"Eu doei livro de 800 reais, 600 reais. Porque tem livro de certo padrão de formação de faculdade aí, que não é barato. A pessoa, quando chegou aqui, só de olhar nos meus olhos, ‘seu Paulo, eu vi uns livros aí, que meu pai não tem condição de me dar, eu não tenho condição de comprar. Eu vou te pagando aos poucos’. Aí eu olhei para ele, olhei para o monte de livros que eu tinha separado. Aí eu fui e falei assim. ‘Meu querido, esses aqui?’, eu botei logo a mão em cima. ‘Esses mesmos’. Eu peguei esses livros todinhos e dei para esse moleque.”
No começo, seu Paulo andava pela Av. Sargento Geraldo Sant'Ana, uma travessa que liga a Av. Sabará e a Av. Interlagos, na região do Campo Grande, Zona Sul de São Paulo, com um velho carrinho de compras, e dois cachorros. Cruzei seu caminho muitas vezes. Eu o vi saindo da padaria, mexendo no lixo, enrolado num cobertor na sarjeta. Era uma pessoa em situação de rua “comum” — se podemos chamar de comum o fato de alguém ser obrigado a viver na rua. Antes dos livros, dormia nos fundos de um posto de gasolina interditado, no qual era também uma espécie de vigia.
Quando o posto voltou a funcionar, há mais ou menos três anos, ele deixou de dormir no lugar. Estacionou o carrinho de compras do outro lado da rua, na calçada do Colégio Santa Maria, onde estudam turmas de Ensino Médio. Foi nessa época que ele colocou a placa: “Aceito doação de livros”. Moradores da região começaram a contribuir. Hoje, o volume, que quase obstrui a passagem, impressiona.
Com os livros que juntou com doações, seu Paulo empresta e presenteia leitores. Algumas vezes, com alguma resistência, aceita umas moedas. “Isso não é um sebo”, ele diz, “é uma biblioteca de rua.”
Em dezembro passado, peguei um exemplar de Crime e Castigo – antiga edição capa dura, em dois volumes, da Abril –, e fui tentar entrevistar seu Paulo, o homem que, de certa maneira, mora numa biblioteca que ele mesmo construiu. Antes mesmo de conversarmos pela primeira vez, nas muitas vezes que o espiava de longe - enquanto ele varria a calçada, cuidava do jardim, alimentava os cachorros, ou recolhia rapidamente suas coisas, sob o céu que escurece–, imaginei que tínhamos algo em comum: esse quixotesco afeto com os livros.
Mesmo quando tudo desaba ao redor, esse afeto persiste.
Ao vê-lo dormindo, um tanto fragilizado naquele vão entre as duas grandes pilhas – atlas com a extinta URSS, obscuros romances fora de catálogo, autoajuda, manuais de direito, livros didáticos nos quais Plutão ainda é planeta, antologias poéticas –, aquela montanha com ares pós-apocalípticos assume simbolicamente a função de trincheira. Uma última trincheira contra a solidão, o abandono e a brutalidade da vida.
Mas naquela tarde de dezembro, seu Paulo não estava lá. Apenas os livros, um velho colchão azul com estampas de pássaros brancos, sua barraca de camping azul marinho, um galão d’água laranja pela metade e a casinha de cachorro. Havia ração no pote. Talvez tivesse apenas ido dar uma volta, foi o que eu pensei, ao deixar o lugar.
Na semana seguinte, visitei periodicamente a biblioteca de seu Paulo, em diferentes horários, carregando o exemplar de Crime e Castigo na mochila. A única coisa que encontrei foi o vento empurrando a lona. A biblioteca estava abandonada, tal e qual.
Danilo Costa Santos, 32, frentista que trabalha no posto de gasolina do outro lado da rua, disse-me que seu Paulo estava muito doente naquela semana. “Ele tem uma hérnia bem grande”, explicou, desenhando o volume com as mãos. Outro frentista, chamado Paulo Honório, conta que tentou muitas vezes convencer seu Paulo a operar. “Ele tá muito ruim. Mas ele diz que não quer saber de qualquer médico”.
“E ele gosta de ler?”, eu perguntei.
“Lê tudo que é livro”, disse Paulo Honório. “É um homem muito inteligente. Acho que tem duas faculdades”.
“Você sabe como ele veio parar na rua?”, eu perguntei.
“A mulher dele traiu ele”, disse Danilo. “Ele tem uma filha e um filho. Ele queria muito encontrar o filho”.
“É estranho deixar os livros assim sozinhos”, eu disse. “Já aconteceu antes?”.
“Durante tanto tempo assim”, disse Danilo, “não”.
Ficamos os três parados. Olhando para a lona laranja. Nuvens avançam no horizonte acinzentado. Os livros, ao que parece, estavam seguros. Já seu Paulo, não dava para ter certeza.
