Perdi o bonde e a esperança, dizia um, enquanto passava o bonde. Havia bondes e havia esperança. Pouco importava o que diziam os jornais. Havia jardins, havia manhães naquele tempo. Volto páido para casa, dizia o outro. A tragédia lá fora, a guerra. Nossos ombros suportavam o mundo e ele não pesava mais do que a mão de uma criança. O amor não tem importância. Que é a velhice?
A cidade ainda cheirava a roça. E cheirava a tinta, novinha em folha. Todavia, velha cidade! Era ali mesmo, naquele cenário, que se situavam os versos tão repetidos. As árvores tão repetidas. Debaixo de cada árvore faço minha cama. Eu via a árvore, por que não veria a cama? Em cada ramo dependuro meu paletó. A avenida tinha muitas árvores, muitos ramos. E ali estava o poeta, com o seu paletó. Escovadíssimo, nos trinques. E os tristes olhos azuis.
Ao Paulo, o que impressionou foram os sapatos de camurça. Volta e meia, anos a fio, os sapatos voltavam à conversa. O poeta achava graça e ria. Um simples detalhe, desses que ficam para sempre. Como um cisco que se recusa a sair. Há três anos, desde março de 1989, a efígie do poeta está numa cédula que começou sendo de cinquenta cruzados novos. Hoje é de cinquenta cruzeiros. Não vale um caracol.
O raio dessa nota me persegue. Vira e mexe, tenho duas, três no bolso. Nem de óculos consigo ler os quatro versos da "Prece de mineiro no Rio". Fujo da "Canção amiga", que está inteira na cédula. Quanta coisa no anverso e no reverso de um papelucho que não vale nada. Está fiel o desenho. É a sua cara. Mas fechada demais. E ele ria, sabia rir. Aqui está tristíssimo, como nunca o vi. Deve ser o diabo dessa inflação. Fujo da efígie e reencontro, remoto, em Minas, o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Otto Lara Resende, Folha SP 22/02/1992
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