domingo, outubro 31

Um mundo de nomes

Não chegam notícias de Ghardaia. Não sabemos como é a vida em Sandoa. Deve existir um céu estrelado em Marbat, uma mulher deslumbrante em Kandalaksha, uma alma de poeta em Jayapura. Pode ser que ainda hoje nas ilhas Banks as pessoas tenham, cada uma, sua canção particular como carta de recomendação para o além-túmulo. Alguma delicadeza há de existir em Nanquim, algum prazer em Puerto Deseado, alguma fresca de fim de tarde em Buenaventura, coisas pequenas mas extraordinárias que façam jus à beleza desses nomes.


O que sabemos de cidadezinhas, ilhas e aldeias que de repente ocupam o noticiário do mundo é outra coisa. Sabemos de Leogane, Porto Príncipe e Carrefour porque ali a terra tremeu e esgarçou a chaga da miséria à vista de todos. Lembramos de Beslan porque esse nome evoca um massacre e cento e oitenta e seis velas acesas, uma para cada criança. Chegam notícias da ilha de Honshu depois de ter passado por ali um tsunami. Sabemos de Strasshof desde que uma menina desapareceu a caminho da escola e ressurgiu, fugida de um cativeiro, mais de oito anos depois. Dogo Nahawa muito possivelmente continuaria sendo uma aldeia escondida no mapa se centenas de agricultores não tivessem sido retalhados a golpes de facão. Nem tão cedo ouviríamos falar de Abbottabah se na madrugada de uma segunda-feira não tivessem descido ali vinte soldados com suas metralhadoras.

Quando esses nomes musicais e antes desconhecidos tornam-se o assunto do dia não é por seus jardins de cerejeira, sua pacatez, suas canções ao ritmo da colheita, suas terras morenas e brancas. São nomes que se fazem pronunciar por alguma exorbitância à altura do mundo. Não porque falem daquelas coisas pequenas mas extraordinárias que segredam que não existe um mundo. Existem mundos.
Mariana Ianell

Leitura no campo


 

Prefácio

Na década de 1950, quando era estudante, o constrangimento de ser chamado de escritor politizado era tão forte, o medo do escárnio da crítica por canalizar a criatividade para o estado das questões sociais era tão profundo, que eu me perguntava: por que o pânico? A fuga de qualquer acusação de exibir uma consciência do mundo político na ficção fez minha atenção se voltar para a fonte do pânico e os meios pelos quais os escritores procuravam aplacá-lo. O que poderia haver de tão ruim em ser socialmente perspicaz, politicamente consciente na literatura? A crença comum é de que ficção política não é arte; que é menos provável que uma obra assim tenha valor estético porque a política — a política como um todo — é plano de ação e, portanto, sua presença macula a criação estética.

Essa crença, que parece não ter existido para Chaucer, Dante, Catulo, Sófocles, Shakespeare ou Dickens, continua conosco e, em 1969, era um fardo descomunal para os escritores afroamericanos. Seja quando não tinham interesse nenhum por política, ou no caso de terem tendências, consciência ou agressividade no campo político, a raça deles ou a raça de seus personagens os condenava a uma análise “puramente política” de sua relevância. Se Phillis Wheatley escrevesse “o céu é azul”, a questão crucial seria o significado do céu azul para uma escrava negra. Se Jean Toomer escrevesse “o ferro é quente”, a questão seria com que precisão ou imprecisão ele exprimia as correntes da servidão. Esse encargo cabia não só aos críticos, mas também ao leitor. Como um leitor de qualquer raça que seja se coloca a fim de se aproximar do mundo de um autor negro? Não haverá sempre uma apreensão quanto ao que pode se revelar, se expor a respeito do leitor? 

Em 1970, quando comecei a escrever Sula, já tinha vivido a experiência deprimente de ler comentários sobre meu primeiro romance, O olho mais azul, de resenhistas negros e brancos que — salvo por duas exceções — pouco mérito tinham, já que a avaliação ignorava exatamente o critério “puramente estético” que defendiam. Se o romance era bom, era por ser fiel a certo tipo de política; se era ruim, era por não lhe ser fiel. A crítica era baseada em “os negros são — ou não são — desse jeito”. Dessa vez, retribuí o elogio e ignorei a superficialidade de tais opiniões e, de novo, arraiguei a narrativa em uma paisagem já maculada pelo fato de existir. Só algumas pessoas se interessariam, eu imaginava, por uma abordagem mais ampla — bem menos que uma minúscula porcentagem das mil e quinhentas que tinham comprado o primeiro livro. Mas o ato de escrever me era muito importante do ponto de vista pessoal para que eu o abandonasse só porque a probabilidade de que me levassem a sério era baixa. Talvez agora seja difícil imaginar qual é a sensação de ser visto como um problema a ser resolvido e não um escritor a ser lido. James Baldwin, Ralph Ellison, Richard Wright, Zora Neale Hurston — todos foram convocados a fazer ensaios abordando o “problema” de ser um escritor “negro”. Nessa situação em que uma vitória é impossível inautêntica, até mesmo irresponsável, para os que buscam um retrato politicamente representativo; marginalizada para os que calculam o valor segundo a “moralidade” dos personagens —, minha única opção era ser fiel à minha própria sensibilidade. Explorar mais a fundo meus interesses, questões, desafios. E, já que minha sensibilidade era extremamente política e veementemente estética, ela permearia sem culpa o trabalho que eu fizesse. Recusei-me a explicar, ou sequer admitir, o “problema” como algo além de artístico. Outras questões eram mais importantes. Como é a amizade entre mulheres quando não é mediada por homens? Que opções existem para mulheres negras fora da aprovação de suas comunidades? Quais são os riscos do individualismo em uma comunidade firmemente individualista, porém racialmente uniforme e socialmente estática? 

A liberdade feminina sempre significa liberdade sexual, mesmo quando — sobretudo quando — vista pelo prisma da liberdade econômica. A liberdade sexual de Hannah Peace foi minha porta de entrada na história, construída a partir dos cacos de memórias de como as mulheres da cidade enxergavam certo tipo de mulher — inveja aliada a aprovação entretida. Em oposição às suas reivindicações razoavelmente modestas de liberdade pessoal há outras, convencionais e anárquicas: o sacrifício físico de Eva em troca da liberdade econômica; a acomodação de Nel à proteção prometida pelo casamento; a resistência de Sula ao sacrifício e à acomodação. As reivindicações de Hannah são aceitáveis na vizinhança porque não são financeiras e não são ameaçadoras; ela não atrapalha ou esgota recursos familiares. Como é dependente de outra mulher, Eva, que tem dinheiro e também autoridade, não é competitiva. Mas Sula, embora não faça nada tão horrendo quanto Eva, é vista pelo povo da cidade não só como competitiva, mas como voraz, maligna. Nel, com suas exigências mínimas, é considerada o padrão emudecido. 

