domingo, fevereiro 28

O corpo como o derradeiro lugar da escrita

Há três dias, viajando entre a Ilha de Moçambique e Nampula, sob uma violenta tempestade, vi de relance uma mulher transportando uma árvore às costas. A imagem passou, num relâmpago, como se tivesse saltado de um sonho. Quando me voltei para confirmar, não distingui senão uma densa cortina de água caindo sobre o asfalto quente.

Nas horas seguintes, a imagem daquela mulher continuou a crescer dentro de mim. Vi-a carregando um vaso de barro, com uma mangueira pequena, porém frondosa, cheia de mangas maduras. A mulher caminhava pisando a sombra da mangueira. Fechando os olhos apaguei a chuva, e fui reconstruindo a paisagem. Vi primeiro uma outra estrada, não de asfalto, mas de terra batida, uma ferida vermelha abrindo-se por entre o fulgor cruel das espinheiras. Logo a seguir enxerguei os guerrilheiros esfarrapados, segurando com esforço o desalento das armas. E então, lá estava ela, uma figura frágil e firme, erguendo contra os soldados os largos olhos febris. Quando cheguei a Nampula já tinha um conto pronto.

José Saramago afirmava que a ideia para a escrita d’“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” surgiu a partir do título, e que este lhe ocorreu quando, ao atravessar uma rua, em Sevilha, leu a frase na confusão de manchetes de uma banca de jornais. Curioso, aproximou-se da banca, mas não encontrou a frase. Saramago convenceu-se de que se tratara de uma ilusão de ótica. Fato é que o romance se foi organizando, ao longo dos meses seguintes, em redor daquela ilusão milagrosa. 


Lamento ter deixado de escrever à mão — naquela época, ao reler os meus rápidos gatafunhos, era comum que uma frase me sugerisse outra melhor. Ou seja: eu lia errado, mas o erro acabava sendo muito mais interessante do que o acerto. Depois que comecei a sofrer de vista cansada, voltei a me beneficiar do erro, agora não só quando tento ler textos meus no computador, mas inclusive quando leio livros ou jornais. Surgem-me com frequência manchetes extraordinárias. O mundo, sempre que tento ler sem óculos, ganha contornos inusitados. Penso muito em José Saramago.

Por vezes tenho surpresas. Ontem mesmo li: “Descoberta frase que Anitta tatuou no ânus.” Ri, convencido de que o meu espírito perverso estava me iludindo, e fui à procura dos óculos. Passei meia hora abrindo e fechando gavetas até que ao passar diante de um espelho percebi que tinha os óculos no rosto. Voltei às páginas do jornal. Sim, lá estava: “Descoberta frase que Anitta tatuou no ânus.” Não sabia que era possível tatuar o ânus. Nunca imaginei que alguém o quisesse fazer. Nunca imaginei ler um dia uma manchete como aquela.

Fiquei um tempo pensando naqueles leitores tão exclusivos. Fiquei pensando se gostaria de ter uma frase minha tatuada no ânus de alguém. Fiquei pensando no corpo como o derradeiro lugar da escrita. Fiquei pensando se não deveria quebrar os meus óculos. Acho que prefiro viver na minha realidade inventada — tantas vezes estranha, tantas vezes incompreensível e misteriosa —, do que enfrentar aquela em que estamos mergulhados.

“Verás prodígios!”, assegurou-me a minha avó pouco antes de morrer. Provavelmente não se referia a isto.

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