quinta-feira, fevereiro 18

Aghwii, o monstro celeste

Katsushika Hokusai
Quando estou a sós em meu quarto, costumo aplicar sobre o meu olho direito uma venda preta do tipo usado por piratas. Embora não pareça, sou na verdade quase cego desse olho. Quase, mas não totalmente. Por conseguinte, se tento ver com ambos os olhos, surgem-me dois mundos perfeitamente sobrepostos: um, luminoso e nítido, e outro, sombrio e indistinto. Eis por que, andando por vias perfeitamente pavimentadas, sou às vezes assaltado por súbita sensação de perigo e insegurança que me prega ao chão, assim como a um rato que acabou de sair do esgoto; em outras, sou capaz de detectar sombras de cansaço e infortúnio nas feições alegres de um amigo e arruinar nosso diálogo até então fácil e inconsequente com o veneno de meu aflito tartamudear. Creio, porém, que me habituarei à situação com o tempo. Caso isso não aconteça, pretendo usar o tapa-olho preto não só em meu quarto, como também na rua e na presença de amigos. Estranhos poderão até achar que me dedico a um tipo de brincadeira antiquada e voltar-se com sorriso compassivo, mas já passei da idade de me incomodar com picuinhas.

Pretendo agora contar-lhes como foi a experiência de ganhar meu próprio dinheiro pela primeira vez, e se lhes falei antes do meu pobre olho direito é porque, no instante em que o feri num acidente violento, lembrei-me, de maneira súbita e totalmente desprovida de lógica, dessa experiência acontecida há dez anos. E, lembrando, libertei-me do ódio ardente que me dominava por completo naquele momento. Quanto ao acidente, pretendo falar-lhes disso por último.

Dez anos atrás eu possuía visão vinte em ambos os olhos. Agora, um deles está arruinado. O tempo passou, o tempo fez de trampolim o olho ferido por uma pedrada e saltou. Na época em que conheci esse homem, um louco sentimental, eu ainda via o tempo por um prisma infantil. Nunca até então experimentara a sensação brutal de ter um tempo a me contemplar pelas costas e outro tempo a me tocaiar mais adiante.

Dez anos atrás eu tinha dezoito anos, um metro e setenta de altura e pesava cinquenta quilos. Acabara de entrar na faculdade e procurava um biscate.

***

Recém-ingressado na faculdade, eu ainda não me havia inscrito no centro mediador de empregos para estudantes, de modo que bati à porta de conhecidos em busca de trabalhos temporários. E assim, apresentado por meu tio, cheguei a certo banqueiro que me indicou o emprego. O referido banqueiro me perguntou:

— Você já assistiu ao filme Harvey? — Assisti — respondi, tentando trazer aos lábios um sorriso de devoção que contivesse a dose certa de reserva, como convém a qualquer indivíduo em vias de obter seu primeiro emprego. O filme tinha James Stewart no papel do homem que vive na companhia de um coelho imaginário do tamanho de um urso. Quase morri de tanto rir ao assistir a ele.

— Pois ultimamente meu filho anda desse mesmo jeito, assombrado por um monstro. Até largou o emprego e se enclausurou em casa. Eu gostaria que ele saísse um pouco, mas alguém teria de acompanhá-lo. Você faria isso para mim? — indagou o banqueiro sem me devolver o sorriso.

***

Quando me apresentei ao compositor na semana seguinte, ele fixou em mim os olhos castanho-escuros encovados e me atordoou ao comentar em tom desprovido de censura:

— Soube que andou emboscando a enfermeira para perguntar a respeito do meu visitante que desce do céu. Como você leva a sério o seu trabalho!

Nesse dia, tomamos o trem e viajamos cerca de trinta minutos na direção oposta, rumo aos arrabaldes, para visitar um parque de diversões montado à margem do rio Tama. Lá chegando, nós dois andamos nos mais variados tipos de brinquedo. Para minha sorte, no momento em que o bebê do tamanho de um canguru desceu do céu para perto de D, ele andava sozinho numa roda-gigante.