Hannah, Nel, Eva, Sula eram pontos de uma cruz — cada uma delas uma opção para personagens limitados por gênero e raça. O centro dessa cruz seria uma fusão de responsabilidade com liberdade difícil de alcançar, uma batalha entre mulheres que se subentende ser as menos capazes de vencê-la. Enrolados nos braços dessa cruz estão os fios de outros tipos de batalhas — o veterano, os órfãos, o marido, os trabalhadores, confinados a um vilarejo pelas mesmas forças que ordenaram a luta. E o único triunfo possível foi o da imaginação. A missão, é claro, era evocar essas percepções em uma linguagem capaz de expressá-las. Sula levou mais longe minhas tentativas de manipular a linguagem, de trabalhar credivelmente e, talvez, elegantemente com um vocabulário desprestigiado. De usar a linguagem popular, vernacular, de maneira que não fosse nem exótica nem cômica, nem menestrelada nem analisada sob microscópio. Queria redirecionar, reinventar os juízos políticos, culturais e artísticos reservados aos escritores afro-americanos.

sábado, outubro 30

Leitora de época

 


Assim começa...

Se estou louco, tudo bem para mim, pensou Moses Herzog.

Algumas pessoas achavam que ele não estava regulando bem e por um tempo ele mesmo tinha questionado sua sanidade. Mas agora, embora continuasse se comportando estranhamente, sentia-se confiante, animado, clarividente, forte. Em estado de graça, estava escrevendo cartas para todo mundo sob o sol. Estava tão agitado por essas cartas que, desde o final de junho, ia de um lugar para o outro com uma valise cheia de papéis. Tinha carregado essa valise de Nova York a Martha’s Vineyard, mas voltara de Vineyard imediatamente; dois dias depois voou para Chicago, e de Chicago foi para um vilarejo no oeste de Massachusetts. Escondido no campo, escreveu incessantemente, fanaticamente, aos jornais, a pessoas na vida pública, a amigos e parentes e, por último, para os mortos, para seus próprios mortos obscuros e finalmente para os mortos famosos.

Era o auge do verão nos Berkshires. Herzog estava sozinho no velho casarão. Normalmente cheio de caprichos em matéria de comida, agora ele comia pão de fôrma Silvercup, feijão enlatado e queijo americano. De quando em quando colhia framboesas no jardim coberto de mato, erguendo os ramos espinhentos sem muito cuidado. Quanto ao sono, dormia num colchão sem lençóis — era sua cama de casal abandonada — ou na rede, coberto por seu casaco. Capim barba-de-bode bem alto e mudas de alfarrobeira e de bordo se  espalhavam pelo terreno em volta. Quando abria os olhos à noite, as estrelas estavam próximas como corpos espirituais. Fogos, evidentemente; gases —minerais, calor, átomos, mas eloquentes às cinco da manhã para um homem numa rede, enrolado em seu casaco.

Quando algum novo pensamento se apossava do seu coração, ele ia para a cozinha, seu quartel-general, para passá-lo para o papel. A tinta branca das paredes de tijolo estava descascando e Herzog às vezes limpava cocô de camundongo de cima da mesa com a manga da camisa, perguntando-se calmamente por que motivo os camundongos tinham tamanha paixão por cera
e parafina. Eles faziam buracos nas compotas lacradas com parafina; roíam até o pavio as velas de aniversário. Um rato cavou um túnel num pacote de pão de fôrma, deixando um molde do seu corpo nas fatias. Herzog comeu a metade que sobrou, lambuzada de geleia. Era capaz de compartilhar com os ratos também.

Enquanto isso, um canto da sua mente permanecia aberto ao mundo exterior. Ouvia os corvos pela manhã. Seus gritos estridentes eram deliciosos. Ouvia os tordos ao anoitecer. À noite havia uma coruja. Ao caminhar pelo jardim, excitado por uma carta mental, via rosas se enroscando na calha de chuva; ou amoras — os pássaros se fartando na amoreira. Os dias eram quentes, as noites afogueadas e poeirentas. Ele olhava para tudo com vista apurada, mas se sentia meio cego.

Seu amigo, seu ex-amigo, Valentine, e sua mulher, a ex-mulher de Herzog, Madeleine, tinham espalhado o boato de que sua sanidade tinha ruído. Seria verdade?

Ele estava dando uma volta em torno da casa deserta e viu o vulto de seu rosto numa janela cinza, cheia de teias de aranha. Ele parecia estranhamente 
tranquilo. Uma linha radiante partia do meio da sua testa, passava sobre o nariz reto até os lábios cheios e mudos.

sexta-feira, outubro 29

Boa leitura para esses dias

 


Não te queixes

Recolhe em ti a amargura, não a disperses, não a esbanjes com os outros. Ela é tua, nasceu de ti, da tua miséria, pertence-te como os ossos e as vísceras. Concentra-te nela, absorve-a, faz dela a tua grandeza. Porque só se é grande pelo sofrimento, não pela futilidade do prazer. As pedras não sofrem, Cristo esteve «triste até à morte». Tem desprezo pelos homens felizes, porque dos homens felizes «não reza a história». Só a dor pode medir o teu tamanho de excepção, só ela pode medir o que tu vales. O sofrimento medíocre não dá mais do que a comédia, mas a grandeza da tragédia só pode atribuir-se aos grandes. Não te aconselho a que vás ao encontro da amargura, mas se ela vier ter contigo, acolhe-a com serenidade. Não sucumbas aos seus golpes, aguenta-os até onde puderes. E se és homem de verdade, tu a aguentarás.

Também as grandes alegrias são do destino dos grandes, porque elas são irmãs dos grandes sofrimentos. Só os pequenos e mesquinhos se alegram e sofrem com o que é mesquinho e pequeno. Aquilo que é pequeno é imperceptível a quem o não é. Que juízo fazem de ti, se sofres com o que é ridículo? Não sofras. As grandes tempestades, a grande luz solar são a medida da Natureza. Que tu tentes contrariar a alegria que te rodeia na nova Primavera e não o conseguirás. A Terra cumpre-se igual em flores e renovação. Não te queixes. Recolhe-te a ti. E o destino do homem que te sagrou será a tua perfeição.

Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente IV"

Leitura de Halloween

 


Os próximos 60

Deus deve existir mesmo. Caso contrário, a quem ser grato pelos saltos e tropeços, gozos e soluços, tudo o que tive e o que precisava mesmo partir? Agradecimento deposto, sigo, com essa pele e a bagagem usadas.

Faço questão de esquecer as bússolas. Pretendo dedicar mais tempo a organizar as filas de formigas. Vou lotar uma condução de netos e dirigir mil quilômetros, até encontrar um pasto salpicado de vaga-lumes. Que eles guardem para sempre o que nunca esqueci.

Nos próximos 60, terei enfim aprendido a encaixar os pronomes. Ressuscitarei os coletes. Honrarei poças e pedras. Pretendo acordar com o estouro das ondas, mesmo no sono das montanhas. Que eu não empaque diante dos mata-burros. Bom seria ter a utilidade dos sapos e a discrição das minhocas, e embarcar num trem que privilegie os panoramas e vagarezas. E anunciar no megafone, com moderado estardalhaço, o recomeço do mundo.

Vou morar seis meses em Morungaba, seis em Paris, outros em São Paulo, daí em Santo Amaro do Coquinho, e, nos intervalos, irei a São José para não ser excomungado.