Contei a história ao meu amigo Camilo Gomide. Na semana seguinte, ele veio ajudar na busca. Sentados na sala da minha casa, debatíamos as hipóteses mais prováveis. Especulamos, inclusive, procurar em hospitais, na assistência social e, em último caso, necrotérios. “Um homem não junta tantos livros assim”, eu disse, “e depois simplesmente larga tudo e vai embora”. O problema é que não sabíamos seu sobrenome. A única coisa a fazer era dar mais uma olhada no lugar, e falar com os frentistas, mais uma vez.
“Ele tava andando aí mais cedo”, disse Danilo. “Tava com muita dor”.
“E foi pra onde?”, disse Camilo.
“Naquela rua que sobe, indo pro Shopping Interlagos”. Danilo aponta para a direita, depois a mão desenha um arco ascendente. “Aquela que tem uma padaria e uma igreja no alto”.
“Sei qual é”, eu disse.
Na esquina da rua Belfort Sabino com a Av. Geraldo Santana, há uma fábrica de gelo. O muro é azul, tem quase três metros de altura, e serve de morada a três grandes pinguins preto e branco desenhados na fachada. Num dia quente como aquele, a temperatura próxima dos 35 graus, os animais glaciais parecem guardar um estranho sorriso. A via é íngreme, o asfalto exala, e a calçada irregular. Rampas de garagens surgem caóticas, sem qualquer padrão de altura, saindo das garagens de casas e sobrados.
Na metade do caminho até o alto morro, já estamos ofegantes. O suor lustrando a testa e brotando em círculos escuros na camisa.
“Então, quando ele se sente mal”, disse Camilo, “ele resolve subir essa ladeira”.
“Não faz muito sentido”, eu digo.
Próximos de atingir o cume, avistamos uma figura sentada no chão, na calçada de um condomínio. Ergue uma tigela branca de sorvete cheia d’ água, lava o rosto, esfregando a mão na cara. Ao seu lado, uma vira-lata poodle e uma espécie de pequeno cajado. É seu Paulo.
Prestes a alcançá-lo, como se protegesse o dono, um cachorro marrom surgiu do canteiro. Latindo e rosnando na nossa direção. Foi a deixa pra puxarmos assunto:
“É bravo?”, perguntou Camilo.
“Não, é o jeito dele conhecer gente”.
Seu Paulo estava agitado. Braços e pernas movem-se numa espécie de febre, impelidos por um agudo estado de dor. A hérnia, como que avançando para fora do corpo, desfigura seu quadril. Parece estar desconjuntado, a bacia completamente desencaixada. Há mais ou menos seis meses ele fora atropelado, agravando sua situação. Danilo, que testemunhou o acidente, disse que aconteceu em frente ao posto.
Seu Paulo apoia o cajado no chão e tenta se levantar. As pernas tremem, mas não aceita ajuda. Balbucia frases entrecortadas, algo difícil de compreender. Os cães correm agitados ao redor do companheiro. A podlee branca se chama Barbié, o vira-lata chama-se Marrom. Os três estão incomodados com nossa presença.
Perguntamos a seu Paulo sobre os livros lá embaixo, se ele havia os abandonado. Ele pareceu não gostar da insinuação de ter abandonado os livros e entrou numa longa e confusa explicação sobre os livros e seu sumiço. No meio das frases desconexas, ele diz: “Essa minha hérnia cresce um centímetro por dia”.
Há muito movimento na rua. A passagem barulhenta engole sua voz. Perguntamos mais uma vez sobre os livros. Enquanto se move de um lado a outro, sem avançar, batendo o cajado no chão, diz que não é para ganhar dinheiro. “É um protesto contra esses intelectuais, que deixam essas enciclopédias grandes de capa dura e vermelha juntando poeira dentro de casa”. Quanto aos livros na calçada, estavam lá para todo mundo mexer e pegar. Poderíamos ficar à vontade para levar se algum título nos interessasse.
“Queremos ir lá conhecer com o senhor”, disse Camilo.
“Eu não vou para lá agora”, diz seu Paulo, com um tom de voz irritado. Queria se livrar da gente. Estava com muita dor. E sem interesse nenhum em conversar.
Perguntamos se precisava de ajuda, mas ele disse que não precisava de nada. Ia saindo, mas voltou. “Pode pegar lá”, disse, “Se gostar, pode pegar”. E saiu andando.
O passo é desconjuntado. Um tanto trôpego. Seu cajado de cabo de vassoura ajuda. Quando o apoia no asfalto, a cada passada, o cajado solta um barulho seco. Para em um ponto de ônibus, a poucos metros de distância. Senta-se. Os cachorros o rodeiam, saltam no seu colo, lambem suas canelas. Camilo e eu ficamos parados no lugar em que o encontramos, observando-o à distância, sem saber muito bem o que fazer. Seu Paulo também nos observa, disfarçadamente, talvez tentando prever nosso próximo passo. Desconfiado, ele se levanta, remexe na lata de lixo sem muita convicção, então gira o corpo e avança pela R. Osman Fonseca, uma travessa íngreme que desemboca na Av. Interlagos. Ladeira abaixo, é a pancada do cajado no chão que dá o ritmo da caminhada. Os cachorros o acompanham, avançando como dois fiéis batedores, rastreando os perigos do caminho. A rua dá um golpe à esquerda. Seu Paulo desaparece, como se tivesse submergido no chão.
