domingo, outubro 31

Prefácio

Na década de 1950, quando era estudante, o constrangimento de ser chamado de escritor politizado era tão forte, o medo do escárnio da crítica por canalizar a criatividade para o estado das questões sociais era tão profundo, que eu me perguntava: por que o pânico? A fuga de qualquer acusação de exibir uma consciência do mundo político na ficção fez minha atenção se voltar para a fonte do pânico e os meios pelos quais os escritores procuravam aplacá-lo. O que poderia haver de tão ruim em ser socialmente perspicaz, politicamente consciente na literatura? A crença comum é de que ficção política não é arte; que é menos provável que uma obra assim tenha valor estético porque a política — a política como um todo — é plano de ação e, portanto, sua presença macula a criação estética.

Essa crença, que parece não ter existido para Chaucer, Dante, Catulo, Sófocles, Shakespeare ou Dickens, continua conosco e, em 1969, era um fardo descomunal para os escritores afroamericanos. Seja quando não tinham interesse nenhum por política, ou no caso de terem tendências, consciência ou agressividade no campo político, a raça deles ou a raça de seus personagens os condenava a uma análise “puramente política” de sua relevância. Se Phillis Wheatley escrevesse “o céu é azul”, a questão crucial seria o significado do céu azul para uma escrava negra. Se Jean Toomer escrevesse “o ferro é quente”, a questão seria com que precisão ou imprecisão ele exprimia as correntes da servidão. Esse encargo cabia não só aos críticos, mas também ao leitor. Como um leitor de qualquer raça que seja se coloca a fim de se aproximar do mundo de um autor negro? Não haverá sempre uma apreensão quanto ao que pode se revelar, se expor a respeito do leitor? 

Em 1970, quando comecei a escrever Sula, já tinha vivido a experiência deprimente de ler comentários sobre meu primeiro romance, O olho mais azul, de resenhistas negros e brancos que — salvo por duas exceções — pouco mérito tinham, já que a avaliação ignorava exatamente o critério “puramente estético” que defendiam. Se o romance era bom, era por ser fiel a certo tipo de política; se era ruim, era por não lhe ser fiel. A crítica era baseada em “os negros são — ou não são — desse jeito”. Dessa vez, retribuí o elogio e ignorei a superficialidade de tais opiniões e, de novo, arraiguei a narrativa em uma paisagem já maculada pelo fato de existir. Só algumas pessoas se interessariam, eu imaginava, por uma abordagem mais ampla — bem menos que uma minúscula porcentagem das mil e quinhentas que tinham comprado o primeiro livro. Mas o ato de escrever me era muito importante do ponto de vista pessoal para que eu o abandonasse só porque a probabilidade de que me levassem a sério era baixa. Talvez agora seja difícil imaginar qual é a sensação de ser visto como um problema a ser resolvido e não um escritor a ser lido. James Baldwin, Ralph Ellison, Richard Wright, Zora Neale Hurston — todos foram convocados a fazer ensaios abordando o “problema” de ser um escritor “negro”. Nessa situação em que uma vitória é impossível inautêntica, até mesmo irresponsável, para os que buscam um retrato politicamente representativo; marginalizada para os que calculam o valor segundo a “moralidade” dos personagens —, minha única opção era ser fiel à minha própria sensibilidade. Explorar mais a fundo meus interesses, questões, desafios. E, já que minha sensibilidade era extremamente política e veementemente estética, ela permearia sem culpa o trabalho que eu fizesse. Recusei-me a explicar, ou sequer admitir, o “problema” como algo além de artístico. Outras questões eram mais importantes. Como é a amizade entre mulheres quando não é mediada por homens? Que opções existem para mulheres negras fora da aprovação de suas comunidades? Quais são os riscos do individualismo em uma comunidade firmemente individualista, porém racialmente uniforme e socialmente estática? 

A liberdade feminina sempre significa liberdade sexual, mesmo quando — sobretudo quando — vista pelo prisma da liberdade econômica. A liberdade sexual de Hannah Peace foi minha porta de entrada na história, construída a partir dos cacos de memórias de como as mulheres da cidade enxergavam certo tipo de mulher — inveja aliada a aprovação entretida. Em oposição às suas reivindicações razoavelmente modestas de liberdade pessoal há outras, convencionais e anárquicas: o sacrifício físico de Eva em troca da liberdade econômica; a acomodação de Nel à proteção prometida pelo casamento; a resistência de Sula ao sacrifício e à acomodação. As reivindicações de Hannah são aceitáveis na vizinhança porque não são financeiras e não são ameaçadoras; ela não atrapalha ou esgota recursos familiares. Como é dependente de outra mulher, Eva, que tem dinheiro e também autoridade, não é competitiva. Mas Sula, embora não faça nada tão horrendo quanto Eva, é vista pelo povo da cidade não só como competitiva, mas como voraz, maligna. Nel, com suas exigências mínimas, é considerada o padrão emudecido. 

Hannah, Nel, Eva, Sula eram pontos de uma cruz — cada uma delas uma opção para personagens limitados por gênero e raça. O centro dessa cruz seria uma fusão de responsabilidade com liberdade difícil de alcançar, uma batalha entre mulheres que se subentende ser as menos capazes de vencê-la. Enrolados nos braços dessa cruz estão os fios de outros tipos de batalhas — o veterano, os órfãos, o marido, os trabalhadores, confinados a um vilarejo pelas mesmas forças que ordenaram a luta. E o único triunfo possível foi o da imaginação. A missão, é claro, era evocar essas percepções em uma linguagem capaz de expressá-las. Sula levou mais longe minhas tentativas de manipular a linguagem, de trabalhar credivelmente e, talvez, elegantemente com um vocabulário desprestigiado. De usar a linguagem popular, vernacular, de maneira que não fosse nem exótica nem cômica, nem menestrelada nem analisada sob microscópio. Queria redirecionar, reinventar os juízos políticos, culturais e artísticos reservados aos escritores afro-americanos.

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