Nos próximos 60, gaiola não vai ter, mas umas cinco casas de passarinho de madeira com ninhos de crepom, onde deixarei sementes de mamão e microfones instalados para promover concursos de calouros. Vou andar pelas praças proseando comigo mesmo assuntos interessantíssimos. Haverá uma supersafra de manga-espada, concertos entre árvores, e Tom há de reencarnar num matuto em Goiás. Até 2047, prometo, escreverei algo que preste.

O único plano é cuidar de Beatriz a cada segundo de cada minuto de cada hora de cada dia, pelos próximos 60 anos.

Ao contrário de hoje, meus equívocos serão exibidos feito medalhas. As chamas na lareira trarão silêncio e ótimas ideias. O piano terá orgulho de mim. O remédio terá orgulho de mim. Nos próximos 60, vou me apaixonar de um jeito diferente, sem expectativas ou decepções, nem que seja por um gato francamente ingrato. Darei muitas entrevistas explicando como cheguei a tantos anos sem mérito algum.

Aprenderei a fazer ovos nevados, a bater escanteios decentes e não mais deixar essa barba tosca de semanas. Quem sabe, abra pela primeira vez na vida a caixa de ferramentas e seja apresentado aos alicates. Faço questão de continuar sofrendo por futebol, pelas ressacas e a insistência das injustiças. Juro solenemente não perder mais nenhum amigo.

Sessenta anos de mais Drummonds, de mais Brahms, Cèzannes, Rosas, Bonnards, Tatis, Chicos, Onettis, Ettores, Porters, Manuéis, Wislawas, Carvers, Bragas, pão, vinho e sestas nos dias chuvosos, não vejo a hora.

Daqui a alguns anos, enfim, vão encontrar (e me trazer num embrulhinho) a estrela da manhã. O homem é muito inteligente, haverá de criar modelos de balões que cruzem o céu, iluminando as noites de junho com um sistema que apague a mecha a exatos 38 metros do chão. E ainda será descoberta uma pílula lá que, produzida aos trilhões e jogada de aviões e satélites, acabará de vez com as dores do mundo. Como posso ficar pelo caminho e não testemunhar?

Quinze para meia-noite, logo virá o primeiro dia.

O próximo passo será descalço.

Cássio Zanatta

quinta-feira, outubro 28

Promessa de bom dia

 


Geleia de maçã

Quando subi no noturno, o chefe veio me avisar que minha companheira de cabine, uma senhora muito distinta, ficaria com o leito inferior, isso se eu não fizesse questão.

Não fiz questão. Quando voltei do carro-restaurante, a velha senhora já estava recostada nos travesseiros, comendo biscoitos com geléia. Usava uma camisola de flanela com florinhas azuis, os olhos também azuis – só faltava a touca de rendinhas para compor a gravura antiquada da velha dama insistindo para que eu aceitasse um biscoito com geléia de maçãs colhidas no seu próprio quintal, foi a nora que lhe mandou a receita, eu não gostava de geléia? Sentei-me na beirada da cama e na semi-obscuridade da cabine (acesa apenas a luz embutida na cabeceira) pude ver que sob o branco esfarinhado da velhice ainda lhe restara alguma beleza, por acaso era alemã?


Não, nenhuma ascendência estrangeira, o filho único é que se casara com uma austríaca, era médico. Formou-se, ganhou uma bolsa de estudos na Alemanha e hoje era um psiquiatra importantíssimo, diretor de uma clínica em Viena. Tão feliz com a mulher, os cinco filhos e os netos, dois alemãezinhos lindos que não sabiam uma palavra sequer de português e era preciso? Limpou os cantos da boca com um lenço de papel que tirou da sacola e falou com brandura enquanto tapava o vidro de geléia: saudades? Ah! Sim, no início a saudade era quase insuportável, mas ela e o marido acabaram se acostumando, a gente se acostuma com tudo, não é verdade? A gente só não se acostuma com a morte, ela disse e a sombra de uma sombra passou rápida pelos seus olhos transparentes. E pensar que ele estivera à beira do suicídio! Sim, esse filho tão bonito, tão brilhante, as melhores notas da turma. Mas sob aquela aparência tão disciplinada, tão saudável se escondia um segredo terrível, soube naquela noite mesmo, quando ele chegou e se trancou no quarto e ela desconfiou, Abra, filho! Pediu batendo com os punhos na porta, o marido viajando, a empregada fora, abra esta porta! Suplicou porque via como se a porta fosse de vidro, o desespero dele, em prantos, escondendo o revólver debaixo do travesseiro, Abra esta porta, filho! Quando se deitaram é que sentiu aquela coisa dura sob o travesseiro de penas, levou-o depois no bolso do roupão e ele…

No solavanco mais forte do trem, apagou-se a luz da cabine, só ficou a voz subitamente rejuvenescida no estilo seco, galopante. O jovem era um edipiano feroz que muito cedo descobriu que a impotência sexual vinha desse complexo, ódio pelo pai, paixão pela mãe, aquela embrulhada que desesperadamente tentou desembrulhar com amores devassos, com amores castos, tentativas com donzelas, prostitutas, negras e arianas, lésbicas e homossexuais, quem sabe era um homossexual enrustido? Antes fosse, o drama seria solucionado, Mas tudo em vão, continuava a ansiedade, o sofrimento: tentou análises, terapia individual e de grupo, choques, chegou a recorrer a um padre muito bonzinho que fizera sua primeira comunhão, ficaram amigos, pensou mesmo em entrar para um convento mas desistiu, outra fuga? Voltou à vida dupla porque teve que se dividir em dois, o moço estudioso, tranqüilo e o outro – o delirante na busca que não lhe dava trégua, mais uma tentativa, outra ainda e nada. NADA. O gozo só vinha mesmo na masturbação, quando se fazia menino, um nenê pedindo o peito,a ejaculação doloridíssima suavizada pela lembrança do leite morno na boca. Mas porque não me contou, filho?! Perguntou também desfeita em lágrimas, a mãe, sempre a última a saber, tão contentinha andava com o sucesso do filho. E ele se castigando na luta pelas melhores notas, pelas medalhas de ouro nas corridas de resistência ou atirando dardo, peso, disco – Ah! Se pudesse se flagelar com um chicote! Então se deitaram chorando e se consolando, tamanha a solidariedade e a compreensão que foi com naturalidade que da compreensão passaram para a ação num amor que durou essa noite (quando ela achou o revólver) e se estendeu por toda a semana que antecedeu a viagem, quando se buscavam e se encontravam no desejo nítido, sem tibiezas. Abrasador. Difícil explicar o inexplicável, mas no silêncio e No escuro do casarão foi se fazendo ordem lá dentro dele, as coisas desajustadas se ajustando nos lugares: rompeu-se o cordão umbilical e dessa vez para sempre. Ele pôde renascer inteiro. E assim continuava lá na bela Viena, realizado, felicíssimo. E não é que em seguida as relações dela com o marido (que Deus o tenha”) também se fizeram mais profundas, mais plenas?

A luz voltou na cabine, azul e tão pálida que ela mal pôde ver as horas no reloginho de pulso. Ih!, que tarde, queixou-se e a voz voltou tão esmaecida com a luz, era uma velha novamente. Gostava desse reloginho de pulso, presente dos netos, pena é que os números eram tão complicados, difícil de entender esses números modernos, preferia aqueles tradicionais, graúdos. Se dormia bem em trem? Como uma criancinha, ah, adorava esse balanço, não parecia um berço?

