Hajin Bae |
– Surgem de noite, pai? – perguntei.
– De noite estou a dormir – respondeu, amargo.
– Para mais, – acrescentou – o que sabes tu de luzes?
– Desculpe, pai.
– Falei-te dessas aparições apenas para marcares uma consulta.
– No médico?
– Não, no astrólogo – comentou com impaciente cinismo.
– Preciso explicar ao médico os seus sintomas.
– Porque lhes chamas “sintomas”? São luzes. Luzes. Atravessam os céus como setas velozes.
Estendeu o braço no vazio e apontou para além do horizonte. E comentou, mais sereno, que existia um Sol dentro dele, por debaixo das pálpebras. Não havia como fechar os olhos, defender-se daquele estonteante fulgor. E aquilo doía tanto que, em certos momentos, lhe apeteceu a sombra final. A das toupeiras, que fecham as pálpebras para não ficarem cegas.
– O senhor, meu pai, passa muito tempo sozinho. Rejeita companhia.
– Não quero que me façam companhia. Companhia faz-se aos doentes.
Baixei o rosto com o peso da culpa. Passam-se meses sem que o visite. A solidão era a sua doença. De tanto olhar o teto nasceram-lhe cintilações.
– O seu sistema nervoso...
– Não tenho, nunca tive.
– O quê?
– Sistema, nem nervoso nem qualquer outro. Não tenho metabolismo, não tenho organismo, não tenho reações químicas. Quando falar de mim, use palavras que me respeitem. Sou o seu pai...
– Vê porque é que ninguém quer ficar consigo? Deixe espreitar-lhe o fundo dos olhos.
Estava certo que não iria encontrar nada. Falsas queixas, simples apelação. Engano meu. Manchas brancas emergiam do fundo escuro daqueles olhos morenos. Pareciam andorinhas brancas no meio da noite. Foi o que disse ao meu pai.
– Estupidez, não há andorinhas brancas.
– Como sabe, pai? Há andorinhas de todas as cores e feitios.
– Mesmo que houvesse, andorinha não é pássaro para andar no escuro.
Marquei consulta. Demoraria um mês até que o chamassem. Todos os dias me perguntava, ansioso, pelo exame. Agora, as andorinhas já são aos rebanhos. Bandos, corrigi. Bandos são dos criminosos. E eu sofro de luzes, de pássaros, andorinhas brancas.
No dia marcado, recusou-se a sair. A bem dizer, a recusa irritava-me mas não me surpreendia. Sempre foi assim, impondo os seus caprichos a quem ele mais amava.
– Não vou. Já me habituei a isto. As luzes são a minha mais fiel companhia.
– Por favor, pai, entre no carro!
– Um médico, o que é que entende do meu caso? Devias procurar um eletricista.
No hospital, o meu velho demorou-se nos corredores. Passava uma enfermeira e ele parava, os olhos caçadores seguindo o vulto branco até que se desvanecia para além de uma qualquer porta. Gosto de as ver fardadas, comentou ante o meu agastamento. Pena a tua mãe nunca ter andado de farda.
O médico espreitou fundo, mergulhou nas águas escuras dos olhos cansados do meu pai. E passou para outra sala. Perante os painéis luminosos com letras negras de diferentes tamanhos, o meu velho reclamou: estes painéis já os li no exame anterior. Não tem uns novos, com novas letras, com mais novidades? Nesse momento, o médico desistiu do exame oftalmológico. E quis saber mais sobre a vida do paciente do que sobre os seus olhos doentes. No final, expressou-se de forma enigmática: quem vive na sombra, inventa luzes.
– Pássaros – corrigiu o pai.
– Foi o que disse, por outras palavras.
No final, o médico abriu os braços e prosseguiu com novo ênfase. Há casos em que a solidão acende incêndios nos olhos, a alma fica consumida em cinza. E deitou-me um olhar acusador. Defendi-me, com convicção: que companhia lhe posso fazer, doutor, saio de manhã e volto à noite, já ele dorme?
– A verdade, meu caro doutor, é que não tenho tempo para ser filho.
– E a sua esposa?
– Separámo-nos, não tinha tempo para ser marido.
No caminho de regresso, o meu pai seguiu à frente, peito enfunado, passos determinados ecoando sincopadamente pelo hospital. Regressava não a casa mas ao seu passado militar. Foi oficial do Exército até ao dia em que a nossa mãe morreu. Nesse dia, deixou tombar no chão a farda, as divisas e a arma e saiu em roupa interior pela porta do quartel. Foi nesse momento que as primeiras asas brancas lhe atravessaram os olhos. Os dedos trémulos massajaram apressadamente as pálpebras receando que o vissem chorar em público.
– Gostou da consulta, pai?
– Gostei tanto que nunca mais lá volto. Os médicos bons são aqueles que vemos uma vez na vida.
E recordei-lhe as recomendações. Ele que saísse de casa, passeasse pelas ruas, fosse ao parque. Que parque? Todo aquele terreno foi convertido num prédio, resmungou. Já não há jardins na cidade. E ainda nos admiramos que os pássaros nos entrem pelos olhos? Custava-lhe andar pelos enrugados passeios, a cidade estava mais envelhecida do que ele. Chegados a casa bateu a porta, reentrando na gruta escura onde habitava como um morcego às avessas. No dia seguinte, dei início às obras. Construía uma varanda, um espaço aberto e sombreado onde o meu pai faria o seu recanto. Recusou. Mandou mesmo que parasse as obras e se devolvessem os materiais.
– Na varanda, o senhor fica a ver as pessoas.
– As pessoas? – E sorriu, sacudindo a cabeça.
– Faça isso pelos pássaros. Vão gostar de ver o céu.
– Que céu? – perguntou.
– Pai, faça-me a vontade. Deixe-me acabar a varanda.
– Fico dentro, filho. O teto da minha casa é maior do que o céu. E quando me enterrarem façam-no aqui dentro. Não por mim. Mas pelos pássaros.
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