainda se tivéssemos ruídos, de rua, de festas, de brigas, tiros, e uma trilha sonora instrumental pontuando as ações. E vozes de atores lendo as falas dos personagens. Mas logo desanimei: estava inventando o radioteatro com um século de atraso...
Não que a narrativa de Agualusa seja insuficiente; ela instiga o bastante para tocar a história para frente, sem gastar palavras para descrever locações como o fabuloso Hotel Polana, em Maputo, capital de Moçambique, por onde passa a equipe que está fazendo um documentário sobre o lendário músico angolano Faustino Manso, suas sete mulheres e dezoito filhos.
Quanta beleza e surpresa nos cenários de Angola, Moçambique e África do Sul, onde se desenvolve a ficção de Agualusa, uma teia de encontros e desencontros de novos portugueses de origem africana em busca de suas raízes, de africanos modernos em busca do futuro, de paixões e acasos se entrelaçando nas ruas perigosas de Luanda, Maputo e Cape Town.
Claro que o livro tem o mesmo valor literário sem as imagens que vi, em detalhes, ampliadas, e sem as músicas do Duo Ouro Negro que ouvi no You Tube, o primeiro grande sucesso internacional da África Negra nos anos 50, em que Agualusa se inspirou para criar Faustino Manso. Mas ler a história ouvindo aquelas músicas e vendo aqueles cenários maravilhosos, além do que o leitor cria em sua cabeça, é uma nova e deliciosa forma de ler na era digital. E talvez gere uma nova forma de escrever.
sábado, julho 25
Há livros e livros
Uma biblioteca que salvou vila do interior na China
A biblioteca é uma ferramenta para atrair as pessoas para a vilaLi Xiaodong, professor da arquitetura da Universidade de Tsinghua, em Pequim
Jiaojiehe, China.
Escondida entre castanheiras, nogueiras e pessegueiros em um vale cercado de
montanhas altas e irregulares, a aldeia de Jiaojiehe sofre por estar próxima da
capital do país. Os jovens seguem em debandada para a cidade grande, deixando
os idosos para trás, solitários e pobres.
Na China atual, pequenas cidades como essa geralmente tentam desenvolver uma sensação de bem-estar, abrindo, por exemplo, uma nova clínica médica ou modernizando o abastecimento de água.
Porém, Li Xiaodong, premiado arquiteto que une o tradicional design chinês aos temas ocidentais, tinha uma ideia diferente para Jiaojiehe. Ele ficou fascinado com o potencial dos recursos naturais abundantes da aldeia, os galhos de seus milhares de árvores que os habitantes usam como combustível.
Então, ele construiu uma biblioteca – com um toque diferente. Em sua base, há uma caixa de aço e vidro inspirada no plano aberto de Philip Johnson da década de 50, mas suas paredes externas e o telhado são cobertos com galhos de árvores frutíferas.
As varas finas estão dispostas em fileiras verticais, e suas formas irregulares permitem que a luz natural penetre na sala de leitura da biblioteca, mantendo o edifício fresco no verão e aconchegante no inverno. Elas também agem como uma espécie de camuflagem, deixando a forma retangular da biblioteca quase imperceptível na paisagem para os visitantes que se aproximam da vila pela estrada estreita e sinuosa.
Na China atual, pequenas cidades como essa geralmente tentam desenvolver uma sensação de bem-estar, abrindo, por exemplo, uma nova clínica médica ou modernizando o abastecimento de água.
Porém, Li Xiaodong, premiado arquiteto que une o tradicional design chinês aos temas ocidentais, tinha uma ideia diferente para Jiaojiehe. Ele ficou fascinado com o potencial dos recursos naturais abundantes da aldeia, os galhos de seus milhares de árvores que os habitantes usam como combustível.
Então, ele construiu uma biblioteca – com um toque diferente. Em sua base, há uma caixa de aço e vidro inspirada no plano aberto de Philip Johnson da década de 50, mas suas paredes externas e o telhado são cobertos com galhos de árvores frutíferas.
As varas finas estão dispostas em fileiras verticais, e suas formas irregulares permitem que a luz natural penetre na sala de leitura da biblioteca, mantendo o edifício fresco no verão e aconchegante no inverno. Elas também agem como uma espécie de camuflagem, deixando a forma retangular da biblioteca quase imperceptível na paisagem para os visitantes que se aproximam da vila pela estrada estreita e sinuosa.
