sábado, fevereiro 27

Quando a biblioteca vai a casa

Com o aproximar das 10 da manhã, as duas carrinhas Peugeot brancas chegam ao estacionamento do Palácio Galveias, no Campo Pequeno, devidamente desinfetadas. Os motoristas da Câmara Municipal de Lisboa aguardam pela mercadoria, enquanto põem a conversa em dia, nesta manhã sem chuva.

Lá dentro, no bonito edifício do século XVII que serve de morada a esta biblioteca, há meia dúzia de pessoas que não param para dar vazão a ao projeto BLX à Sua Porta, que começou a 9 de fevereiro e já pode considerar-se um êxito. Na última semana, houve 200 leitores que fizeram pedidos e outros tantos novos subescritores do cartão de leitor (em tempo normal, esse número desce para os 150).

Quem pede este serviço, pode requisitar até cinco livros, por um período de um mês, extensível por mais 15 dias. Todas as segundas, quartas e sextas as duas carrinhas saem desta biblioteca para percorrer as moradas de quem está em casa à espera de novas leituras. Com os dois motoristas, seguem também dois funcionários da rede de 18 bibliotecas municipais – caso não houvesse este serviço, estariam em casa, em teletrabalho, talvez a dar forma aos projetos digitais.


“Sentimos que estamos a fazer verdadeiro serviço público, respondendo aos interesses dos nossos leitores. E vamos continuar no pós pandemia, levando livros a casa de pessoas com mobilidade reduzida ou de cuidadores, por exemplo”, garante Susana Silvestre, 46 anos, chefe de divisão da rede de bibliotecas de Lisboa. Também haverá, em breve, leituras ao telefone, ou em casa, porque, acredita, “ler é o melhor remédio para estar ativo”. Quanto mais esclarecidas se sentirem as pessoas, mais vontade terão de intervir enquanto cidadãos – eis o lema.

Mas vamos para a estrada, que se faz tarde e há oito paragens para cumprir nesta manhã cheia de sol. As juntas de freguesia do Lumiar, Alvalade e Avenidas Novas estão no topo da lista de pedidos. Mas os livros não escolhem bairros e podem vir de qualquer das 18 bibliotecas da rede – aliás, aproveita-se este serviço para que as obras retornem à sua casa. Na rota diária contemplam-se pausas para entregar e resgatar exemplares que andam de biblioteca em biblioteca para satisfazer os pedidos dos leitores caseiros. No nosso caso, batemos à porta dos Coruchéus, em Alvalade, Penha de França e Olivais. Há sempre um funcionário, apenas um, que abre a porta, recebe e entrega um saco verde cheio de livros e aproveita para dois dedos de conversa.

A vontade é que os pedidos sejam expedidos em 24 horas, mas como têm sido tantos, os leitores podem esperar até quatro dias para que os livros cheguem a suas casas. Além de, muitas vezes, ser preciso ir buscá-los a outras bibliotecas da rede, quando as obras são recolhidas em casa (às terças e quintas, mediante marcação, e em caixas de cartão seladas para não haver contaminações) têm de ficar 72 horas de quarentena na sala onde antes os mais novos se deliciavam a folhear as histórias infantis. Agora, este espaço está na penumbra, de portadas fechadas, mesas e cadeiras umas em cima das outras, repleto de livros espalhados, com a devida ficha por perto para se saber quando podem regressar a andar de mão em mão.

Ana Carolina, 47 anos, já está de bata descartável amarela vestida e máscara bem acondicionada, pronta para arrancar para mais uma volta. Na vida normal, é bibliotecária na Penha de França. Agarrou este projeto com garra, porque sente que faz realmente a diferença. Uma vez na carrinha, dá uma vista de olhos ao percurso que fará ao lado de Sérgio Marçal, 41 anos, que, não fora o confinamento, e estaria a guiar crianças até às escolas.

As paragens sucedem-se. Sérgio, igualmente vestido de bata amarela, quase sempre consegue lugar à porta, mas nem sai da carrinha. Ana Carolina pega então na encomenda, guardada num envelope de papel pardo, que está no porta-bagagens, e toca à campainha. Tanto pode ter de subir vários lances de escadas como vencê-los por elevador ou ainda ter a sorte de entregar os livros ao portão, caso se trate de uma vivenda. “Tenho andado por sítios da cidade que desconhecia por completo”, há de confessar, numa das suas entradas e saídas do veículo camarário. Também já aconteceu ninguém abrir a porta nem atender o telefone e, nesses casos raros, os livros regressam às Galveias para novo agendamento.

Numa dessas vezes em que paramos no bairro dos atores, é Henrique Oliveira, 27 anos, quem nos abre a porta, de roupa de andar por casa e roupão para o aquecer. Já era leitor das bibliotecas, mas decidiu aderir a este serviço porta a porta porque precisava de três livros para o seu doutoramento na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e não os encontrava em lado nenhum. Quando foi para o site das Bibliotecas de Lisboa ainda nem sabia se estariam a funcionar. “Foi ótimo e muito cómodo encontrar o que precisava”, diz-nos, antes de se recolher outra vez atrás da porta e mergulhar nas leituras técnicas.

De regresso à carrinha, a rádio continua a tocar na Comercial e o termómetro marca 18 graus. Ana Carolina dá uso ao álcool gel que está acomodado numa das reentrâncias do tabelier e seguimos cidade fora.

“Bom dia, Bibliotecas de Lisboa. Podemos entregar livros? Vamos subir.” Esta é a frase que Ana Carolina repete, mais palavra menos palavra, em cada porta aonde para. Nesta altura, já estamos nos Olivais e o pedido vem de um dos enormes prédios anexos ao shopping. Do outro lado da porta está Ana Paula Coimbra, 55 anos, de pantufas confortáveis nos pés. “Ia calçar uns sapatos, mas entretanto já estavam cá em cima. E nem sequer deu para pôr máscara”, desculpa-se, meio atrapalhada, como qualquer estreante num novo serviço que lhe cai no colo, sem ter de sair de casa.

Esta engenheira química, consultora numa farmacêutica, está em teletrabalho desde março, mas quando as bibliotecas estavam abertas era lá que ia abastecer-se de alguns livros. Ainda para mais, a BDteca dos Olivais fica a menos de cinco minutos a pé, num entorno aonde gosta muito de passear. Entretanto, a filha Sofia, 22 anos, aparece-lhe, sorridente, por cima do ombro. São para ela os livros de Samuel Beckett e Carlos Drummond de Andrade, que lhe servirão de apoio no curso de teatro que está a tirar, além do mestrado em Gestão de Informação e das aulas que dá na faculdade – tudo online, não há remédio. A mãe escolheu valter hugo mãe e José Luís Peixoto para a ajudar a passar os dias de confinamento, que tendem a ser todos iguais. Haja mais momentos destes, em que os mimos batem à porta, pois são, além do mais, ocasiões para se conversar sobre livros com rostos diferentes dos que nos acompanham diariamente, ainda que escondidos atrás de máscaras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário