“Antecipadamente, pedimos desculpas pelo corte de 25% no livro, mas a situação das livrarias brasileiras está difícil”, escreveram os livreiros na ocasião.
Fiquei radiante ao recebê-lo. Veio com uma carta simpática dos editores, com um postal e um jornalzinho da cidade imaginária de Antofágica — que é, aliás, o nome da editora. Achei graça.
Uma editora recém-nascida que se pressupõe cidade sonha alto; mas uma editora recém-nascida que consegue produzir um primeiro lançamento tão satisfatório tem competência para materializar seus sonhos, e convocar leitores para sonhar junto.
Não digo isso só pela cara bonita, porque ela ajuda mas está longe de ser o mais importante; digo pelo conjunto todo, do design de Pedro Inoue à arte de Lourenço Mutarelli, passando pela tradução impecável de Petê Rissatti e pelos textos de Mutarelli, Rissatti e do professor Flávio Ricardo Vassoler, que buscam um público novo para um clássico que, em tese, dispensaria apresentações.
Abri o livrinho, e fui fisgada pela abertura, que mistura a primeira frase às ilustrações: “Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso.”
Só o fechei horas depois, quando terminei a leitura.
Li “A metamorfose” quando tinha uns 15 anos, e ao mesmo tempo me lembrava e não me lembrava dele. Lembrava como todos nós nos lembramos: Gregor Samsa está no nosso inconsciente coletivo, faz parte da civilização ocidental.
Mas não me lembrava mais de que obra extraordinária é essa, e de como é merecida a sua reputação. É surpreendente como este pequeno romance continua atual, e como consegue despertar tantos sentimentos diferentes. Todos nós nos sentimos Gregor Samsa em algum momento, em algum lugar: mal-adaptados, inconvenientes, incompreendidos, nossas melhores intenções interpretadas pelo avesso.
Leiam Kafka, releiam Kafka.
______
Tendo sido sempre uma traça exigente, eu me frustrava com as nossas edições comerciais, e sentia uma bruta inveja de quem vivia em países onde entrar em livrarias era uma experiência ao mesmo tempo emocional e estética.
Hoje isso é passado. Livros em papel precisam de uma justificativa forte para existir num mundo de Kindles e de celulares, e a saída de várias editoras tem sido transformar a sua materialidade em objeto de desejo. Sim, é possível baixar “A metamorfose” de graça para um Kindle; mas nada substitui a sensação de ter um pequeno tesouro em mãos.
Cora Rónai
Nenhum comentário:
Postar um comentário