Domingo, 24 de fevereiro de 2019. Depois de seguidas tardes com fortes pancadas de chuva, como é comum nessa época em São Paulo, o sol está firme. Com o exemplar de Crime e Castigo na mochila, resolvo procurar seu Paulo mais uma vez. Há pouco movimento na rua. São mais ou menos 17h15. De longe, avisto os livros, forrados por dois cobertores – um vermelho vivo, e um preto –, estendidos na calçada. Paro no farol, esperando três ou quatro carros passarem. Olhando à distância, não consigo ver seu Paulo, o que me causa certo desânimo. Não tenho tido muita sorte.
Na sexta-feira anterior, fiquei plantado por uma hora diante dos livros, fingindo esperar um ônibus, esperando que seu Paulo aparecesse. E ele não apareceu. Nesse meio tempo, uma moça, talvez funcionária do colégio, passou por ali e foi fisgada por algum dos livros expostos no chão. Se agachou, pegou-o, examinou a capa e o verso – uma coisa que não demorou nem dez segundos –, e se levantou, procurando. Não consegui reconhecer a capa, mesmo quando ela se aproximou para perguntar se eu sabia para onde o homem dos livros tinha ido.
“Não sei”, eu disse. “Também estou procurando”.
A moça me olha, depois o livro, depois me olha outra vez. “Amanhã eu deixo um troquinho para ele”, diz – num tom de quem deseja espantar quaisquer suspeitas de que estivesse furtando livros de um morador de rua –, e segue seu caminho.
Não gostaria de passar o domingo plantado no sol, sozinho, esperando, sem que nada acontecesse.
O farol se abre. Ainda na faixa de pedestres, vejo os dois cachorros, sacudindo o rabo, com as fuças enfiadas juntas na mesma tigela. É um bom sinal. Paro reparando os livros, estendidos no tapete vermelho. Um grosso volume de capa verde, que parece ser uma edição antiga das obras de Freud e Os melhores contos de Lima Barreto , da Global, destacam-se entre meia dúzia de best-sellers esquecidos. Mais adiante, ao redor do totem do ponto de ônibus, uma coleção de capa marrom, com título dourado Grande história universal (Ediclube, 1998), avança pelo chão. Parece o tipo de livro que prestigiosos advogados compram, a duzentos reais o metro, para preencher desesperadamente o vazio das estantes, e simular uma erudição que lhes falta, mas ajuda a persuadir os clientes. Na base do ponto de ônibus, há um livro didático de sociologia, ao que parece, colocado ali com certa intencionalidade. Está aberto no capítulo cinco, intitulado “Desigualdade na sociedade”, com uma reprodução preto e branco de Os Retirantes, de Candido Portinari, que ocupa metade da página.
Seu Paulo está deitado sobre o colchão, raspando o fundo de isopor de uma marmita com as mãos, entre duas volumosas pilhas de livros, parcialmente cobertas pela lona. Parece bem disposto, sem dores e receptivo. Veste uma camiseta branca, e uma bermuda de surfista, azul marinho, branca e verde-limão. Ele me cumprimenta e coloca a marmita de lado. Olha por cima dos óculos levemente caídos. “Trouxe esses para o senhor”, eu digo e entrego os livros. Seu Paulo agradece. Estuda as capas, folheia. “Se quiser pegar algum, fique à vontade”, ele diz. “Na verdade”, eu digo, “gostaria de conversar um pouco com senhor. Entender essa coisa dos livros”.
“Senta aí”, ele diz. “Fique à vontade”.
Tiro meu bloco de notas e aviso que vou precisar usar o gravador do celular. “Não sou muito bom de memória”.
“Tudo bem”, ele diz. “Pega aquele banquinho ali”.
No banco está uma garrafa d’água, um tanto molhado. Sem se levantar, ele puxa uma almofada marrom, um tanto encardida, e ajeita para que eu possa me sentar. Os exemplares de Crime e castigo continuam no seu colo. Os dedos, grossos e ossudos, são um tanto deformados.
“Se eu pudesse cuidar de todos, assim direitinho”, ele diz, olhando para os livros. “Mas estou dando conta, graças a Deus. Todo dia eu peço a Deus. Hoje ele deu um dia maravilhoso. Aí consegui colocar eles para respirar. Eu cubro eles todinhos. Fico com um cobertor pra mim, para me enrolar com a Barbié e o Marrom. Mas eu não deixo os livros se molhar, não”.
No dia de um forte temporal, um dos seus livros favoritos ficou ensopado. “Foi meu primeiro livro a se molhar todinho”, diz, “Mas consegui secá-lo. Levou duas semanas. Ele ficou todo inchado. Mas eu sequei página por página. Na sombra, um pouco no sol. É um livro que fala sobre os maiores escritores do Brasil. Academia de Letras, sabe?”
Leia mais
Nenhum comentário:
Postar um comentário