sexta-feira, junho 21

Relendo 'Kafta'

Essa semana chegou aqui em casa um pacotinho pequeno. Lá dentro estava um livro vermelho, com uma figura negra e letras em branco na capa dura — mas, ainda antes de abri-lo por completo, reconheci o volume que, há uns dois meses, foi enviado pelo pessoal da Leonardo Da Vinci ao ministro Weintraub, da Educação, com um bom pedaço cortado.

“Antecipadamente, pedimos desculpas pelo corte de 25% no livro, mas a situação das livrarias brasileiras está difícil”, escreveram os livreiros na ocasião.

Adoro livrarias, adoro livreiros e adorei a ideia, ainda que tenha sofrido vendo a foto do livrinho cruelmente contingenciado. Fiz uma nota mental de que deveria ir atrás daquele "Kafta" e, claro, esqueci, pois as minhas notas mentais não são de confiança.

Fiquei radiante ao recebê-lo. Veio com uma carta simpática dos editores, com um postal e um jornalzinho da cidade imaginária de Antofágica — que é, aliás, o nome da editora. Achei graça.

Uma editora recém-nascida que se pressupõe cidade sonha alto; mas uma editora recém-nascida que consegue produzir um primeiro lançamento tão satisfatório tem competência para materializar seus sonhos, e convocar leitores para sonhar junto.

Não digo isso só pela cara bonita, porque ela ajuda mas está longe de ser o mais importante; digo pelo conjunto todo, do design de Pedro Inoue à arte de Lourenço Mutarelli, passando pela tradução impecável de Petê Rissatti e pelos textos de Mutarelli, Rissatti e do professor Flávio Ricardo Vassoler, que buscam um público novo para um clássico que, em tese, dispensaria apresentações.

Abri o livrinho, e fui fisgada pela abertura, que mistura a primeira frase às ilustrações: “Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso.”

Só o fechei horas depois, quando terminei a leitura.

Li “A metamorfose” quando tinha uns 15 anos, e ao mesmo tempo me lembrava e não me lembrava dele. Lembrava como todos nós nos lembramos: Gregor Samsa está no nosso inconsciente coletivo, faz parte da civilização ocidental.

Mas não me lembrava mais de que obra extraordinária é essa, e de como é merecida a sua reputação. É surpreendente como este pequeno romance continua atual, e como consegue despertar tantos sentimentos diferentes. Todos nós nos sentimos Gregor Samsa em algum momento, em algum lugar: mal-adaptados, inconvenientes, incompreendidos, nossas melhores intenções interpretadas pelo avesso.

Leiam Kafka, releiam Kafka.
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Quando não existiam e-books, os livros impressos podiam se dar ao luxo de ser descuidados. Uma boa capa dava conta da sedução do leitor: mancha gráfica, tipologia e qualidade do papel eram muitas vezes irrelevantes.

Tendo sido sempre uma traça exigente, eu me frustrava com as nossas edições comerciais, e sentia uma bruta inveja de quem vivia em países onde entrar em livrarias era uma experiência ao mesmo tempo emocional e estética.

Hoje isso é passado. Livros em papel precisam de uma justificativa forte para existir num mundo de Kindles e de celulares, e a saída de várias editoras tem sido transformar a sua materialidade em objeto de desejo. Sim, é possível baixar “A metamorfose” de graça para um Kindle; mas nada substitui a sensação de ter um pequeno tesouro em mãos.
Cora Rónai 

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