Arzu Balcı |
Emília mede o pulso, indaga, sonda, ausculta os movimentos, 99 embarcam nos transportes, 98 voltam ao fim do dia, noutros dias ao contrário, embarcam 99 voltam 100, tudo certo. A fresta da escotilha por onde Emília espreita o mundo é uma pequena frincha que funciona como dispositivo de sentido único: de dentro para fora, nunca o inverso.
Emília vai entornando para dentro do seu caderno de folhas com cheiro aquilo que só se vê dali, só se pode ver dali, do alto de um terceiro andar; as ideias vão ficando por ali como que num longo processo de digestão, metabolizando lentamente. Tal como o funcionário da câmara que apanha os panfletos de papel que aquela mulher distribui como se fosse o corpo de Cristo, que depois haverão de alimentar a grande máquina de reciclagem de papel que se encontra ruidosa e monstruosamente instalada longe dali, da praça de onde Emília entende o mundo, também Emília se encontra onde tem de estar, também Emília parece estar coordenada com os cidadãos, no lugar estratégico de onde apanha as ideias mal estas caem ao chão, ideias que escapam ao farejar dos ratos da noite, ideias que só de ali se apanham, ideias que depois servem para alimentar o caderno de flores de cheiro que as há de digerir e encher os papéis que a máquina de reciclar vomitará em branco. E a armada implacável de soldados de fato e pasta cinza-rato pode continuar a esgrimir os restos que os ratos lhe deixam por aí, porque não hão de faltar versos e prosas de jornal e canções de amor e protesto e séries por episódios para alimentar a fornalha dos dias, enquanto houver uma Emília em cada praça, em cada centro deste mundo.
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