Preso a uma estrutura gigantesca semelhante a um catavento, o assento de madeira em forma de barco afastava-se lentamente do chão e ganhava o céu.

Sentado num banco em terra firme, eu via o meu patrão voltado para o lado e conversando com o interlocutor imaginário lá no alto. D me fez correr diversas vezes à bilheteria para renovar os tíquetes da roda-gigante e só se apeou quando o ente que o visitava retornou ao céu.

***

— Neste momento, eu mesmo não estou vivendo, ao menos de modo consciente, dentro do tempo presente. Você conhece as regras das viagens ao passado realizadas em máquinas do tempo? Um indivíduo que viajou para um mundo que existiu há dez mil anos, por exemplo, não pode fazer nesse mundo nada que deixe rastros. Caso faça, provocará distorções, ainda que mínimas, na história mundial dos últimos dez mil anos, pois ele não existiu realmente naquele tempo. E como eu já não vivo no tempo presente, não posso fazer nada que deixe rastros da minha passagem por ele.

— E por que o senhor deixou de viver no tempo presente? — perguntei.

No mesmo instante meu patrão fechou-se em si e, transformado em dura bola de golfe impenetrável, ignorou-me. Arrependi-me em seguida da minha indiscrição. Eu fora levado a ultrapassar os limites convencionais e a fazer esse tipo de pergunta porque o problema que afetava D despertara em mim um interesse exagerado. A enfermeira tinha razão: eu não devia tomar conhecimento dos seus problemas, ou simplesmente manter-me indiferente. Naquele instante, decidi que não me meteria mais, ao menos voluntariamente, nos assuntos particulares de meu patrão.

A nova linha de conduta mostrou-se um sucesso nas diversas vezes em que andei por Tóquio em companhia do compositor. Mas apesar da minha decisão de não me meter mais nos assuntos de meu patrão, ocasiões havia em que, inversamente, seus assuntos se precipitavam ao meu encontro. Certo dia, meu patrão me forneceu um endereço ainda desconhecido para mim, e para lá nos dirigimos de táxi. O endereço era o de um apartamento luxuoso, com estrutura de hotel, situado para os lados de Daikan-y ama. Lá chegando, meu patrão me mandou pegar o elevador e subir sozinho para apanhar um pacote cuja entrega havia sido combinada previamente. Ele mesmo ficou à espera numa cafeteria do andar térreo. A pessoa encarregada de me entregar o referido pacote morava sozinha no apartamento e era a mulher de quem D havia se divorciado.

***

Afinal, ela acabou me perguntando:

— D ainda vê o espectro? — Sim, senhora. Diz que é um bebê do tamanho de um canguru, usa roupinha branca de algodão e se chama Aghwii. Foi o que a enfermeira me contou. Normalmente, ele flutua no espaço e desce de vez em quando para ficar perto do senhor D — respondi entusiasmado à primeira questão sobre um assunto de meu conhecimento.

— Ah..., Aghwii. É o fantasma do nosso bebê morto, não é? Sabe por que ele se chama Aghwii? Porque a única coisa que esse bebê disse nos poucos dias que viveu foi: aghwii. A própria ideia de dar esse nome, Aghwii, ao espectro do bebê que o atormenta, mostra como D é complacente consigo mesmo, não acha? — disse a mulher, com um sorriso frio oculto na voz. Da sua boca, chegou-me um odor acre e desagradável.