Subi para o leito superior. Quando acordei de manhãzinha, ela já tinha desembarcado. Na cabine, um perfume adocicado de maçãs.
Lygia Fagundes Telles

Procuram-se retalhos de infância

 


Brasil perde uma livraria a cada três dias

"Parece um chavão, mas manter uma livraria hoje no Brasil é um ato de resistência. Não é fácil." Em tom de desabafo, a frase dita pelo livreiro, editor e escritor João Varella resume bem a situação das casas do ramo que existem hoje no Brasil. Ele próprio é um dos que nadam contra o fluxo: em 2014, ele abriu a Banca Tatuí, em São Paulo, e quatro anos mais tarde, quase em frente, a Sala Tatuí.

Enquanto isso, os números que já não eram bons só pioraram. De tempos em tempos, sem periodicidade fixa, a Associação Nacional de Livrarias (ANL) faz um levantamento de quantas lojas de livro existem no país. Em 2014 eram 3.095, hoje são 2.200. Significa que, no Brasil, uma livraria encerra suas atividades a cada três dias, em média.

De acordo com Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o adequado é que haja uma livraria para cada 10 mil habitantes. No Brasil, há uma a cada 96 mil. "Temos um déficit gigantesco com relação ao número ideal que seria algo em torno de 20 mil livrarias", admite Bernardo Gurbanov, presidente da ANL.

"A formação de leitores depende mais de adequadas políticas públicas nos âmbitos da educação e da cultura do que das ações da sociedade civil", acredita ele. "Lamentavelmente, os índices que medem o desempenho escolar e os hábitos de leitura demonstram que estamos diante de um enorme fracasso institucional no que diz respeito à formação de leitores. Uma verdadeira tragédia nacional. Soma-se a isso a histórica fratura social e econômica que sofre a sociedade brasileira, fruto da desigual distribuição de renda."

Para Gurbanov, a redução no número de livrarias no Brasil é consequência da recessão econômica e da mudança nos hábitos de consumo, após a consolidação "das novas tecnologias que possibilitaram a intensificação do comércio on-line". Sim, essa queda acentuada não necessariamente significa que o consumo de livros está ainda menor, mas também que as livrarias ganharam concorrentes de peso – as grandes plataformas de varejo digital.

'Vale a pena manter uma livraria para mostrar que tipo de sociedade queremos construir'
Eduardo Ribeiro da Luz Fernandes, da Livraria Casa da Árvore

 Todo esse contexto fez com que uma figura acabasse sendo valorizada por determinados nichos culturais: a do pequeno livreiro, como João Varella, capaz de indicar títulos sob medida para seu público e atender de forma calorosa, personalizada. O presidente da ANL observa que, em um cenário de fechamento de casas do ramo, é esse tipo de livraria que não só resiste, como ganha importância.


Banca Tatuí, em São Paulo, de João Varella, 

É o caso também da Livraria Páginas, que se autointitula "a menor e mais charmosa" de Belo Horizonte. Aberta em março de 2020, ela nasceu com a proposta de ser "uma livraria de bairro". "A maioria [dos consumidores] compra dos gigantes. O que fazemos é oferecer um atendimento personalizado. Temos um Instagram ativo com dicas literárias e fazemos lives com autores. Atendemos também com delivery. Receber bem e criar uma clientela fidelizada é o nosso propósito", diz a escritora e jornalista Leida Reis, fundadora da livraria.

Varella conta que na Banca Tatuí a preocupação está em ter um catálogo de qualidade de pequenas editoras, "que não chegam à Amazon, principalmente". "O espaço físico traz uma experiência diferente, um vendedor que entende de publicações e pode dialogar com o leitor, apontar, provocar, dizer o que ler e o que não ler. No fim das contas, o livro arma uma briga contra esse mundo algoritmizado", filosofa ele.

"A gente não tem muito como concorrer [com as gigantes do comércio eletrônico], por isso a gente afirma outro mundo: o mundo que elas não oferecem, que é o mundo do olho no olho e das muitas dimensões de vivências que uma livraria de rua oferece", argumenta o livreiro Eduardo Ribeiro da Luz Fernandes, da Livraria Casa da Árvore, aberta no ano passado no Rio de Janeiro.

"Para isso, também é preciso atacar nichos onde as pessoas são mais conscientes desse processo. Se a gente entrar na lógica de trabalhar com os mais vendidos, não temos como sobreviver."

Quando voltou ao Brasil, após viver na Holanda, Carolina de Albernaz Nesi lamentou o fato de sua cidade, Vinhedo, no interior paulista, não contar com nenhuma livraria. "Todas haviam fechado", relata.

Ao longo de um ano ela fantasiou e planejou como abrir um negócio do tipo – na Europa, ela havia criado uma livraria voltada a expatriados na cidade de Delft, onde vivia.

Em maio deste ano, finalmente a Duli Delft abriu as portas em Vinhedo. Para atrair a freguesia, ela aposta em um catálogo pequeno, mas bem selecionado. E alguns itens complementam a ideia do livro – de chocolates a vinhos. "Meu propósito era criar uma experiência para aqueles que frequentam a Duli", conta. "Nosso títulos promovem a curiosidade, a cultura e o conhecimento."

Em meio a tantas plataformas on-line, Nesi afirma que "comprar numa pequena livraria passa a ser uma escolha do cliente, que sabe claramente qual é o valor agregado de entrar naquela livraria específica".

No fundo, o que esses livreiros apostam é numa consciência do consumidor – da mesma maneira que há espaço, afinal, para aqueles que escolhem alimentos mais sustentáveis nas gôndolas do supermercado ou preferem adquirir comida diretamente do produtor.

"A gente tenta acessar um público mais consciente, que entende que comprar no conforto de casa, com um preço muito baixo, pode ter consequências terríveis para o mercado editorial", comenta o livreiro Fernandes, da Casa da Árvore.

"Além disso, sempre procuramos a persuasão positiva, com campanhas do tipo 'vem pra livraria' e 'viva a livraria de rua'", completa. "O importante é reforçar a ideia de que a compra consciente é uma maneira de manter os pequenos comércios vivos."

Nessas histórias, tem também uma pitada de idealismo – e muito amor pelos livros. Fernandes costuma dizer que visitar uma livraria de rua é uma experiência tão subjetiva quanto abrir um livro físico. "Algo que não existe em outros suportes", defende.

"Uma livraria independente não deixa ninguém rico, obviamente. Mas traz muitas experiências interessantes e aponta um caminho mais humano para a cidade", argumenta Fernandes. "Vale a pena manter uma livraria para mostrar que tipo de sociedade queremos construir."

quarta-feira, outubro 27

Ganhe asas!

 


Civilização

Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.

Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, reflectindo apenas pedaços lustrosos de um céu de verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria, àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de Champanhe gelada, mais doçura e facilidades do que a vida{82} oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do Amor só experimentara o mel— esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a de compreender bem as ideias gerais, e a «ponta do seu intelecto» (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, doutros Pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nela só palpasse palidez e ruína. Porquê ?

Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado— ou antes aquele que se munira da mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal— existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram{83} o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país Ariano. A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes de Caranânia até ao teto de onde, alternadamente, através de cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz estudiosa e calma— continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oito centos e dezassete!

Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando êste economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência— e mesmo da estupidez. E o único inconveniente deste monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava, inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.{84}

Ao fundo, e como um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brasões, datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre os panejamentos de seda 
code musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e subtis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam 500 réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compôr as suas cartas (Jacinto não compunha obras) assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os directórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento,— a máquina de escrever, os auto-copistas, o telégrafo-Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlin, dlin, dlin! Crac, crac, crac! Trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos êsses fios mergulhavam em foorças universais, transmitiam fôrças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Pôrto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade:

— Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?
Eça de Queiroz. "Os Maias"

Mágica

 


Os embrulhos do Rio

Michele Righetti
Encontro o amigo Mário em seu escritório, à volta com papéis e barbantes, fazendo um grande embrulho. São encomendas e presentes que vai mandar para sua gente em Santa Catarina. Inábil e carinhosamente ele compõe o grande embrulho, que sai torto e frágil.

Não me proponho a ajudá-lo, porque sou seu irmão em falta de jeito. Aparece, a certa altura, um rapazinho, que olha em silêncio a faina de Mário.

Este compreende a ironia e compaixão do tímido sorriso do rapaz e, com um gesto, pede sua ajuda. Em meio minuto, o moço desmancha tudo e faz daquele embrulho informe e explosivo um pacote simples, sólido e firme.

Mas não estou pensando nessa qualidade que sempre me pareceu milagrosa, essa certeza das mãos em ordenar as coisas para nós rebeldes e desconjuntadas, para esses privilegiados, obedientes e fáceis. Penso nas mãos que, em uma praia distante, vão desembrulhar essas coisas; na alegria com que no fundo da província a gente recebe os presentes.

Quando meus pais ou minha irmã voltavam de um passeio ao Rio, nós todos, os menores, ficávamos olhando com uma impaciência quase agônica as malas e valises que o carregador ia depondo na sala. A alegria maior não estava no presente que cada um recebia, estava no mistério numeroso das malas, na surpresa do que ia surgindo. Uma grande parte, que despertava exclamações deliciadas das mulheres, não nos interessava: eram saias, blusas, lenços, cortes de trapos e fazendas coloridas, jóias e bugigangas femininas. A mais distante das primas e a mais obscura das empregadas podia estar certa de ganhar um pequeno presente: a alegria era para todos da casa e da família, e se derramava em nossa rua pelos vizinhos e amigos. Além dos presentes havia as inumeráveis encomendas, três metros disto ou daquilo, um» sapatinho de tal número para combinar com aquele vestidinho grená, fitas, elásticos, não sei o que mais.

Se esse mundo de coisas de mulher nos deixava frios e impacientes, os brinquedos e os presentes para homens e coisas para uso caseiro eram visões sensacionais. Jogos de papelões coloridos, coisas de lata com molas imprevistas, fósforos de acender sem caixa, abridores de latas, sopa juliana seca, isqueiro, torradeiras de pão, coisas elétricas, brilhantes e coloridas — todo o mundo mecânico insuspeitado que chegava ao nosso canto de província. E também programas de cinema, cardápios de restaurantes…

Seriam, afinal de contas, coisas de pouco valor: os grandes engenhos modernos estrangeiros estavam fora de nossas posses e de nossa imaginação. Mas para nós tudo era sensacional; e depois de esparramado sobre a mesa ou pelo chão o conteúdo da última valise, e distribuídos todos os presentes, ainda ficávamos algum tempo aturdidos por aquela sensação de opulência e de milagre. E o dia inteiro ouvindo a conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam histórias, falavam da última revista de Araci Cortes, no Recreio, da última comédia de Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença dos nossos parentes de Vila Isabel — ainda ficávamos tontos, pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão próximo e tão distante.

Aos 9 anos de idade, vim pela primeira vez ao Rio, trazido por minha irmã. Voltei muitas vezes; estou sempre voltando. Aqui já me aconteceram coisas. Mas o grande encanto e o máximo prestígio do Rio estavam nas malas e nos embrulhos abertos diante dos olhos assombrados do menino da roça.
Rubem Braga

terça-feira, outubro 26

Preparação para dormir

 


Gente boa e gente inútil

Conheci um rapaz que, há uns vinte anos, ganhou uma bolsa para estudar anatomia patológica nos EUA, e nunca mais voltou. Americanizou-se? Encantou-se? Ficou rico? Não, nada disso, mora numa cidadezinha gelada quase na fronteira do Canadá, tem um ordenado que lhe basta apenas para as despesas fundamentais, não se diverte, gasta os dias e boas horas da noite metido num laboratório. Foi incorporado aos pesquisadores de câncer. Notaram-lhe o talento, pediram-lhe que ficasse, ele ficou. Brilhante entre os mais brilhantes alunos que passaram pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, desistiu do futuro, largou tudo, fez-se anônimo e pobre, ingressou num claustro leigo, só deixando o seu trabalho para gemer um pouco de frio e saudade do Brasil, antes de dormir.

Homens como o Doutor Albert Schweitzer, capazes de trocar um destino artístico ou literário por um devotamento humanitário, são os santos de nosso tempo. A frieza de um laboratório, no entanto, ainda me parece um mundo mais estranho e árido do que a África Equatorial Francesa. Amar os homens por detrás de um microscópio, sem sentir nunca a reciprocidade do gesto generoso, é fantástico e humilhante para mim, tíbio comodista.

Os fatos são duros. Aperta-se o cerco contra o câncer nos EUA e em outros países. A conquista do espaço interplanetário não é tão emocionante quanto essa luta contra a morte. Antigamente, as epidemias chegavam de repente e dizimavam povos inteiros. As pestes modernas tomam aspecto moderno. As estatísticas sabem que 450 mil americanos serão vítimas do câncer este ano; destes, 260 mil estão condenados à morte. Sabe-se ainda, por exemplo, que no Norte dos EUA diminui a mortalidade por leucemia, mas no Sul a incidência mortal vem sendo acrescida. O mal é misterioso e aterroriza. Só não aterroriza o cientista escondido entre paredes assépticas (higienizadas), a isolar vírus, a traçar esquemas táticos, a vislumbrar esperanças, a chocar-se contra desilusões, a repetir, com o poeta, que cada nova tentativa é um fracasso diferente. É preciso usar nesta guerra  fala agora um cientista famoso  de todas as coisas que conquistaram mundos.

Admiro gente assim com a mais pura e selvagem simpatia de meu espírito.

