Rocío Bonilla |
As histórias devem ser realistas?
Quando você lê ao seu filho Chapeuzinho Vermelho, Cinderela ou Os Três Porquinhos não está apenas transmitindo uma história com a qual a criança se entretém, desfruta e viaja com imaginação. Além disso, e aqui está o mais interessante, você está mostrando a ele “o reflexo da vida, com a crueldade, a inveja, o egoísmo, a coragem, a generosidade e tudo que caracteriza o ser humano”, diz Jiménez. Tudo que é bom e tudo que é mau. “Talvez por isso, nas histórias, os personagens não sejam ambivalentes, isto é, não sejam bons e maus ao mesmo tempo como realmente são os seres humanos, o que ajuda as crianças a compreender mais facilmente a diferença entre a maldade e a bondade” reflete Jiménez.
E assim pensa a professora que as histórias deveriam ser, pois se não mostram a realidade como ela é perdem a capacidade de responder às perguntas que sempre acompanharam o ser humano, aquelas que giram em torno da tristeza, do amor, da inveja... Neste sentido, ela defende com firmeza os contos de fadas e sua linguagem simbólica, e contraria a opinião de que “esse tipo de relato narra histórias simplórias, onde não existem problemas e tudo é idealizado”. Segundo ela, “se olharmos para os contos de Andersen ou dos irmãos Grimm veremos muitas coisas que seriam perversas: bruxas, ogros, atrocidades, crimes... Existe muito drama e muito conflito, algo de que as crianças tendem a gostar”.
Mas o enfoque próprio dos contos tradicionais não costuma ser visto em muitas histórias infantis modernas nas quais, de acordo com Jiménez, “o que encontramos são instruções para administrar as emoções, para controlar os estereótipos e os gêneros, e para trabalhar os valores, quando, na verdade, o conto é algo íntimo, que cada pessoa interpreta de seu próprio interior”. A professora diz que direcionar esses sentimentos através da literatura é como fornecer uma receita para a vida. De acordo com ela, e por muito boas intenções que se tenham ao fazê-lo, algumas das histórias que se contam agora tratam sobre como devemos instruir a criança para que veja a vida de “forma bonita”, ou seja, como um lugar onde não existem decepções, conflitos ou dor: “Uma mentira que faz parte dessa nova política de não incomodar. Uma tarefa que fazem suprimindo o que é característico do conto tradicional, a transgressão, o simbolismo, a emoção, a ambiguidade...”
Além de mostrar à criança como é o mundo que a rodeia, cada história encerra uma mensagem única, “de forma simbólica, ensina a criança como lidar com as vicissitudes do dia a dia, aliviar os medos e enfrentar as ansiedades que certas incertezas podem provocar”, diz a professora. Neste caso é preciso levar em conta que o ensinamento que cada criança tira não é sempre o mesmo, pois cada um interpreta a história à sua maneira.
“O cérebro de cada criança se forma a partir de suas próprias experiências, mas também observando os exemplos da vida dos adultos, assim como as histórias que lhe contam. Estas têm um peso muito importante, embora não chegue a ser determinante”, esclarece Moisés de la Serna, doutor em Psicologia, escritor e mestre em Neurociência. Outra função que a Neurologia atribui às histórias é ajudar a criança a entender as dimensões do tempo e do espaço. Através da estrutura sequencial do relato, o cérebro cria lembranças que registra em ordem cronológica, o que, em última instância, pressupõe a existência de um passado, um presente e um futuro. É uma estrutura simples, mas básica para a vida social.
Segundo de la Serna, as histórias oferecem outra qualidade interessante para o desenvolvimento emocional das crianças. O especialista vê nesse tipo de histórias “uma maneira de aprender a entender que os outros podem ter diferentes formas de pensar, intenções e motivações”. Assim, o psicólogo diz que “a criança aumenta suas habilidades sociais desenvolvendo o que é conhecido como teoria da mente, isto é, a capacidade de saber que os outros têm pensamentos diferentes dos que ela tem”. Muito próxima dessa ideia, a professora Jiménez relaciona outra capacidade mais com a leitura de histórias, a de ensinar a se colocar na pele do outro (algo que nem sempre é benéfico), “essa empatia tão necessária em nossos dias”. Todas essas qualidades podem ser encontradas em maior ou menor grau nas histórias de todas as épocas, embora seja verdade que com nuances significativas que variam com o momento histórico.
Jiménez descreve uma evolução interessante desse tipo de histórias, com ênfase em alguns aspectos particularmente relevantes. Para começar, temos as “histórias com moral de Perrault, nas quais se percebe a crueldade e há inclusive finais dramáticos. Mais tarde, no século XIX, os irmãos Grimm publicaram essas mesmas histórias suavizando o final para evitar tanta ‘crueldade’. E no século XX, a Disney também transformou várias dessas histórias para levá-las ao cinema”, diz. E as mulheres sabem bem que o cinema nem sempre conta as coisas como são. Finalmente, a especialista acredita que, desde a década passada, muitas dessas histórias primigênias foram manipuladas ou adaptadas para responder a necessidades diferentes, para se adequarem à época atual.
A doutora em Pedagogia, professora da Universidade Rovira i Virgili, escritora e contadora de histórias Maria Concepción Torres acredita que “os elementos do conto tradicional ainda aparecem em muitas narrativas atuais, enquanto muitos deles tentam apresentar situações reais próximas do menino ou da menina, ou do jovem ao qual se dirige a história: suas vivências, suas preocupações... que não são as mesmas de 10 ou 20 anos atrás”. Daí a mudança de enfoque, que desafia a tradição e tem um reflexo tangível fora das páginas das histórias para crianças.
Por exemplo, uma escola em Barcelona decidiu retirar de sua biblioteca Chapeuzinho Vermelho e A Bela Adormecida, junto com outros 200 títulos (30% dos livros do jardim da infância) por conterem histórias “tóxicas” do ponto de vista de gênero. É uma decisão que convida os pais a considerar se devem ler essas histórias para seus filhos ou se isso ajudaria a perpetuar o machismo na sociedade. Em outras palavras, uma notícia que mostra a enorme importância atribuída aos contos infantis na formação da sociedade.
Mas os contos, como qualquer mensagem, não devem ser tirados do contexto. “As mensagens dessas histórias devem ser situadas no momento de sua criação para poder compreendê-las. Quando as transferimos para a nossa realidade é quando se faz essa análise de estereótipos sexistas”. Torres defende os contos tradicionais e considera que devem continuar sendo transmitidos para poder contrastar a história com a realidade e, assim, gerar um pensamento crítico. E isso, ironias da literatura, certamente ajuda a ser mais livre no mundo real.Eva Carnero
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