— Nosso bebê nasceu com uma protuberância enorme na área posterior do crânio, grande a ponto de parecer que tinha duas cabeças, sabe? E o médico diagnosticou erroneamente uma hérnia cerebral. Ao saber disso, D conversou com esse médico e matou o bebê para proteger-nos, a ele e a mim, dessa terrível infelicidade. Creio que, por mais que o bebê chorasse, eles só lhe deram água com açúcar. Acho que D agiu com extremo egoísmo, pois o matou apenas por não querer assumir a criação de um ente com funções compatíveis às de um vegetal (a previsão foi do médico). Contudo, durante a necropsia, descobriram que a protuberância era apenas um abscesso benigno, sabe? O choque foi tão violento que D começou a ter essas visões. A noção do próprio egoísmo tornou-se insuportável para ele. E do mesmo jeito que ele a princípio negou ao bebê o direito de viver, passou depois a negar categoricamente a si próprio o mesmo direito. Mas não se suicidou. Apenas fugiu da realidade e abrigou-se num mundo imaginário. Mas ainda que fuja da realidade, ele não será nunca capaz de limpar o sangue dessa mão que matou o bebê, não é mesmo? E por isso, eu digo: andar por aí com as mãos sujas de sangue a chamar o espectro de “Aghwii” é ser complacente demais consigo mesmo.

***

E então, chegou o último dia da minha relação com D. Era véspera de Natal. Lembro-me disso muito bem, porque D me deu um relógio e se escusou por estar me entregando o presente um dia antes da data certa. Além disso, nevou durante cerca de trinta minutos no começo daquela tarde. Eu e o meu patrão tínhamos ido a Ginza, mas, como o tráfego já andava intenso, resolvemos sair daquela área e ir ao porto de Tóquio. D queria ver o cargueiro chileno que devia ter aportado naquele dia. Imaginei o espetáculo da neve acumulando-se sobre o navio e também me entusiasmei. Resolvemos então ir andando de Ginza rumo ao porto. No momento em que passávamos diante do teatro Kabukiza, D ergueu o olhar para o céu escuro e sujo que prenunciava nova nevasca. Nesse momento, Aghwii desceu para o lado dele e eu, como sempre, caminhei a alguns passos de distância de meu patrão e de seu espectro. Logo, tínhamos de atravessar um amplo cruzamento. Mas o sinal mudou no instante em que D, acompanhado de seu espectro, pôs o pé para fora da calçada. D parou.

Caminhões abarrotados com encomendas de final de ano passaram a toda a velocidade como uma manada de elefantes. Foi nesse exato instante que D, com um grito repentino, saltou diante dos caminhões com as duas mãos estendidas, como se pretendesse acudir alguém, e foi instantaneamente jogado longe. Eu apenas fiquei olhando, aturdido.

— Foi suicídio! Ele se matou! — disse um desconhecido ao meu lado, com voz trêmula.

Eu, porém, não tive tempo de ficar cogitando se tinha ou não sido suicídio.

***

E então, nesta primavera, eu passava por uma rua quando, subitamente e sem motivo algum, fui atacado a pedradas por um bando de crianças espavoridas. Não sei o que as assustou daquele jeito, mas o fato é que uma pedra do tamanho de um punho, lançada por uma das crianças que o medo tornara extremamente agressiva, acertou-me o olho direito. Com o impacto, dei com um joelho em terra e senti o peso de um naco de carne na mão que levei ao olho ferido. Com o olho são, vi que gotas de sangue caíam sobre o asfalto e, como ímãs, atraíam a poeira próxima. Nesse exato instante, senti às minhas costas certa presença saudosa e enternecedora do tamanho de um canguru alçar voo rumo ao céu de tocante pureza azulada, onde ainda demoravam os rigores do inverno. Adeus, Aghwii!, gritei em meu íntimo, surpreendendo-me a mim mesmo. Dei-me conta então de que o ódio por meus pequenos e apavorados algozes se dissipava e que, no decorrer destes últimos dez anos, o tempo se encarregara de encher meu céu de inúmeras coisas de brancura ebúrnea, nem todas a brilhar candidamente. Ao ser ferido pelas crianças e pagar um tributo realmente gratuito, eu conquistara, ainda que por um momento fugaz, a capacidade de sentir junto a mim um ser descido do meu céu.
Kenzaburo Oe

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