domingo, junho 30

Escritores nas termas

Não devem existir no mundo muitos eventos literários que aconteçam em antigos hotéis de termas. Por coincidência saí de um deles, na pequena cidade do Luso, em Portugal, diretamente para um outro, o Fliaraxá, que decorreu no Grande Hotel de Araxá, em Minas Gerais, entre os dias 19 e 23 de junho.

O Grande Hotel do Luso e o Grande Hotel de Araxá começaram a ser construídos no mesmo ano, em 1938, muito à imagem do Grande Hotel Gellert, de Budapeste, que comemorou recentemente o seu centenário e foi o edifício inspirador de “O Grande Hotel Budapeste” (2014), de Wes Anderson.


Hospedei-me no Gellert na virada do século, quando a democracia húngara dava os primeiros passos. Os quartos imensos ainda exibiam elegantes elementos de arquitetura art deco, mas eram frios e úmidos, com as alcatifas manchadas e rasgões nas cortinas. Todo o magnífico edifício parecia ter sido saqueado, durante décadas, por sucessivas hordas de bárbaros. Os recepcionistas continuavam a atender os clientes com a lendária má vontade dos funcionários públicos, muito mal pagos, dos regimes do antigo bloco de Leste. As termas, contudo, mantinham o fausto dos primeiros tempos, quando Budapeste era ainda um dos dois corações do Império Austro-Húngaro (o segundo maior país da Europa, depois do Império Russo), com as suas colunas em mármore, as paredes cobertas de mosaicos coloridos, os vitrais nas abóbadas altas e as cinco piscinas, com água a diferentes temperaturas.

O charme da decadência é comum a todos estes grandes hotéis. Livros combinam muito bem com tal ambiente. Afonso Borges, o idealizador da Fliaraxá, deveria pensar em criar uma rede de festivais literários em grandes hotéis de termas, incluindo o Gellert (já estou me candidatando).

Em Araxá, a festa juntou cerca de cem escritores, que falaram para perto de trinta mil leitores. Estive na primeira edição do festival, há oito anos. De então para cá, a mudança mais impressionante não teve tanto a ver com o aumento do número de escritores e de leitores, mas com a forma como esses leitores se sofisticaram. Algo semelhante vem acontecendo em todas as comunidades que abrigam festivais de literatura, desde Olinda e Recife (com a Fliporto), até Cachoeira (com a Flica). A multiplicação de festivais literários vem melhorando o Brasil.

Para um escritor, não há melhor surpresa do que a de encontrar um bom leitor num lugar remoto. Um bom leitor é aquele que nos coloca questões inquietantes, capazes de mudar a forma como lemos os nossos próprios livros. Lembro-me sempre de um adolescente, um menino esguio e desamparado, que conheci numa escola, num bairro muito pobre de Brazzaville, na República do Congo. Logo na primeira pergunta compreendi que seria eu a beneficiar daquela conversa. Assim foi. Ainda hoje defendo teses, sobre um dos meus romances, que aprendi com ele.

Nas fumegantes piscinas do Gellert veem-se todos os dias senhores muito gordos, de muita idade, a jogar xadrez. É uma tradição ancestral, a de jogar xadrez nas termas. Nas piscinas do Luso e de Araxá não vi ninguém jogando xadrez. Em contrapartida, vi alguns leitores. Imagino rodas de banhistas discutindo literatura. Acho bonito.

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