Visitei há alguns anos o Instituto Pavlov, perto de Leningrado. Lá, em uma sala modesta e também fria, fui apresentado a um homem muito magro, desleixado no vestir, cabelos despenteados e de uma timidez de quem não tem o hábito de falar muito. Era um cientista famoso, chamava-se Victor Fiodorov. Pacientemente, ele me explicou a natureza das experiências que vinha realizando há longos anos, no sentido de tentar obter uma informação mais precisa sobre o câncer e a transmissão dos caracteres adquiridos. Contou-me com certa ternura a vida dos ratinhos assustados, detalhou-me suas idas e vindas, indutivas e dedutivas, pistas falsas, equívocos, surpresas repentinas, observações novas para a ciência, fez-me enfim um relatório completo daquilo que era a sua própria existência. Depois calou-se. Nesse ponto, naturalmente, ocorreu-me perguntar-lhe a que conclusão final chegara. O homem magro sorriu um sorriso decepcionado de criança que não ganhou presente, e respondeu-me: “Ainda não cheguei a qualquer conclusão; não há nada que me diga que eu haja contribuído para a cura do câncer”.

Quando cheguei lá fora, num silêncio agravado pela neve e pelo grito estrídulo (agudo) das gralhas no alto dos abetos (tipo de árvore), compreendi que não poderia esquecer aquele sorriso nunca mais. Não faço nada pelo bem de ninguém e, decerto, faço mal a algumas pessoas. Mas o sorriso do cientista Fiodorov, ao revelar-me a sua frustração ao longo de tantos anos de trabalho, pelo menos me acusa e não me deixa esquecer de que vim ao mundo causando dores e sem procurar diminuir a dor de ninguém. Um inútil. Resta-me a vaidade vulgar de saber que não presto para nada, pois o bonito entre os intelectuais de hoje é não ter compaixão da humanidade. Azar meu, que tenho, e nada faço.
 Paulo Mendes Campos

segunda-feira, outubro 25

Leitura alimenta sonhos

Katie Gamb

 

Peladas

Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.

E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.

Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.

Edivaldo Cruz

Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.

Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.

Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA-Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.

No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.

Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.

Nova saída.

Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.

O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.
Armando Nogueira

Ficção ganha asas

 


O conto zero

Não seria propriamente um conto, ficaria dias e mais dias rondando a sua cabeça, você não escrevia uma única frase, uma palavra que fosse, pois ela o comprometeria com um seguimento, um desfecho, e o que você queria era uma prosa solta, que não precisasse ser escrita e concluída; que fosse um pensamento
livre em movimento, levando-o a paragens infinitas e movediças, algo que nunca chegava a fixar-se, apesar de alguma ordem. Mas se poderia argumentar: se não se escreve não é um conto, mas para você é, existe um protagonista, um ser que habita um corpo e agora se põe em situação, está sentado em um banco individual de lotação, você o pegou na rua São Francisco Xavier, nas cercanias de Vila Isabel, depois de ter saído do Maracanã, digamos que de um jogo entre Vasco e América, você ia a qualquer jogo, sozinho ou com o seu irmão, o pai os deixava livres, era uma outra época, sem muita violência, da cidade; você estava com doze anos, até quase a metade deste ano de 1954 morara com a família em Londres, onde o pai fizera um curso de pós-graduação em ciências econômicas e o pai também não os impedia de saírem sozinhos pela cidade estrangeira, que vocês dominavam melhor do que os adultos. Matando aula, vocês percorriam todas as estações do metrô, bastava pagar com moedas na máquina os bilhetes para a estação mais próxima — os preços eram diferenciados — e torcer para não aparecer nenhum fiscal que poderia levá-los para o colégio ou para casa, vai ver até passando pela delegacia, a rigidez inglesa que criminalizava até meninos, discutia-se isso na tv. E, com o bilhete mínimo, vocês iam aonde quisessem, desde que não tentassem sair numa estação fora do perímetro do bilhete.

Um dia, no colégio, na hora em que todas as turmas se reuniam num salão, antes do almoço, vocês assistiram, estarrecidos, ao headmaster chamar um menino — um dos menores — à sua presença e, depois de dizer qualquer coisa ao garoto, referente a uma falta disciplinar, mandou que ele estendesse a mão, uma de cada vez, e levantando o headmaster a própria mão, segurando uma sola de borracha, aplicou a palmatória, com violência, três vezes em cada mão do menino, que abriu a boca de tanto chorar. Você e seu irmão ficaram chocados e revoltados. No Brasil isso seria inconcebível. Se você conta isso neste momento do texto, é porque talvez tenha tido uma grande influência no gazetear de aulas.

sábado, outubro 23

Leitura no campo

 

Dee Nickerson


No jardim

7 de abril, 1928


Do outro lado da cerca, pelos espaços entre as flores curvas, eles estavam tacando. Eles foram para o lugar onde estava a bandeira e eu fui seguindo junto à cerca. Luster estava procurando na grama perto da árvore florida. Eles tiraram a bandeira e aí tacaram outra vez. Então puseram a bandeira de novo e foram até a mesa, e ele tacou e o outro tacou. Então eles andaram, e eu fui seguindo junto à cerca. Luster veio da árvore florida e nós seguimos junto à cerca e eles pararam e nós paramos e eu fiquei olhando através da cerca enquanto Luster procurava na grama.

“Aqui, caddie.” Ele tacou. Eles atravessaram o pasto. Agarrei a cerca e fiquei olhando enquanto eles iam embora.

“Que barulheira.” disse Luster. “Onde que já se viu, trinta e três ano, chorando desse jeito. Depois que eu fui até a cidade só pra comprar aquele bolo pra você. Para com essa choradeira. Por que é que você não me ajuda a procurar aquela moeda pra eu poder ir no circo hoje.”

Eles estavam tacando pequenino, do outro lado do pasto. Fui andando junto à cerca de volta para perto do lugar onde estava a bandeira. Ela balançava entre a grama ensolarada e as árvores.

“Vamos.” disse Luster. “Aí a gente já olhou. Eles não vai voltar agora não. Vamos lá no riacho encontrar a moeda senão os negro é que vão achar ela.”

Era vermelha, balançando no pasto. Então veio um passarinho descendo inclinado e pousou nela. Luster jogou. A bandeira balançava entre a grama ensolarada e as árvores. Agarrei a cerca.

“Para com essa choradeira.” disse Luster. “Se eles não quer voltar eu não posso fazer nada. Se você não parar de chorar, a mamãe não vai fazer festa de aniversário pra você. Se você não parar, sabe o que eu vou fazer. Vou comer o bolo todinho. Comer as vela também. Comer as trinta e três velas. Vamos lá, vamos lá no riacho. Preciso achar minha moeda. Quem sabe a gente não acha uma bola também. Olha lá. Eles estão lá. Lá longe. Olha.” Ele veio até a cerca e apontou com o braço. “Olha só eles. Eles não volta mais aqui não. Vamos.”

Seguimos junto à cerca até chegar à cerca do jardim, onde as nossas sombras estavam. A minha sombra era mais alta que a de Luster na cerca. Chegamos no lugar quebrado e passamos por ele.

“Espera aí.” disse Luster. “Você prendeu naquele prego outra vez. Será que você nunca consegue passar aqui sem prender no prego.”