Porém, atender às necessidades de leitura das aproximadamente 50 famílias que permanecem na aldeia é algo secundário. O propósito do edifício é basicamente atrair turistas de Pequim, ansiosos por escapar da poluição e sujeira perpétuas da cidade em busca de um pouco de beleza e tranquilidade.
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sexta-feira, julho 24
Assim começa o livro...
Aos quinze anos, minha avó tornou-se concubina de um general-caudilho, o chefe de polícia de um precário governo nacional da China. O ano era 1924, e a China estava tomada pelo caos. Grande parte dela, inclusive a Manchúria, onde vivia minha avó, era governada por caudilhos. A ligação foi acertada pelo pai dela, um funcionário da polícia na cidade provincial de Yixian, no sudoeste da Manchúria, a uns cento e cinqüenta quilômetros da Grande Muralha e trezentos e oitenta a nordeste de Pequim.
Como a maioria das cidadezinhas da China, Yixian fora construída como uma fortaleza. Era cercada por muros erguidos durante a dinastia Tang (618-907 d.C.), de nove metros e setenta e cinco de altura e três metros e sessenta de espessura, encimados por ameias e pontilhados por dezesseis fortes a intervalos regulares, e largos o suficiente para se cavalgar com facilidade em seu topo. Quatro portas davam para o interior da cidade, uma em cada ponto cardeal, com portões externos de proteção, e as fortificações eram cercadas por um profundo fosso.
Meu bisavô, Yang Ru-shan, nasceu em 1894, quando toda a China era governada por um imperador que vivia em Pequim. A família imperial era manchu, dos manchus que, em 1644, haviam conquistado a China a partir da Manchúria, a base deles. Os Yang eram han, chineses étnicos, e tinham se aventurado ao norte da Grande Muralha em busca de oportunidades.
Meu bisavô era filho único, o que o fazia de suprema importância para a família. Só um filho podia perpetuar o nome da família - sem ele, ela chegaria ao fim, o que, para os chineses, equivalia à maior traição possível aos ancestrais.
Mandaram-no para uma boa escola. O objetivo era que passasse nos exames para tornar-se mandarim, um funcionário, aspiração da maioria dos homens chineses da época. Ser funcionário dava poder, e o poder dava dinheiro. Sem poder ou dinheiro, nenhum chinês podia sentir-se a salvo das depredações do oficialismo ou da violência cega. Jamais houvera um sistema legal eficiente. A justiça era arbitrária, e a crueldade, institucionalizada e caprichosa. Um funcionário com poder era a lei. Tornar-se mandarim era a única forma de o filho de uma família não nobre escapar desse círculo de injustiça e medo. O pai de Yang decidira que o filho não o seguiria na empresa da família, de fabricação de feltro, e sacrificou-se a si e à família para pagar a educação do filho. As mulheres aceitavam costura para os marinheiros e fabricantes de roupas locais, mourejando até tarde da noite. Para economizar dinheiro, deixavam a chama dos candeeiros de óleo no mínimo absoluto, causando danos permanentes aos olhos. As juntas dos dedos inchavam com as longas horas de trabalho.
Como a maioria das cidadezinhas da China, Yixian fora construída como uma fortaleza. Era cercada por muros erguidos durante a dinastia Tang (618-907 d.C.), de nove metros e setenta e cinco de altura e três metros e sessenta de espessura, encimados por ameias e pontilhados por dezesseis fortes a intervalos regulares, e largos o suficiente para se cavalgar com facilidade em seu topo. Quatro portas davam para o interior da cidade, uma em cada ponto cardeal, com portões externos de proteção, e as fortificações eram cercadas por um profundo fosso.
O traço mais conspícuo da cidade era uma torre de campanário alta, ricamente decorada, de pedra parda escura, construída no século VI, quando o budismo fora introduzido na área. Toda noite o sino tocava, para marcar a hora, e a torre também funcionava como alarme de incêndio e inundação. Yixian era a sede de um próspero mercado. As planícies em volta produziam algodão, milho, sorgo, soja, gergelim, peras, maçãs e uvas. Nas áreas de capim e nas colinas a oeste, os agricultores punham a pastar carneiros e bois.
Meu bisavô, Yang Ru-shan, nasceu em 1894, quando toda a China era governada por um imperador que vivia em Pequim. A família imperial era manchu, dos manchus que, em 1644, haviam conquistado a China a partir da Manchúria, a base deles. Os Yang eram han, chineses étnicos, e tinham se aventurado ao norte da Grande Muralha em busca de oportunidades.
Meu bisavô era filho único, o que o fazia de suprema importância para a família. Só um filho podia perpetuar o nome da família - sem ele, ela chegaria ao fim, o que, para os chineses, equivalia à maior traição possível aos ancestrais.
Mandaram-no para uma boa escola. O objetivo era que passasse nos exames para tornar-se mandarim, um funcionário, aspiração da maioria dos homens chineses da época. Ser funcionário dava poder, e o poder dava dinheiro. Sem poder ou dinheiro, nenhum chinês podia sentir-se a salvo das depredações do oficialismo ou da violência cega. Jamais houvera um sistema legal eficiente. A justiça era arbitrária, e a crueldade, institucionalizada e caprichosa. Um funcionário com poder era a lei. Tornar-se mandarim era a única forma de o filho de uma família não nobre escapar desse círculo de injustiça e medo. O pai de Yang decidira que o filho não o seguiria na empresa da família, de fabricação de feltro, e sacrificou-se a si e à família para pagar a educação do filho. As mulheres aceitavam costura para os marinheiros e fabricantes de roupas locais, mourejando até tarde da noite. Para economizar dinheiro, deixavam a chama dos candeeiros de óleo no mínimo absoluto, causando danos permanentes aos olhos. As juntas dos dedos inchavam com as longas horas de trabalho.
Conselho de poeta
Carpinejar em novo livro
O fim de um relacionamento pode trazer dores e angústias, mas também inspiração. Pelo menos é assim para Fabrício Carpinejar, que lançou esta semana "Para Onde Vai o Amor?" (Bertrand Brasil), livro que tem o esclarecedor subtítulo de “Crônicas da Fossa”. O volume reúne 58 textos curtos, geralmente com até duas páginas, publicados em ZH, além de alguns inéditos. O tema são as relações amorosas – e também o fim delas.
– O livro fala de todas as fases do fim dos relacionamentos, como o ódio, a tentativa de vingança, a vontade de dizer “dane-se”, o sentimento de querer voltar. A gente se separa mas não se desliga, há uma urgência de resolver a vida com agilidade, de não passar pelo luto do fim dos relacionamentos – explica o autor.
PARA ONDE VAI O AMOR?
Quando deixo de amar, não fico aliviado, eu fico triste. Porque é se despedir de uma grande parte da própria vida, é se desapegar de um sentimento que julgava único.É triste deixar de amar. Profundamente triste. É sacrificar a personalidade, é nunca mais usar um jeito de reagir e de falar, nunca mais usar um jeito de beijar e de abraçar, nunca mais usar um jeito de transar e ser feliz.
Passo a pensar: onde foi parar todo aquele amor? Onde é que ele se escondeu? Será que desapareceu ou apenas está dormindo?
Será que terminou mesmo ou é fingimento para suportar a falta? Será que minto para mim para não sofrer tanto?
Será que o amor é um segredo disfarçado de fim? Será que a minha solidão agora é soberba? Será que meu contentamento é uma cilada? Será que me embriaguei de palavras e esqueci o caminho de volta?
Onde estão aquelas declarações apaixonadas? Em que parte distante de mim, já que não sobem mais aos olhos?
Para onde foram a algazarra da convivência, os passeios, as viagens, as mãos dadas, os risos, a cumplicidade das festas, as brincadeiras, o sono de conchinha, as conversas até tarde?
Para onde foram a ansiedade, o ciúme, a saudade, o desespero de não ver mais, as implicâncias ruidosas, as concordâncias silenciosas?
Para onde vai o amor após sumirem as fotos, os quadros, as mensagens de texto, os bilhetes de flores?
Quando não há mais dor para sinalizar onde se mantinha o amor. Quando não há mais desespero para apontar onde se guardava o amor. Quando não restam lápide, campa, cicatriz, rua, aliança para ostentar sua lembrança.
Em que parada de Porto Alegre desembarca a comoção perdida? Qual a estação em que o amor acena e evapora? Que planeta, que dimensão, que oceano?
Ou ele se transforma numa mania nova, num modo de suspirar, de virar o rosto, de mexer as orelhas?
Ou ele se converte em cinismo religioso, em maldade com os palhaços, em ironia com noivos, em raiva de qualquer save the date dos amigos?
