segunda-feira, julho 20

A extinção dos unicórnios

Acredito, desde há muito tempo, que livros esquecidos nos confins de estantes remotas tendem a chamar ou a engendrar novos livros

Gosto de me sentir rodeado por livros. A presença de livros, de muitos livros, tem um poder calmante, como flutuar num oceano pacífico, olhando o céu, numa tarde de sol. Escrevo melhor em casa, na minha biblioteca. Ontem, interrompi o romance em que estou a trabalhar para procurar uma coletânea de haikai, na secção de poesia. Não encontrei o livro que procurava, de forma que comecei a desmontar tudo. Reparei, sem grande surpresa, dado tal fenômeno ser recorrente sempre que começo a remexer nas estantes, que, nas filas de trás, iam surgindo títulos desconhecidos. Não me lembro de ter comprado aqueles livros. Não sei como se introduziram na minha casa.

Acredito, desde há muito tempo, que livros esquecidos nos confins de estantes remotas tendem a chamar ou a engendrar novos livros. Trata-se de um prodígio ignorado pela ciência. Isso não o invalida. A ciência reconhece hoje prodígios muitíssimo mais assombrosos, infinitamente menos credíveis, como o chamado entrelaçamento quântico. Segundo a mecânica quântica, dois ou mais objetos situados a milhões de anos- luz de distância podem estar ligados uns aos outros de tal forma que atuando sobre o primeiro, os restantes respondem a tal ação no mesmo instante. Quem acredita em teses como esta não tem porque não acreditar que livros esquecidos evoquem para o seu convívio outros livros esquecidos, ou — possibilidade que exige um esforço de credulidade apenas um pouco maior — que dois ou mais livros juntos interajam uns com os outros, numa espécie de festiva suruba literária, de forma a gerar títulos inteiramente originais. Pode ser que os dois prodígios ocorram simultaneamente: uns livros chegam através de misteriosas cerimônias de evocação; os outros são engendrados, ali mesmo, nas estantes, a partir de terceiros.


Em determinada altura da minha busca caiu-me aos pés um volume magro, “Silogismos da amargura”, de Emil Cioran, numa edição da Letra Livre. Ficou caído de borco, aberto, indefeso, em meio à desordem geral. Debrucei-me para o apanhar, segurando-o pela primeira vez entre as minhas mãos espantadas, e li: “Passados os trinta anos deveríamos dar tanta importância aos acontecimentos quanto um astrônomo aos mexericos”.

Coloquei o livro de E. M. Cioran na pilha dos “livros evocados”, juntamente com um volumoso ensaio, em francês, sobre poesia chinesa, e a biografia, em inglês, de Ryszard Kapuscinski, de Artur Domoslawski (que, entretanto, comecei a ler). Todos aqueles livros foram realmente publicados. Os seus autores são conhecidos. As editoras que os publicaram têm existência mais ou menos comprovada. Antes de surgirem na minha biblioteca residiam certamente em alguma outra. A biografia de Kapuscinski, aliás, traz na terceira página uma nota, a lápis, do presumível proprietário original.

Mais curiosos são os livros tão improváveis que só podem ter nascido do concúbito ansioso de vários títulos desencontrados. Descobri, por exemplo, um tratado romeno de pogonologia (o estudo da barba) e um título de poesia redigido num perverso dialeto do português. O livro de poemas trazia a indicação de ter sido impresso em 2017. Pode ser um erro de ortografia. Pode ser que o livro inteiro não seja outra coisa senão uma penosa coleção de erros de ortografia. Ou não — talvez tenha mesmo sido escrito num tempo futuro, num dialeto futuro.

"Der bücherwurm", Carl Schleicher
Fiquei particularmente maravilhado com um volume, em caracteres árabes, que me pareceu uma reprodução moderna de um ensaio muito antigo sobre a extinção dos unicórnios. Guardei-o entre um exemplar autografado da primeira edição moçambicana de “Vozes anoitecidas”, do Mia Couto, e uma volumosa biografia do grande viajante inglês Richard Burton (por este exemplo podem avaliar a desordem em que se encontra minha biblioteca). Quando voltei a procurá-lo já não estava lá. Suponho que terá sido convocado para outra biblioteca.

Visitei recentemente aquela que deve ser a maior biblioteca privada de Portugal. Pertence a José Pacheco Pereira, conhecido e respeitado comentador político. Pereira começou por adquirir um casarão enorme numa localidade perto de Lisboa, mas depressa compreendeu que não iria conseguir colocar lá todos os seus livros — mais de cem mil. Então foi comprando as propriedades em redor — uma escola, um lagar, um quartel da polícia —, e agora a biblioteca estende-se por todos aqueles espaços. Emergimos de um corredor sombrio e estamos num pátio e logo a seguir nos antigos calabouços da polícia, sempre entre livros. A biblioteca ameaça devorar a povoação inteira. Imagino o furor noturno nas estantes dobradas ao peso dos livros. Os desvairados títulos que ali se engendram. O fantasma de Borges vagando feliz pelos corredores.

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