domingo, julho 19

Os salões de Paris segundo Proust

“Salões de Paris”, que a Carambaia está lançando para venda exclusiva no site da editora, reúne em volume inédito no Brasil 21 crônicas selecionadas de Marcel Proust, com um texto introdutório de Guilherme Ignácio da Silva, professor de Literatura Francesa da Universidade Federal de São Paulo e especialista na obra do escritor. Os textos foram publicados ao longo de dez anos no jornal “Le Figaro” (1903-1913) e em periódicos de curta duração, como o “Le Mensuel” (outubro de 1890 a setembro de 1891), ou em revistas especializadas, como a “Revue d’Art Dramatique” (1886-1909) ou a “Revue Blanche” (1889-1903). O volume tem uma tiragem limitada a mil exemplares, todos numerados a mão, e recebeu tratamento gráfico especial.
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Crônica

O sr. Gustave de Borda, que faleceu na semana passada e que era principalmente conhecido e lendário sob a alcunha de “Borda Golpe de Espada”, tinha efetivamente passado a vida com a espada na mão, temível com os malvados, mas doce com os bons e compassivo com os infelizes, como um cavaleiro do Romanceiro ao qual se assemelhava. Condecorado pela bela conduta durante a guerra, ele era célebre por seus talentos de esgrimista sem igual e seus inumeráveis duelos. O que se sabe menos é que só usava sua extraordinária destreza com a espada para moderar os efeitos de sua força, da qual jamais abusou.

Poderia ter sido o mais perigoso dos inimigos; mas, como era o melhor dos homens, sempre foi o mais moderado, o mais justo, o mais humano, o mais cortês dos adversários. São os costumes, e não as opiniões, que fazem as virtudes; a bravura fez desses pacíficos, como Borda; o pacifismo não fará isso. O convívio e o exemplo de tal homem ensinavam a não temer a morte, a aproveitar ainda mais a vida. Sua simpatia, sua bondade eram deliciosas, pois sentíamos que o medo, o interesse, a fraqueza ali não entravam por nada, que era o dom voluntário e puro de uma alma verdadeiramente livre. De um espírito encantador e rico, tinha um gosto vivo e natural pelas artes, pela música, sobretudo, que apreciava simples como convém a um velho bravo. Stendhal, que tinha participado da campanha da Rússia, não preferia a música italiana a todas as outras? Esse maravilhoso duelista que era o sr. de Borda foi também, com uma competência sem igual, com uma fineza e bondade raras, uma incomparável testemunha.

Foi preciso a fadiga dos últimos anos para impedi-lo de continuar a ir a campo como testemunha de seus amigos, quando passou a idade de ali estar como combatente. A última pessoa, se nossa memória é exata, que ele assistiu em campo na qualidade de testemunha foi nosso colaborador, sr. Marcel Proust, que sempre manteve por ele um verdadeiro culto. O sr. Gustave de Borda teve por amigos tudo o que conta em Paris pelo coração, pelo nascimento ou pelo pensamento. Mas aquele que lhe era mais caro de todos, além de seu médico e amigo, o doutor Vivier, era o grande pintor Jean Béraud. O sr. de Borda sentia nesse maravilhoso artista uma natureza que, por aspectos menos conhecidos do público, pela bravura e coração, era próxima da sua. Reconhecia nele um de nossos últimos cavalheiros.

"Figaro", 26 de dezembro de 1914
(Proust escreve o obituário de Gustave de Borda, famoso instrutor de esgrima francês. Borda foi uma das testemunhas de Proust no seu duelo com outro escritor, Jean Lorrain,  A disputa foi convocada por Proust após a publicação de uma crítica negativa assinada por Lorrain, na qual ele inclusive insinua uma suposta relação íntima de Proust com o jovem escritor Lucien Daudet.)

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