Para onde vai o amor depois do amor? Me fale, por favor. As lágrimas, quando secam, permanecem eternamente na pele? Não sei. Mas meu rosto está cada vez mais salgado.
quinta-feira, julho 23
O judeu da Babilônia
O judeu da Babilônia, como era chamado o milagreiro, viajou a noite inteira na carruagem que o levava de Lublin ao vilarejo de Tarnigrod. O cocheiro, um sujeito baixinho e de ombros largos, permaneceu em silêncio durante toda a jornada. Cabeceava de sono e chicoteava o matungo, que andava devagar, passo a passo. A velha égua aprumava as orelhas e olhava para trás com seus olhos grandes, que exprimiam curiosidade humana e refletiam o brilho da lua cheia. Parecia indagar-se sobre aquele passageiro estranho, que trajava um casaco de veludo com forro de pele e tinha um chapéu também de pele na cabeça. Chegou mesmo a franzir o beiço escuro, forjando uma espécie de sorriso equino. O milagreiro estremeceu e murmurou uma fórmula mágica, levando o cocheiro a se dar conta de como seu passageiro era perigoso.
“Anda, égua preguiçosa!”
A carruagem passou por campos arados, montes de feno e um moinho de vento, o qual, girando lentamente, surgia, desaparecia e ressurgia. Seus braços abertos davam a impressão de apontar-lhes o caminho. Uma coruja piou e uma estrela cadente se desprendeu do céu, deixando um rastro ígneo atrás de si. O milagreiro se enrolou em seu xale de lã. “Ai de mim!”, gemeu. “Já não sou páreo para eles.” Referia-se aos seres infernais, os demônios aos quais dera combate a vida inteira. Agora que estava velho e fraco, começavam a vingar-se dele.
Livros de colorir têm sinal de queda
O 4º Painel das Vendas de Livros no Brasil confirma que o mercado editorial brasileiro experimentou uma retração no primeiro semestre de 2015, em relação ao mesmo período do ano passado. O setor vendeu R$ 779 milhões, apenas 6,9% a mais do que em 2014. O resultado ficou abaixo da inflação acumulada, que é de cerca de 8,5%. A pesquisa é divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e pelo Instituto Nielsen.
Resultados sobre junho também foram apresentados. No sexto mês do ano, as vendas foram 8,2% maiores, se comparadas a 12 meses atrás. Elas também não superam a inflação. O valor totalizou R$ 101,3 milhões. Pela primeira vez desde que o fenômeno dos livros de colorir surgiu, no início do ano, a participação dos produtos nas vendas do setor sofreu queda. Em maio, eles representavam um total de 14,21% de todo o faturamento. No mês seguinte, passaram a 8,23%.
Mesmo assim, o fenômeno foi responsável por evitar números ainda menores no acumulado semestral. Em 2015, a categoria classificada como “não ficção trade”, onde os livros de colorir são incluídos, representou 28,79% de todo o faturamento do setor. O preço médio do livro segue caindo. Nos primeiros seis meses, eles ficaram 1,6% mais baratos. Caíram de R$ 38,58, em 2014, para R$ 37,97, este ano. O Nielsen apura as vendas das principais livrarias e supermercados do país.
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Resultados sobre junho também foram apresentados. No sexto mês do ano, as vendas foram 8,2% maiores, se comparadas a 12 meses atrás. Elas também não superam a inflação. O valor totalizou R$ 101,3 milhões. Pela primeira vez desde que o fenômeno dos livros de colorir surgiu, no início do ano, a participação dos produtos nas vendas do setor sofreu queda. Em maio, eles representavam um total de 14,21% de todo o faturamento. No mês seguinte, passaram a 8,23%.
Mesmo assim, o fenômeno foi responsável por evitar números ainda menores no acumulado semestral. Em 2015, a categoria classificada como “não ficção trade”, onde os livros de colorir são incluídos, representou 28,79% de todo o faturamento do setor. O preço médio do livro segue caindo. Nos primeiros seis meses, eles ficaram 1,6% mais baratos. Caíram de R$ 38,58, em 2014, para R$ 37,97, este ano. O Nielsen apura as vendas das principais livrarias e supermercados do país.
