Acredito, desde há muito tempo, que livros esquecidos nos
confins de estantes remotas tendem a chamar ou a engendrar novos livros
Gosto de me sentir rodeado por livros. A presença de livros,
de muitos livros, tem um poder calmante, como flutuar num oceano pacífico,
olhando o céu, numa tarde de sol. Escrevo melhor em casa, na minha biblioteca.
Ontem, interrompi o romance em que estou a trabalhar para procurar uma
coletânea de haikai, na secção de poesia. Não encontrei o livro que procurava,
de forma que comecei a desmontar tudo. Reparei, sem grande surpresa, dado tal
fenômeno ser recorrente sempre que começo a remexer nas estantes, que, nas
filas de trás, iam surgindo títulos desconhecidos. Não me lembro de ter
comprado aqueles livros. Não sei como se introduziram na minha casa.
Acredito, desde há muito tempo, que livros esquecidos nos
confins de estantes remotas tendem a chamar ou a engendrar novos livros.
Trata-se de um prodígio ignorado pela ciência. Isso não o invalida. A ciência
reconhece hoje prodígios muitíssimo mais assombrosos, infinitamente menos
credíveis, como o chamado entrelaçamento quântico. Segundo a mecânica quântica,
dois ou mais objetos situados a milhões de anos- luz de distância podem estar
ligados uns aos outros de tal forma que atuando sobre o primeiro, os restantes
respondem a tal ação no mesmo instante. Quem acredita em teses como esta não
tem porque não acreditar que livros esquecidos evoquem para o seu convívio
outros livros esquecidos, ou — possibilidade que exige um esforço de
credulidade apenas um pouco maior — que dois ou mais livros juntos interajam
uns com os outros, numa espécie de festiva suruba literária, de forma a gerar
títulos inteiramente originais. Pode ser que os dois prodígios ocorram simultaneamente:
uns livros chegam através de misteriosas cerimônias de evocação; os outros são
engendrados, ali mesmo, nas estantes, a partir de terceiros.
Em determinada altura da minha busca caiu-me aos pés um
volume magro, “Silogismos da amargura”, de Emil Cioran, numa edição da Letra
Livre. Ficou caído de borco, aberto, indefeso, em meio à desordem geral. Debrucei-me
para o apanhar, segurando-o pela primeira vez entre as minhas mãos espantadas,
e li: “Passados os trinta anos deveríamos dar tanta importância aos
acontecimentos quanto um astrônomo aos mexericos”.
Coloquei o livro de E. M. Cioran na pilha dos “livros
evocados”, juntamente com um volumoso ensaio, em francês, sobre poesia chinesa,
e a biografia, em inglês, de Ryszard Kapuscinski, de Artur Domoslawski (que,
entretanto, comecei a ler). Todos aqueles livros foram realmente publicados. Os
seus autores são conhecidos. As editoras que os publicaram têm existência mais
ou menos comprovada. Antes de surgirem na minha biblioteca residiam certamente
em alguma outra. A biografia de Kapuscinski, aliás, traz na terceira página uma
nota, a lápis, do presumível proprietário original.
Mais curiosos são os livros tão improváveis que só podem ter
nascido do concúbito ansioso de vários títulos desencontrados. Descobri, por
exemplo, um tratado romeno de pogonologia (o estudo da barba) e um título de
poesia redigido num perverso dialeto do português. O livro de poemas trazia a
indicação de ter sido impresso em 2017. Pode ser um erro de ortografia. Pode
ser que o livro inteiro não seja outra coisa senão uma penosa coleção de erros
de ortografia. Ou não — talvez tenha mesmo sido escrito num tempo futuro, num
dialeto futuro.
"Der bücherwurm", Carl Schleicher |
Fiquei particularmente maravilhado com um volume, em
caracteres árabes, que me pareceu uma reprodução moderna de um ensaio muito
antigo sobre a extinção dos unicórnios. Guardei-o entre um exemplar autografado
da primeira edição moçambicana de “Vozes anoitecidas”, do Mia Couto, e uma
volumosa biografia do grande viajante inglês Richard Burton (por este exemplo
podem avaliar a desordem em que se encontra minha biblioteca). Quando voltei a
procurá-lo já não estava lá. Suponho que terá sido convocado para outra
biblioteca.
Visitei recentemente aquela que deve ser a maior biblioteca
privada de Portugal. Pertence a José Pacheco Pereira, conhecido e respeitado
comentador político. Pereira começou por adquirir um casarão enorme numa localidade
perto de Lisboa, mas depressa compreendeu que não iria conseguir colocar lá
todos os seus livros — mais de cem mil. Então foi comprando as propriedades em
redor — uma escola, um lagar, um quartel da polícia —, e agora a biblioteca
estende-se por todos aqueles espaços. Emergimos de um corredor sombrio e
estamos num pátio e logo a seguir nos antigos calabouços da polícia, sempre
entre livros. A biblioteca ameaça devorar a povoação inteira. Imagino o furor
noturno nas estantes dobradas ao peso dos livros. Os desvairados títulos que
ali se engendram. O fantasma de Borges vagando feliz pelos corredores.
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