— Mikhail Afanássevitch Bulgákov?Três semanas antes, Bulgákov havia enviado a Stálin uma longa carta em que contava como era perseguido e caluniado pelas instituições governamentais e pela imprensa. Como prova, ele contabilizava as referências publicadas sobre si mesmo nos jornais e revistas ao longo de dez anos (três elogiosas e 298 hostis) e transcrevia numerosos comentários ofensivos (um deles o chamava de “rebento neoburguês, que espirra sua baba venenosa, mas inócua, sobre a classe trabalhadora e seus ideais comunistas”). Sem conseguir encenar suas peças em lugar nenhum, ele desabafava: “Peço levar em consideração que, para mim, a impossibilidade de escrever equivale a ser enterrado vivo.” A carta pedia autorização para deixar a União Soviética ou, alternativamente, um trabalho no ramo teatral, e terminava assim: “Peço ao Governo Soviético que faça de mim o que achar necessário, mas que faça alguma coisa, porque a mim, dramaturgo de cinco peças, conhecido na URSS e no exterior, restam no presente momento a miséria, a rua e a ruína ”.
— Sim, ele mesmo.
— Agora o camarada Stálin vai falar com o senhor.
— O quê? Stálin? Stálin?
Perplexo, ele ouviu em seguida a voz inconfundível:
— Boa tarde, camarada Bulgákov.
— Boa tarde, Ióssif Vissarionóvitch.
— Nós recebemos sua carta. Li com os camaradas. O senhor vai obter uma resposta favorável... Será que realmente devemos deixá-lo partir para o estrangeiro? Nós o aborrecemos tanto assim?
Pego de surpresa, Bulgákov não soube o que dizer. Demorou alguns instantes até conseguir falar:
— Pensei muito nos últimos tempos se um escritor russo poderia viver fora de sua terra. E me parece que não.
— O senhor tem razão. Também penso assim. Onde quer trabalhar? No Teatro de Arte?
— Sim, eu gostaria. Mas falei sobre isso e me recusaram.
— Entre com um requerimento. Acho que vão concordar. Precisamos nos encontrar para uma conversa...
— Sim, sim, Ióssif Vissarionóvitch, preciso muito conversar com o senhor!
— Sim, é preciso arranjar tempo e teremos um encontro, sem falta. E agora desejo-lhe felicidades.
A vida nunca foi fácil para os artistas na União Soviética. Depois de alguns anos de euforia criativa após a Revolução de 1917, o governo foi pouco a pouco cerceando a liberdade artística e proibindo ou boicotando todas as criações que não estivessem a serviço dos ideais comunistas ou não se encaixassem na estética oficial do Realismo Socialista, que pregava que a arte deveria representar a realidade da classe trabalhadora e ser facilmente compreensível por ela. Apenas quatro dias antes do telefonema de Stálin, o poeta Vladimir Maiakóvski, amigo de Bulgákov e talvez a figura mais importante da vanguarda literária soviética, tinha se matado com um tiro no peito. Grandes artistas que não se curvaram aos ditames do governo soviético, como Ossip Mandelstam , Marina Tsvetáieva e Anna Ahmátova , amargariam anos de ostracismo, privações e sofrimentos, quando não eram torturados e assassinados.
Nascido na Ucrânia, Mikhail Bulgákov formou-se em medicina e, como médico, integrou o Exército Branco que combateu os bolcheviques na guerra civil que se seguiu à Revolução Russa. Durante a guerra, contraiu tifo, e isso o impediu de emigrar após a vitória dos comunistas. Abandonou a medicina, decidiu se tornar escritor e em 1921 se mudou para Moscou. Suas experiências na guerra civil serviram de matéria-prima para seu romance O Exército Branco , cuja primeira parte foi publicada em 1925.
O Exército Branco narra a guerra civil russa do ponto de vista de uma família anticomunista de classe média, em tudo semelhante à família do próprio Bulgákov. Os locais onde se desenrola a ação, os personagens, as situações e conflitos, tudo isso está calcado na vida do autor, reconhecível sob a pele do protagonista Alexei Turbin. Embora o romance enaltecesse a vitória dos comunistas, sua abordagem era inusitada e até mesmo subversiva para a época: Bulgákov ousava apresentar os oponentes dos bolcheviques como pessoas de carne e osso, cheias de defeitos mas também de virtudes, e não como caricaturas para fins de propaganda política. Talvez tenha sido essa complexidade o que despertou o interesse do Teatro de Arte de Moscou, que procurou Bulgákov para saber se ele estava interessado em adaptar o romance para o palco.
Não foi fácil. Depois de várias idas e vindas com ameaças de proibição, reações indignadas de Bulgákov e revisões e mais revisões do texto, a peça finalmente estreou em outubro de 1926, com o nome de Os dias dos Turbin (publicada no Brasil no ano passado, em cuidada tradução de Irineu Franco Perpétuo). Foi o maior sucesso do Teatro de Arte desde a célebre encenação de A gaivota, de Tchékhov, com direção de Konstantin Stanislavski, quase 30 anos antes. As feridas abertas pela guerra civil ainda não haviam cicatrizado e a peça provocou grande alvoroço no público que lotava as galerias do teatro. Diz Homero Freitas de Andrade, biógrafo e tradutor de Bulgákov, que na estreia da peça houve desmaios, ataques histéricos e sete espectadores foram parar no pronto-socorro. Ao final, a cortina foi erguida nove vezes e os espectadores rugiam pedindo que o autor viesse ao palco (nervosíssimo, ele tinha ido embora antes do último ato). Os dias dos Turbin logo se tornou uma das mais peças mais populares da história do teatro russo. Entre seus fãs, estava o próprio Stálin, que assistiu a ela nada menos que 16 vezes.
Mas todo esse sucesso de público não impediu que Bulgákov fosse impiedosamente criticado e hostilizado pelas autoridades e pela imprensa, que o acusavam de reacionário e contrarrevolucionário ao demonstrar simpatia com o Exército Branco e seus partidários. Enquanto isso, Bulgákov, agora consagrado como dramaturgo, recebia encomendas para outras peças. Mas o cerco se fechava e, a partir de 1929, tudo que ele havia publicado foi retirado de circulação, e nenhuma de suas peças conseguia autorização para ser encenada. No mesmo ano, as pressões de seus opositores fizeram com que Os dias dos Turbin saísse de cartaz. Desesperado, Bulgákov escreveu em uma carta a seu irmão, em janeiro de 1930: “Todas as minhas obras literárias foram proibidas, assim como meus projetos. Estou condenado ao silêncio e, muito provavelmente, à fome total”. Foi esse desespero que o levou a escrever a Stálin.
Meses depois do telefonema de Stálin, Bulgákov conseguiria o emprego de diretor assistente no Teatro de Arte de Moscou. O novo emprego lhe pagava o bastante para não morrer de fome, mas estava longe de atender a suas inquietações artísticas. Enquanto isso, Os dias dos Turbin voltava a entrar em cartaz da mesma forma bizarra e arbitrária como tinha saído: em 1932, em uma visita ao Teatro de Arte, Stálin perguntou por que a peça não estava mais na programação. E assim ela voltou a ser encenada, e continuou a sê-lo ininterruptamente até a entrada da União Soviética na Segunda Guerra Mundial, em 1941, num total de 987 apresentações.
Mas isso não servia de consolo para Bulgákov, que, até sua morte, em 1940, nunca mais conseguiria publicar ou encenar qualquer outro texto seu, apesar de inúmeras tentativas. Frustrado e deprimido, ele se dedicou a escrever e reescrever em segredo aquela que seria sua obra mais célebre e um dos grandes romances do século XX: O mestre e Margarida , publicado na União Soviética somente em 1966. Foi também nesse ano que veio à luz, finalmente, a primeira versão completa de O Exército Branco , em cujo parágrafo final lemos estas palavras:
Tudo passa – sofrimento, dor, sangue, fome, peste. A espada também passará, mas as estrelas ainda permanecerão quando as sombras de nossa presença e nossos feitos se tiverem desvanecido da Terra. Não há homem que não saiba disso. Por que então não voltamos nossos olhos para as estrelas? Por quê?Gustavo Pacheco
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