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Novo livro de crônicas de Sanches Neto
O escritor Miguel Sanches Neto lançou esta semana, no Centro de Apoio da Viação Campos Gerais, em Ponta Grossa (PR), o livro “Um menino toca flauta no metrô”, quarto volume de crônicas reunidas, publicado pela Container Edições através da Lei Rouanet e da Lei Bepe de incentivo à cultura com apoio da Fundação Municipal de Cultura de Ponta Grossa.
Com a coletânea “Um menino toca flauta no metrô”, Miguel complementa o volume anterior da coleção, “Uma outra pele”, que também teve o patrocínio da empresa. “Em ‘Uma outra pele’ reuni as crônicas que falavam de leitura, de formação de público para textos literários. Em ‘Um menino toca flauta no metrô’, trato da escrita, das questões da vida do escritor, que tem que se dedicar a escrever. São livros irmãos, complementares. E dão um panorama da atividade literária, tanto no momento da criação quanto da recepção”, explica Miguel.
Em 37 crônicas, Miguel explora em textos com humor e leveza, lances da vida de alguém que tudo faz para dedicar a maior parte de seu tempo à escrita. Revelando a sua casa, as suas manias e o seu percurso existencial, o escritor busca criar no leitor uma intimidade com este trabalho contínuo, sem férias, com as palavras, mas com palavras que vêm tanto dos livros quanto das pessoas com quem ele convive.
Miguel Sanches Neto irá repassar 500 unidades da obra “Um menino toca flauta no metrô” para o programa ‘Pegaí’. Outras 500 unidades serão repassadas para o projeto ‘Biblioteca Cidadã’, que distribui os livros para as bibliotecas paranaenses. Outras 200 unidades serão repassadas para escolas da região e 200 para instituições culturais.
quarta-feira, julho 22
Minha biblioteca, adeus
Doei aos presídios e à biblioteca pública mais uma Minha Biblioteca.
Jean François Rauzier |
A primeira, doei quando me descasei, livros de iniciação cultural, politização e devoções que se vão, como o socialismo.
A segunda Minha Biblioteca doei quando fui morar três anos em São Paulo, livros de indagação, procura e paixões trintonas e também passadas, como o anarquismo.
A terceira Minha Biblioteca doei quando voltei de São Paulo, livros de revelação espiritual, superação mental, transformação pessoal.
Agora, estou me descartando da quarta Minha Biblioteca simplesmente porque não vejo mais sentido em manter uma biblioteca que pouquíssimo consulto, os livros como cadáveres às minhas costas – pois livro que não se abre é livro morto, não?
Que revivam noutras mãos, entrem noutras cabeças, continuem a semear idéias, emoções e transformações.
Deixando de ser “minha”, será realmente biblioteca, os livros passando de um presidiário para outro, diminuindo suas penas, ajudando – espero – a se tornarem pessoas melhores para o retorno à sociedade.
Na biblioteca pública, espero que os livros que me marcaram na juventude, e que depois voltei a comprar e reler saudoso, também envolvam de letras o coração de outros jovens, descortinem visões e movam transformações. E que esses jovens leitores possam um dia, homens maduros, repetir este gesto de doar o que foi precioso e, hoje, só tem valor se passar para outros, para a frente, para o futuro.
Mas que saudade fina e boa rever algumas capas! Que velho deleite folhear páginas memoráveis! Seja de sangue ou de livros, a doação é uma dolorosa alegria.
Cheguei aos 66, idade que, há um século, já era fatal e, hoje, conta com décadas de vida ainda. Mas quem sabe uma doença não me atropela ou um caminhão resolve me livrar de toda doença. Quero partir sem deixar enroscos, testamento feito, legado literário organizado, ou, conforme Manuel Bandeira, “a cama feita, a mesa posta, cada coisa em seu lugar”.
Duas caixas de livros irão para uma biblioteca em Araucária a que resolveram dar meu nome.
Muitos livros tem dedicatória para mim, e se os autores um dia depararem com eles na biblioteca pública (ou no presídio), saibam que não tive intenção de menosprezar. Ao contrário, é por amor que os envio ao mundo, como fazemos com os filhos.
Adeus, meus queridos! Sejam felizes, folheados e lidos, livres do purgatório da Minha Biblioteca inútil!
E, se vos protegi do sol e da chuva durante tantos anos, permitam que agora, apenas neste minuto, em alguns de vocês caiam estas gotas nem doces nem amargas que chamamos de lágrimas.
Domingos Pellegrini
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