Naquele domingo tudo se terá passado como sempre. Terá havido a mesma agitação logo de manhã, a minha mãe, na cozinha, a preparar as sandes, a cortar fatias de bolo de ananás que embrulhava em guardanapos de pano com um nó, o meu pai, no quintal, a partir o gelo comprado na bomba de gasolina do Sr. Inácio, para encher a geleira azul e refrescar a Mission maçã da minha mãe, as cervejas Cucas que ele iria beber e as Crush de morango com que a minha irmã e eu pintávamos os lábios de carmim. Acabados os preparativos, a minha mãe terá estendido as toalhas de praia nos bancos do Mazda para que a napa preta, a escaldar, não nos queimasse. A minha irmã reclamava sempre de qualquer coisa e mantinha-se afastada de mim, entregue à zanga constante que a nossa diferença de idade exigia. Já na praia, o creme Nivea transformava-me num palhacito de nariz branco, o sol escaldava-me os ombros e tornava bamba a linha do horizonte, a lonjura de areia pouco me atrasava a corrida para o mar e a minha mãe dizia, Parece que esta miúda nasceu com guelras, só está bem dentro da água.
Zbigniew Pronaszko |
Os meus pais acabavam de almoçar com os meus tios, no restaurante da praia. Os meus primos e a minha irmã jogavam às cartas no enorme areal, mais abaixo, protegidos pelos chapéus de sol. Este desdobramento familiar permitiu-me desrespeitar a proibição de entrar na água durante as duas horas da sagrada digestão. Disse aos meus pais que estava com a minha irmã, à minha irmã que estava com os meus pais, e avancei confiante para o mar. Sendo a mais nova da família, não tinha com quem me entreter e tornava-se um suplício estar mais do que cinco minutos fora de água. Ainda que não soubesse nadar.
Não havia ninguém por perto. Só eu e as ondas. Eu e o susto bom dos tombos que dava, batia no fundo, enrolada por uma onda, e logo o meu corpo se guindava à superfície, para ser levado pela onda seguinte para terra, corria de volta ao mar, atirava-me à espuma que me salgava a boca e fazia arder os olhos, o meu corpo leve, tão leve, dentro do biquíni de flores encarnadas e azuis, um corpo-boia que vinha sempre à tona. Até que um remoinho me puxou para baixo e me levou para longe. Perdido o pé, nunca mais o ganhei. Esbracejei, esperneei, mas os movimentos empurravam-me, agora, para o fundo, repentinamente transformada numa âncora estranha presa a nada. Ou a quase nada. Precisamos de tempo para nos prendermos às coisas e à própria vida e naquele domingo eu ainda tinha vivido tão pouco. Não sabia bem o que era morrer, mas percebi que ia morrer. Morrer era o maior castigo que nos podiam dar e aquela minha aflição significava que, ao desobedecer aos meus pais, incorrera nele. Morrer era também uma coisa perigosa, talvez a mais perigosa que existia. Era, pelo menos, não voltar. Meses antes, a Isabelinha, minha colega de turma, não voltara das férias de Natal. Morreu num acidente de carro ao regressar de Nova Lisboa, disse-nos a professora. A carteira da Isabelinha, solenemente vazia para sempre, explicara-me melhor a morte do que as advertências dos meus pais, as conversas dos miúdos mais velhos, o velório da avó dos meus primos, melhor mesmo do que os ensinamentos da catequese acerca do paraíso, do inferno e do purgatório. Naquele domingo eu não ia voltar, não tinha como voltar. Ninguém ainda tinha dado sequer pela minha falta. Aprendi, assim, o outro lado da morte, o que é morrer para quem morre. Apesar de estar cada vez mais longe, conseguia distinguir com inexplicável nitidez a minha irmã e os meus primos debaixo dos chapéus de sol e, ainda mais além, os meus pais e os meus tios, no restaurante da praia. Assistia à minha vida sem mim. Às vezes, as reviravoltas que continuava a dar apontavam-me o lado oposto, uma tranquila extensão azul brilhante, a perder de vista, para onde o sol se começava a encaminhar.
Ao entrar-me pela boca e pelo nariz, a água escangalhava-me a respiração, mas não tardei a sentir-me pertença dela, como dois líquidos que se misturam. Tive pena de nunca mais estar com os meus pais e irmã, de nunca mais subir às árvores, jogar Monopólio, comer garibaldis na pastelaria Riviera, mas com tão poucos anos vividos de que ter saudades e tão poucos outros, imaginados, à minha espera, eu era quase só o presente, não custava deixar-me ir.
Antes de ter caído no breu de que ressuscitei na areia a vomitar golfadas de água salgada, tive medo do tropa que me salvou. Assustei-me ao perceber que qualquer coisa nadava veloz na minha direção. Talvez o meu corpo esteja menos preparado para o desconhecido do que para a morte. Talvez a morte não seja estranha ao meu corpo.
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