segunda-feira, fevereiro 15

A vida é despropositada

Tinha acordado birrenta. Recusei-me a comer o pequeno-almoço que a minha mãe preparara, um copo de leite com Energetic e um pão com fiambre e manteiga. Também fiz por me esquecer do saco do lanche em cima da bancada da cozinha. As crianças inventam guerras, quando os seus humores destrambelham. Não poucas vezes, os adultos cedem igualmente a tão perigosa estratégia de regulação de humor. Prejudicar os nossos interesses para contrariar o inimigo pode não nos dar a vitória, mas torna-nos vítimas, e a vitimização é uma poderosa arma neste tipo de guerra. Durante a aula, nada do que a professora Maria José ensinava era suficiente para me descentrar do meu estôgamo. Com aquela idade, ainda não conseguia disciplinar a dislexia que me trocava sílabas e, de facto, estôgamo nomeava melhor o animal resmungão que se ouvia dentro de mim. A professora Maria José era o terror dos alunos, tal a destreza com que manejava a palmatória à qual chamava carinhosamente Zezinha. Todos sabíamos dos feitos da Zezinha, da vez em que deu mais de cem reguadas a um aluno desobediente, da outra em que esteve uma manhã inteira a castigar uma sala de aula por terem copiado num exame, ou daquela em que deslocou a mão de um aluno preguiçoso, corriam tantas histórias da Zezinha que era impossível escolher a que me assustava mais.

Susa Monteiro

Quando a campainha tocou para o intervalo, um som estridente que espalhava em alvoroço os pássaros acoitados nas árvores, tive esperança de encontrar nos bolsos ou no estojo dos lápis um escudo que me permitisse comprar uma Crush de morango e um bolo, mas dei apenas com shoingas velhas e restos de borrachas. Consideraria pedir crédito na cantina, se isso não significasse dar o braço a torcer, quase ouvia a minha mãe vitoriosa, Ah, afinal sempre tiveste fome, e nada nos impele mais para a batalha do que a antevisão da troça do inimigo. Pus-me, então, a olhar para os lanches dos meus colegas, talvez um deles não tivesse apetite e eu pudesse aproveitar uns restos. Foi quando me deparei, nessa ronda de boas intenções, com um saco apetitosamente abandonado num dos bancos do recreio que ficavam mais afastados do grande embondeiro à volta do qual, nos intervalos das aulas, se reuniam as turmas de todas as classes do colégio São João de Deus.

Instantes depois – não sei como – eu estava sentada num canto, junto ao muro da escola, a desatar o nó do guardanapo de pano do lanche roubado. Olhei deliciada para uma sandes de ovo estrelado, como é que a minha mãe nunca me tinha feito tal iguaria? Daí a pouco, nem uma migalha sobrava como prova do meu crime. O intervalo terminou, depois a manhã, e lá regressei a casa para o almoço, apresentando-me triunfalmente jejuante à minha mãe.

De volta à escola para o turno da tarde, quando nos enfileirámos debaixo do alpendre que pouco aliviava o sol abrasador, chamaram-me para ir ao gabinete da diretora. Percorri o longo corredor encimado por uma bonita pérgula e desemboquei na antecâmara da sala envidraçada da Menina Bia. Espera aqui, disse a contínua. Uns minutos depois, uma voz grave lá de dentro, Entra. A Menina Bia tinha mais de cinquenta anos, cabelo preto apanhado num toutiço, óculos de armação de massa com formato de borboleta, cheirava a perfume caro e a tabaco. Ao lado dela estava a gaiola do Chico, um belo papagaio cinzento. Roubaste o lanche da Maria de Lurdes, não foi?

A Milú andava na segunda classe, era um ano mais nova do que eu e, ao contrário de mim, quase nada havia nela que a distinguisse. Eu era popular entre os colegas por causa da minha personalidade efusiva e da agilidade com que subia às árvores. Já a Milú, não fosse a sua pele demasiado branca para os trópicos, seria completamente invisível.

Não, respondi. A voz ainda se firmou na mentira, mas a minha cara foi enrubescendo. Até que confessei. É muito feio roubar, disse a Menina Bia, os ladrões vão para o inferno, queres ir para o inferno? A admoestação ter-se-ia prolongado se o papagaio Chico não tivesse começado a repetir, Inferno, inferno, inferno, Chico quer inferno.

Na escola e no bairro, todos souberam o que eu tinha feito. Nunca na nossa família houve um ladrão, disse o meu pai zangado, a matutar no castigo que não seria capaz de me dar. Talvez soubesse que para mim não havia castigo maior do que dececioná-lo. Passei a andar cabisbaixa. No recreio, os miúdos mais velhos zombavam de mim, alguns agarravam espalhafatosamente os seus lanches ao aproximar-me deles. Os mais novos olhavam-me desafiadores na fila da cantina, como se eu tivesse perdido o poder que a idade me conferia. Os que me eram mais próximos mantiveram-se distantes, fingindo que continuavam iguais. Eu tentava evitar a Milú, mas agora avistava-a em todo o lado. Não sabia como pedir-lhe desculpa nem o que lhe dizer. E tanto mais assim era, quanto ela parecia não reparar em mim. Ao cruzarmo-nos, a Milú passava como antes, com a fluidez que dispensamos aos conhecidos desconhecidos. Nem sobranceria, nem heroísmo, nem altruísmo, nem nada, só a naturalidade do não acontecido. E assim se manteve para sempre, acessivelmente inacessível. De repente, tudo se revelava antitético, enigmático, alegórico. Semanas depois, já ninguém se lembrava do sucedido. Fiquei a braços com a procura de significado para aquele amontoado de acontecimentos. Cada um deles era banal, a birra, o pequeno furto, a sua inexplicável descoberta, mas a forma improvável como se tinham encadeado uns nos outros, culminando com a inação da Milú, parecia reivindicar um significado qualquer. Se o houve nunca o encontrei. Dei apenas com a vida entretida no seu insensato gastar-se.

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