domingo, junho 23

A minha Ilha do Tesouro

Décadas antes de a palavra se integrar na nossa língua, eu já era um perfeito "nerd". Como a palavra ainda não existia, os meus colegas olhavam para mim e nem sequer me viam (não vemos o que está por nomear). Vivi assim largos anos de quase invisibilidade e pacífica inexistência.

Conversando com amigos da minha idade percebo que todos eles atravessaram juventudes agitadíssimas, trágicas e épicas: amores loucos, prisões políticas, esportes radicais, acidentes, drogas e álcool. Eu não. Provavelmente, nunca fui jovem. Ou talvez tenha sido, mas apenas por dois ou três vertiginosos dias, muitos anos depois.

Uma das poucas vantagens desta tragédia íntima é que, ao contrário dos meus amigos, não sofro com saudades da juventude. Enquanto os meus colegas praticavam a juventude, eu percorria os sebos de Lisboa, cidade onde estudei Agronomia e Silvicultura, comprando livros antigos ao preço da chuva, algo que já não é mais possível, porque os alfarrabistas se transformaram numa espécie de lojas gourmet para bibliófilos. Assim, a segunda vantagem é que enriqueci a biblioteca com uma meia dúzia de livros raros.


Os títulos mais preciosos que guardo, aqueles que correria para salvar em caso de incêndio, foram adquiridos nessa época, quando eu tinha vinte anos, a um velho alfarrabista alemão, o senhor Berkemeyer, que nunca tendo estado em África sabia tudo sobre o continente: são os quatro álbuns de fotografias de José Augusto Cunha Moraes sobre Angola, “África Occidental”, publicados entre 1885 e 1888. Os álbuns reúnem imagens incrivelmente bonitas de um jovem país em construção, das antigas cidades, como Luanda e Benguela, às florestas do norte e aos desertos do sul, testemunhando a riqueza das tradições dos diferentes povos que integram Angola e, ao mesmo tempo, a crueldade do regime colonial.

Há poucos dias, após participar de um evento literário numa pequena cidade portuguesa, veio ter comigo um homem alto, simpático, que, depois de me cumprimentar, anunciou ser descendente de José Augusto Cunha Moraes. O autor de “África Occidental” nasceu em Coimbra em 1855, mas radicou-se ainda menino em Luanda, onde o pai montara um estúdio de fotografia. Naquela época os negativos eram impressos em placas de vidro. Os positivos dessas imagens possuem um detalhe e um luxo de tons de cinza que ainda hoje as melhores câmeras têm dificuldade em igualar. A família de Cunha Moraes guardou, ao que parece em boas condições, centenas dessas placas.

Combinei com o neto de Cunha Moraes visitar o Porto, em breve, para conhecer o acervo do fotógrafo. É como se um velho pirata me tivesse aparecido do nada, para me levar à Ilha do Tesouro.

Espero que um dia essas fotografias originais possam ser expostas e reunidas num ou mais álbuns. As imagens de Cunha Moraes são janelas abertas sobre um mundo que desapareceu há muito. Sinto sempre o impulso de saltar por uma dessas janelas, mesmo sabendo que me aguardaria um tempo mais cruel do que este em que vivemos. Ah! Mas aquelas praias limpas, sem restos de plástico; aquelas pessoas que posam assustadas — quantas histórias teriam para contar?

Quantas histórias esperando para serem contadas, naquela casa do Porto, que guarda as fotografias de Cunha Moraes?
José Eduardo Agualusa 

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