sábado, fevereiro 20

A Cila já não mora aqui

Continua quase tudo igual na praceta, ainda que o mundo tenha mudado tanto à sua volta. O novo milénio leva já duas décadas e a praceta mantém-se imperturbável nos anos 80 do século passado, moradias com telhados de várias águas, pátios feitos com pedaços de pedra que formam puzzles caóticos, quintais apertados, indecisos entre horta e jardim, ecos de cães a ladrarem acorrentados e de galinheiros abandonados. Tendo a serra, à espreita a norte, e o mar, escondido a sul, o pouco harmonioso conjunto das oito casas assistiu impávido às vicissitudes das vidas dos seus moradores, pequenos empresários, taxistas, empregados de alpaca, que escolheram viver afastados do centro das cidades em troca de um pedaço de terra. Viu-os casar os filhos e batizar os netos, mudar de carro, remodelar as casas, um acrescento aqui, um arrebique acolá, adoecer, morrer, casamentos e divórcios levaram alguns, trouxeram outros, baralhando gerações. No longo muro, à direita de quem entra, os grafites gravaram as letras dos miúdos que se mascaravam em carnavais de arromba, os mesmos que anos antes ou depois davam tombos ao aprenderem a andar de bicicleta ou de skate, os mesmos que anos antes ou depois se sentavam nos passeios a namorar e a fumar os primeiros cigarros. Os serviços camarários atribuíram números novos às casas e renomearam a praceta, inaugurou-se o CascaiShopping, fez-se a marina, implodiu-se o Estoril-Sol, as empresas de telecomunicações foram riscando as fachadas com fios e mais fios, mas nunca nenhuma família desertou por completo da praceta.

Houve, portanto, um triste e indignado espanto quando, no início de 2020, a Cila decidiu pôr a sua casa à venda, a segunda quando se vem lá de baixo. Mesmo sem placa a anunciar, levantou-se logo um sururu, Haverá sítio melhor para viver do que a nossa praceta?, perguntava incrédula a d. Emília, se queremos um ovo ou um cibo de sal é só bater a uma porta, podemos sempre contar uns com os outros numa aflição.

Semanas depois, o Volkswagen cinzento metalizado deixou de estar estacionado à entrada da praceta. A Cila ligou passado um tempo a despedir-se.

A mudança trazia também a Natália, da casa da esquina, preocupada, Quem virá para cá?, sempre fomos os mesmos, os seus pais foram os últimos a chegar, parece que foi ontem e já passaram mais de 30 anos, a menina ainda se lembra?

(em mais lado algum sou ainda a menina que fui)



A casa da Cila foi vendida a um investidor, disse-me a Sónia do Dionísio, Vão mudá-la toda, se calhar até lhe sobem um piso, parece que anda tudo a querer chegar ao céu. E, de facto, em julho, no lugar do Volkswagen cinzento metalizado, ali estava um contentor para o entulho, onde ao som de ensurdecedores martelos e berbequins iam sendo despejadas golfadas do interior despedaçado da casa que aconchegara a Cila e os seus três filhos. O ímpeto destrutivo prosseguiu para o exterior, quebraram o hexágono de vitrais e as outras janelas, arrancaram-lhes as ombreiras, as portas desapareceram. Quando o barulho parou, a casa era um corpo esventrado, uma carcaça cega e escancarada. Nuas, as paredes guardavam ainda as marcas das estantes e dos armários feitos à medida, das molduras dos quadros e das fotografias de família.

(ao espreitar lá para dentro, dei-me conta de que nunca entrara na casa. estivera, várias vezes, ao portão por causa disto e daquilo, mas não passara dali. o mesmo acontece em relação a todas as outras casas dos vizinhos da praceta)

O enorme e compacto canteiro de estrelícias escapara à destruição. O investidor talvez não se comovesse com a beleza das flores, flechas laranjas e azuis trasvestidas de aves do paraíso, mas por certo teria interesse em manter aquele massivo arbustáceo que, interpondo-se entre a sala e a rua, permitia àquela maior privacidade. Estava enganada. No final de uma quentíssima tarde de agosto, dei com as estrelícias estraçalhadas no passeio. Folhas, talos, longas raízes formavam um monte de lixo verde que agonizava ao sol. Sob o olhar incrédulo dos operários, a cimentarem a cova que ficara aberta na terra, arrastei praceta acima as estrelícias mutiladas. Foram precisas várias viagens para levá-las todas até ao quintal da casa da minha mãe. O Shugi, o gato semivadio da Isabel, o verdadeiro dono da praceta, veio vigiar-me intrigado, enquanto eu dava de beber às raízes, cortava as folhas secas, abria buracos na terra dura, tentando replantar as estrelícias. Não vai dar nada, foram arrancadas sem qualquer cuidado, estiveram demasiado tempo ao sol e já estavam maltratadas pelas obras, disseram-me vozes avisadas, incluindo a do sr. Manuel, o jardineiro que de quando em quando vem ajudar-me. Apesar da minha vigilância diária, as folhas continuavam a secar e as hastes quebravam-se com o vento. Estão mortas, disse o Pedro. E abraçou-me como se eu fosse uma alma sensível.

(talvez só se morra mesmo quando todos desistem de nós)

Setembro acabou e as obras na casa da Cila também, as grades foram pintadas de um preto armado em moderno, as janelas são agora vidros sem graça nenhuma e aposto que lá dentro há uma ilha na cozinha e armários brancos iguais aos de todas as casas recentemente remodeladas, os investidores não se interessam pelo passado nem antecipam o futuro, servem-se apenas do nada que o presente é. E as estrelícias continuavam mortas.

Felizmente a vida não é literatura e permite-se desfechos previsivelmente redentores. Perto do Natal, num dos curtos dias de frio e chuva, surgiu desembestada da terra uma haste com tanto vigor que me levou a acreditar que havia uma música heroica a acompanhá-la. Depois vieram as flores, Onde é que arranjaste tantas estrelícias tão bonitas?, perguntou-me a minha mãe.

(talvez não tenham importância os princípios das histórias e sejamos mais felizes estando sempre a esquecê-los)

A antiga casa da Cila continua tristemente condecorada com um cartaz, Vende-se. No sítio onde ainda sobrarão raízes das estrelícias, uma enorme poça de água parada enegrece o cimento que as abafa.

(sem o fluido atrevimento do Shugi nem a apegado esforço das estrelícias, passo pelo lado de fora da vida dos que me rodeiam)

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