quarta-feira, julho 15

A hora dos fantasmas


Que horas são?, perguntou Pessoa.

É quase meia-noite, respondeu Álvaro de Campos, a melhor hora para te encontrar, é a hora dos fantasmas.

Porque é que vieste?, perguntou Pessoa.

Porque se tu te vais, temos um certo número de coisas a dizer um ao outro, respondeu Álvaro de Campos, eu não te sobreviverei, partirei contigo, e antes de mergulhar na obscuridade temos um certo número de coisas a dizer um ao outro.

Pessoa ergueu-se na almofada, bebeu um gole de água e perguntou: que mais fizeste tu?

Meu caro, respondeu Álvaro de Campos, vejo com prazer que não me chamas engenheiro nem me tratas por você, que me tratas com familiaridade.

É evidente, respondeu Pessoa, tu entraste na minha vida, substituíste-te a mim, foste tu que fizeste com que a minha relação com Ophélia acabasse.

Fi-lo para teu bem, replicou Álvaro de Campos, essa miúda emancipada não convinha a um homem da tua idade, teria sido um casamento falhado. E depois, sabes, todas aquelas cartas de amor que lhe escreveste são ridículas, em suma salvei-te do ridículo, espero que me estejas agradecido.

Eu amei-a, murmurou Pessoa.

Com um amor ridículo, replicou Álvaro de Campos.

Sim, é possível, pode ser que sim, respondeu Pessoa, e tu?

Eu?, perguntou Campos. Eu, ora, eu tenho o sentido da ironia, escrevi um soneto que nunca te mostrei, fala de um amor que te vai embaraçar, porque é dedicado a um jovem, um jovem que amei e que me amou em Inglaterra. Em suma, é depois deste soneto que vai nascer a lenda dos teus amores recalcados, vai fazer a felicidade de certos críticos.

Amaste verdadeiramente alguém?, perguntou Pessoa.

Amei verdadeiramente alguém, respondeu Campos em voz baixa.

Então, absolvo-te, disse Pessoa, absolvo-te, julgava que na tua vida só tinhas amado a teoria.

Não, disse Campos aproximando-se da cama, também amei a vida, e se as minhas odes futuristas e furibundas foram blague, se nas minhas poesias niilistas destruí tudo, até eu mesmo, fica a saber que também eu amei na minha vida, com uma dor consciente.

Pessoa levantou a mão e fez um gesto esotérico. Disse: absolvo-te, Álvaro, vai com os deuses eternos, se tiveste amores, se tiveste um só amor; estás absolvido, porque és uma pessoa humana, é a tua humanidade que te absolve.

Posso fumar?, perguntou Campos.

Pessoa fez um gesto afirmativo com a cabeça. Campos tirou do bolso uma cigarreira de prata e pegou num cigarro, enfiou-o numa comprida boquilha de marfim e acendeu-o.

Sabes, Fernando, tenho saudades de quando era um poeta decadente, da época em que fiz aquela viagem de paquete nos mares do Oriente, sim, então teria sido capaz de escrever versos à lua, garanto-te, à noite, no convés, quando havia baile a bordo, a lua era tão teatral, era de tal modo minha. Mas nesse tempo eu era estúpido, fazia ironia com a vida, não sabia aproveitar a vida que me era dada, e foi assim que perdi a oportunidade e a vida me escapou.

E depois?, perguntou Pessoa

Depois, comecei a querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o desencorajamento. E com o desencorajamento, o niilismo. Em seguida, já não acreditei em nada, nem mesmo em mim. E hoje aqui estou à tua cabeceira, como um farrapo inútil, fiz as malas para lado nenhum, e o meu coração é um balde despejado.

Campos dirigiu-se para a mesa de cabeceira e apagou o borrão do cigarro num pratinho de loiça.

Bem, meu caro Fernando, acrescentou, precisava de te dizer tudo isto agora que vamos talvez deixar-nos, tenho de ir, sei que os outros também virão ver-te e já não te resta muito tempo, adeus.

Campos pôs o sobretudo pelos ombros, ajustou o monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se um instante e repetiu: adeus Fernando. Depois disse: as cartas de amor talvez não sejam todas ridículas. E fechou a porta. 
Antonio Tabucchi, "Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa"

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