Caddy me soltou e passamos para o outro lado. O tio Maury disse para a gente não deixar ninguém ver a gente, então é melhor a gente se abaixar, disse Caddy. Abaixa, Benjy. Assim, ó. Nós nos abaixamos e atravessamos o jardim, as flores raspando na gente e estremecendo. O chão era duro. Subimos na cerca, onde os porcos estavam grunhindo e fungando. Eles devem estar tristes porque mataram um deles hoje, disse Caddy. O chão era duro, remexido e embolotado.
William Faulkner, "O som e a fúria"

sexta-feira, outubro 22

Companheiros de todas as horas

 


Voz que se cala

 Jeanie Artwork )
Amo as pedras, os astros e o luar

Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.
Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!…
Florbela Espanca

Leitura espacial

 


Mar dos poetas

São de Eliot estes versos:

“O rio flui dentro de nós,
O mar cerca por todos os lados”


Com o poeta de Quatro Quartetos fico sabendo, na voz que vem no som das águas, que sou peixe e estou no mar que me cerca, talvez sem saída. Mar alto que é enigma, suas águas são desconhecidas, ficamos submersos em tristeza quando pensamos nelas.


Mar de histórias, divindades, beleza. Mar, misterioso mar. Em todas as épocas, poetas admiráveis procuraram beber em suas águas. Alguns deles tentaram fixar a imagem eloquente do ser humano no mar triste da vida. Da criatura humana em estado de crise. No mar de solidão e desespero.

Fernando Pessoa, o genial poeta português, exclamou no infinito sossego do azul do céu: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!” No mar secreto da alma, sentiu o poeta a aventura de além-mar dos portugueses, auscultando a dor dos muitos que rezaram e em vão esperaram. Dos que não foram na aventura, choraram, de muitas noivas que deixaram de casar. Arfando no oceano ébrio de arrebol, o poeta de “Mensagem” teve a sensação nula de prazer e pensar, bêbada de alheia nele perdurou a “onda lúcida do mar”. Disse que abismo e perigo Deus ao mar deu, mas foi nas suas líquidas vastidões que espelhou o céu.

Para que a ventura lusitana no além-mar acontecesse, é possível que estivesse escrito nas estrelas. Com armas e brasões assinalados gente remota passou além da Taprobana, como nos conta o épico e sofrido Camões, pelas águas do mar, mais que prometia a força humana, Novo Reino entre gente remota foi edificado. Homens foram impelidos pelos vastos mares, em sua ousada aventura para que fosse descoberto o Caminho das Índias e, numa empresa de relevo para a história da humanidade, o amanhã, heroicamente, se tornasse português.

Em Castro Alves, o mar é cenário de horror nos navios de escravos trazidos das costas africanas. Ante o duro clamor de ais, gritos e maldições, perguntou o poeta do nosso romantismo se o que os seus olhos viam eram loucura, se era verdade tanto horror perante os céus. Ao poeta dos escravos, somente o mar, com as espumas de suas vagas poderosas, poderia fazer desaparecer tamanho horror perante Deus.

Na lírica romântica de Carlos Drummond de Andrade, o incomparável e enorme poeta de Itabira, o tempo como o mar passa? Não passa. E, da janela sobre as ondas em que o poeta se debruçara, o mundo, vasto mundo, cabe nelas. O mar é grande, mas cabe na cama e no colchão de amar. Grande como o amor, confessa o poeta mineiro, cabe no breve espaço de beijar.

Na arte afinada de Jorge Luís Borges, em que se unem a metafísica e a erudição, a sensibilidade e o enigma, , se o mar é um e muitos mares, acaso e vento, caverna e verdor, a imagem dada pelo bruxo de Buenos Aires é que “o mar, o sempre mar, já estava e era, antes que o tempo se cunhasse em dias”. Entende o criador de “O Aleph” que o momento de saber que é o mar, quem sou, vai estar “no dia ulterior que sucede à agonia”.

Li em Jorge de Lima que, a cada dia, o mar vai ficando mais amargo. Cemitério de líquidas esquadras, tumba de ruivos lobos pelos ares, está ficando cada vez mais na salsugem. Com as lágrimas de sangue derramado nas guerras, que a terra embebeu e correram para o oceano.

Nessa breve incursão pelo coração náutico dos poetas recorde-se ainda Pablo Neruda, que, tendo suavizado o peito de estrelas, por essa luz de sol quente, a subir das espumas, deixando molhadas as tristezas, pediu ao mar que dia a dia abrisse suas pálpebras. Rosa aberta, na velocidade da pureza, estendesse nossas vistas:

“E nos ensine a ver
Onda por onda o mar
E flor e flor a terra”.

quinta-feira, outubro 21

Chá de leitura

 


Um espinho de marfim

Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim da Princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde ele vinha cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no balcão, e, quando o pezinho pequeno pisava no primeiro degrau da escadaria descendo ao jardim, fugia o unicórnio para o escuro da floresta.

Um dia, indo o Rei de manhã cedo visitar a filha em seus aposentos, viu o unicórnio na moita de lírios.

Quero esse animal para mim. E imediatamente ordenou a caçada.

Durante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os cães e, quando todos estavam certos de tê-lo encurralado, perdiam sua pista, confundindo-se no rastro.

Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor de fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do unicórnio.

Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal de sua presença. E silêncio nas noites.

Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo. E logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido. A princesa penalizada com a derrota do pai, prometeu que dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente.

Durante três noites trançou com fios de seus cabelos uma rede de ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim. E no nascer do quarto dia , quando o sol encheu com a primeira luz os cálices brancos, ela lançou a rede aprisionando o unicórnio.

Preso nas malhas de ouro, olhava o unicórnio aquela que mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.

A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos tão mansos retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do pelo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa, espinho de marfim, o chifre único que apontava ao céu.

Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A princesa estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio ergueu-se nas patas finas.

Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o unicórnio? Quantos dias foram precisos para amá-lo?

Na maré das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as borboletas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam em silêncio de amor, ela na grama, ele deitado aos seus pés, esquecidos do prazo.

As três luas porém já se esgotavam. Na noite antes da data marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa. Desconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o unicórnio comia lírios tinha cheiro de flor, e escondido entre os vestidos da princesa confundia-se com os veludos, confundia-se com os perfumes.

Amanhã é o dia. Quero sua palavra comprida, disse o rei- virei buscar o unicórnio ao cair do sol.

Saído o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pelo do unicórnio. Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a promessa. Salvar o amor era preciso.

Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em que haviam se encontrado a princesa aproximou-se do unicórnio. E como no segundo dia olhou-o procurando o fundo de seus olhos. E como no terceiro dia aproximou a cabeça do seu peito, com suava força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido.

Quando o rei veio em cobrança da promessa, foi isso que o sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feixe de lírios.
Marina Colasanti

quarta-feira, outubro 20

É hora do café

 


No topo da montanha

O teleférico havia nos deixado no ponto de melhor vista das montanhas. Chegar ao topo, olhar em volta para aquele universo branco, em que as rajadas do sol marcavam com luz e sombras cada uma das ranhuras da cordilheira, deveria me trazer muita alegria. A descida equivalia a doze quilômetros de prazer. Poucas pistas de esqui costumam ser tão extensas, sem interrupções para tomar um novo teleférico. Todos que subiam até ali pela primeira vez paravam por alguns minutos para observar a vista. É ótimo respirar o ar puro, cercado pela neve que se vê em toda parte, sob nossos pés, ou nas montanhas mais longínquas. A sensação de estar próximo ao céu, em espaço tão vasto, torna mais intensos os efeitos da respiração.

