quarta-feira, fevereiro 3

Livro novo é o que ainda não li

Denisse Arreola
“Mas este livro é usado?”

Foi o que perguntou o meu filho ao ver que um dos seus livros escolares estava meio fora de prumo. Fiquei olhando para ele com cara de espanto. Nunca tinha me ocorrido que a vida pregressa de um livro fosse importante. Para mim, livro usado é o livro que já li e livro novo é o que ainda não li. Nada mais. Talvez seja muito pragmático, mas se o que tenho nas mãos foi lido por mil pessoas antes, não faz — se não tiver páginas faltando — a menor diferença, e digo até que é um bom sinal: livro ruim se mantém impecável para sempre.

A reação do meu filho mostrou outra falha —minha — na educação dele: não parei para contar que livros já lidos se compram e se vendem, não expliquei o que é um sebo e nunca avisei que muitos dos livros didáticos que ele teve também eram de segunda mão. Não me pareceram informações relevantes, afinal aprendi na prática —sou do século passado — que o livro não é descartável, não fica velho. O conceito de que um livro precisa ser virgem, imaculado, cheirando a novo me parece uma tara muito particular, coisa de colecionador perfeccionista, não de leitor contumaz. Livro é como jogo do bicho, vale o escrito.

A pergunta dele também me fez ver a necessidade de levá-lo a mais bibliotecas. Não só as famosas, atrações turísticas, mas as pequenas, de bairro, onde você pega o livro, leva para casa para devolver em 15 dias e paga multa se esquecer. Quando eu era criança e adolescente, frequentei a regional de Copacabana e a do Ibeu, que ficavam quase do lado uma da outra, ali entre a Santa Clara e a Figueiredo. Também ali a quantidade de carimbos na ficha era sinal de prestígio. Nas bibliotecas, intacto também é sinônimo de inferior.

Não sei se essas bibliotecas ainda existem. Pelos conceitos contemporâneos, uma instituição que empresta livros sem custo, espalhando cultura, educação e saber, é, no mínimo, subversiva. Quiçá comunista.

Como o leitor que tem filhos em idade escolar bem sabe, os preços dos livros didáticos — novos — beira o absurdo. Aqui em casa as despesas ainda se mantêm racionais porque a minha mulher participa de um grupo escolar de compra, venda e troca de livros escolares. É uma invenção genial: neles sempre tem alguém querendo vender os de que você precisa, assim como sempre tem alguém querendo comprar os que você já usou. Fica a dica para quem não quer ou não pode gastar uma fortuna logo no início do ano.

Desconfio que, para a geração do meu filho, os tais nativos digitais, a noção do que é novo e usado esteja contaminada pela onipresença de objetos eletrônicos. Computadores, tablets e celulares ficam logo defasados e inúteis, vítimas da obsolescência programada. É a jogada que faz os objetos perderem a utilidade e o valor em pouco tempo, para que o dono seja obrigado a comprar um modelo novo. O contrário do que acontece com os livros.

Os alunos de hoje têm aula de “cultura maker” e “design thinking”, mas talvez seja importante também um pouco de “cultura keeper” e “vovó thinking”. É preciso aprender, nas bibliotecas, nos sebos, em casa, que nem tudo é descartável, nem tudo perde valor com o tempo.

Vale para os livros, vale para pessoas, vale para a vida.

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