O preparativo para a descida incluía uma golfada de ar nos pulmões e um sentimento de cumplicidade com a natureza. Mas, por motivos pouco ou nada racionais, isso não acontecia comigo naquele momento. Eu me abaixei para apertar as botas e disfarçar para o meu instrutor, ou para mim mesmo, a angústia que tomava conta da minha respiração e do olhar. Levei mais tempo que o normal, apenas para recuperar o fôlego, tentando eliminar o travo que fechava minha garganta justamente quando eu esperava pelo contrário. O contato com o ar puro no alto, a velocidade da descida, eram um bom antídoto para a depressão da qual sou portador. Não esquiei muitas vezes na vida, mas estar na montanha e ainda praticar um esporte durante grande parte do dia tem efeito terapêutico, é sinônimo de alegria e descontração. Nas alturas sou responsável apenas por usufruir da natureza. A atitude é a mesma nas montanhas de neve ou naquelas que frequento no Brasil, onde me entrego às águas geladas dos rios e das cachoeiras, sem poder corrigir seu rumo, sem poder editar nada ao meu redor, sem me atribuir nenhuma responsabilidade por algo que não está sob o meu controle. A montanha requer um exercício de humildade, exige subserviência ao que não foi criado pelo esforço humano. Em troca oferece um grande prazer.

Naquela viagem, outro fator importante deveria servir como garantia de felicidade. Pela primeira vez levávamos nossas netas, Zizi e Alice, para esquiar. Depois de explorar as pistas mais velozes pela manhã com meu instrutor, à tarde eu me divertia esquiando com elas, acompanhando suas aventuras na neve. De resto, já de volta ao hotel, as horas eram tomadas por conversas, brincadeiras e preparativos para o jantar, no qual as duas se deliciavam com a comida regional. Estar com “as meninas” passou a ser, há tempos, um dos pontos centrais da minha vida, um contraponto a uma existência em que me afastei de amigos e restringi meus contatos ao campo profissional, fazendo amizades circunscritas ao mundo dos livros e vivendo, na maior parte do tempo, cercado da família ou em silêncio.

Assim, chegar ao cume naquela manhã, com os pulmões contraídos e sem ar, com um nó seco inexplicável na garganta, foi um choque, uma reversão completa do que eu imaginara ou sonhara por meses.

Não era só a montanha que cobrava de mim humildade. A depressão exigia muito mais.

Assustado com o esforço que precisava fazer para que o ar entrasse em meus pulmões, eu não pensava, no começo desta história, no dia em que senti os sintomas iniciais da depressão. Poucos, dentre os portadores de tal enfermidade, se lembram com exatidão do momento em que percebemos pela primeira vez os sinais, que surgem quando identificamos algo entre a garganta e os pulmões, um obstáculo que torna mais exíguo o espaço para o ar, que dificulta o ato de respirar. Em geral, a depressão apaga a lembrança remota, tem memória curta, acentua a dor recente, quase desprezando qualquer traço de história. Era o que eu sentia ali em cima, e não queria sentir nunca mais.

Se me esforço para recordar o início da minha doença, é possível construir uma narrativa. Lembro do ar que me faltava no cume e me vem à mente a figura do meu pai, que jamais esteve lá.

Antes mesmo da imagem da íris verde do meu pai, minha depressão apareceu como um som. O som das pernas dele, batendo na cama sem parar, no quarto ao lado, onde meu pai penava para dormir. A íris verde, em contraste com a esclera frequentemente umedecida e avermelhada — que enchia de água a bolsa inferior dos olhos, onde as lágrimas ficavam represadas —, passou a ser a sua principal imagem, alguns anos depois do som grave que vazava das paredes, pá, pá, pá, pá, pá… Aquele barulho seco — quase o oposto complementar dos olhos molhados —, ele não conseguia esconder ou controlar. Não lembro exatamente quando ouvi o tambor aflitivo pela primeira vez, ou sim, acho que sei, foi também quando me deprimi pela primeira vez. Foi meu primeiro grande susto, ao intuir que não daria conta dos meus deveres de filho único. Naquela ocasião percebi, mesmo sendo bem pequeno, que não conseguiria garantir a felicidade do meu pai, já ciente de que esta seria, para sempre, a mais importante missão da minha vida. Missão em que fracassei por completo.
Luiz Schwarcz

Leitura para todos

 


Acredito na magia

Acredito na magia. Nasci e fui criado num tempo mágico, numa cidade mágica, entre mágicos. Quase ninguém se apercebia de que vivíamos dentro de um círculo mágico, ligados uns aos outros por filamentos de acaso e circunstância. Mas eu sabia que assim era. Quando tinha doze anos, o mundo era a minha lanterna mágica, que me permitia, através de um pequeno espírito verde e brilhante, ver o passado, o presente e o futuro. Tenho a certeza de que havia outras pessoas que conseguiam fazê-lo, só que não se lembram disso. É minha convicção de que, à nascença, todos somos mágicos. Todos nascemos com redemoinhos, florestas e cometas dentro de nós. Nascemos com a capacidade de cantar para os pássaros, ler as nuvens e ver o nosso destino em grãos de areia. O problema é que somos depois educados de forma a expulsar a magia das nossas almas. A nossa educação escolar doma-a e a nossa educação familiar domestica-a. Dizem-nos que temos de ser responsáveis e seguir caminhos pré-determinados, que temos de crescer e comportar-nos de acordo com a nossa idade. Tudo isto acontece porque as pessoas têm medo da autenticidade e da juventude e porque a nossa magia as faz sentir tristes pela magia que deixaram morrer dentro delas. Quando nos afastamos muito da magia, não temos forma de a recuperar. Apenas teremos vislumbres dela. Segundos em que a reconhecemos e a recordamos. As pessoas choram a ver filmes porque a escuridão da sala de cinema permite que o lago dourado da magia o toque. Mas o lago seca mal saem para a luz dura do sol da lógica e da razão, deixando-as com um sentimento de tristeza e perplexidade. Sempre que uma canção acorda uma memória, que partículas de pó dançam por entre raios de luz e nos distraem do mundo, que ouvimos um comboio passar ao longe na noite e nos perguntamos qual será o seu destino, cruzamos uma fronteira que nos leva para lá do que somos e de onde nos encontramos. Entramos no mundo da magia por um brevíssimo instante.
Acredito firmemente nisto.

Com o passar dos anos, vamo-nos afastando cada vez mais da essência com que nascemos. Somos sobrecarregados com fardos, alguns mais difíceis do que outros. Acontecem-nos coisas. Morrem seres que amamos. As pessoas sofrem acidentes e ficam incapacitadas. Ou perdem-se na vida por uma qualquer razão. Num mundo cheio de labirintos, não é raro acontecer. A vida encarrega-se de nos fazer esquecer a memória da magia. E só descobrimos que isso nos está a acontecer quando, um dia, sentimos que perdemos algo, mas não sabemos o quê.

Estas memórias de quem fui e de onde vivi são importantes para mim, porque constituem uma parte muito importante de quem serei no momento em que os passos da minha caminhada nesta vida começarem a abrandar. Nessa altura, vou necessitar da memória da magia para poder fazê-la ressurgir. Preciso saber e recordar. Para poder dizer-vos. 
Robert McCammon, "Boy's Life"