quinta-feira, outubro 14

Sai o português, entra o clichê

Um clichê é uma palavra ou expressão
 que nos vem à boca sem passar pela cabeça

O mercado ficou nervoso. A Bolsa de Valores despencou. As reservas encolheram. O dólar disparou. As reservas se volatizaram. As empresas amargaram prejuízos. O ministro tenta apagar o incêndio. Os analistas questionam o sistema. O governo descarta a possibilidade de crise. Urge diversificar os investimentos. A economia está estruturada. Os estados precisam enxugar os gastos.

Como costumava perguntar o professor Higgins (o linguista criado por Bernard Shaw na peça Pigmalião, digo My fair lady) ao seu amigo, o coronel Pickering: “Diga‑me, Pickering, que raio de língua é esta?”. O veterano e dedicado Pickering talvez respondesse: “Chama‑se economês, Higgins, e foi inventado no Brasil pelos
economistas. Parece que é um novo dialeto do português. É falado pelos comentaristas econômicos de televisão e, ultimamente, até pelo povo brasileiro, embora seja compreensível apenas para quem é pago para entendê‑lo”.


Pickering foi profundo, mas, se dissesse isso, estaria induzindo Higgins a erro — porque esse não é o legítimo economês. Economês é quando o Banco Central diz, como numa esclarecedora nota oficial outro dia, que “a atual política de intervenções intrabanda será descontinuada”. Imagino que descontinuada (do inglês discontinued) queira dizer, em português arcaico, interrompida. Mas o que serão “intervenções intrabanda”? Ou quando um ministro, referindo‑se a dívidas não declaradas, anunciou outro dia que o governo empreenderia uma “caça aos passivos ocultos”— com o que criou um pânico entre os gays enrustidos.

As frases tão familiares citadas no começo deste artigo são apenas o economês vulgar, traduzido em clichês. Um clichê, como se sabe, é uma expressão ou frase feita que nos vem à boca ou aos dedos sem precisar passar pela cabeça. É um bloco de palavras que andam juntas e já nasce pronto para ser falado ou escrito — motivo pelo qual é logo adotado pelo povo, que não tem muito tempo para pensar. Como tudo que é dito ou escrito sem ser pensado, os clichês perdem rapidamente qualquer vestígio de significado e, quanto mais ocos se tornam, mais são usados.

Que o povo os adote, é normal. O que me intriga é o fato de os comentaristas econômicos de televisão os usarem até hoje. Eles continuam a dizer que o mercado ficou nervoso ou que a Bolsa despencou. E, talvez pela gravidade do assunto, cometem a proeza de dizer isso sem um toque de ironia. Na verdade, dão a essas frases uma ênfase de bronze, como se tivessem acabado de inventá‑las.

Quem despenca é uva, quem amarga é fel e quem descarta é jogador de burro em pé. Diz o governo que é preciso reabilitar os ativos. Mas quem reabilita ativo é a abbr. Os significados originais e primários das palavras vão perdendo o valor diante dos novos contextos em que os tais verbos passam a ser massacrante mente repetidos.

Seria mais fácil dizer que a Bolsa caiu ou o dólar subiu (verbos simples e diretos, perfeitos para a situação), mas uma irreprimível jequice verbal nos leva a querer complicar. A língua não ganha com isso, só perde — porque, com o abuso, chega o dia em que o próprio clichê acaba sendo abandonado e as palavras que ele invadiu deixam de ser usadas até na sua conotação original.

“Válido” e “inserido no contexto”, por exemplo, eram boas expressões que se transformaram em clichês nos anos 60. De tanto serem gozadas por nós, no antigo Pasquim, foram evaporadas da língua.

Os mais atentos a esses joanetes linguísticos sempre souberam que certos clichês só servem mesmo para fazer piada: “O apresentador Fulano, enquanto ícone da cultura off‑usp, é emblemático do estilo de televisão produzido em São Paulo”. Ou “A nível de mulher, descobriu‑se na praia que a irretocável Beltrana tem estrias e celulite”. Até algum tempo, as pessoas ainda julgavam estar falando a sério quando usavam palavras como “enquanto”, “ícone”, “emblemático”, “irretocável” ou “a nível de”. Hoje, será possível usá‑las sem ser para fins humorísticos?

Talvez sim — porque os jornalistas ainda não acordaram nem para o fato de que o verbo “resgatar” está implorando por uma aposentadoria. O que se continua resgatando de filmes, livros e discos nos segundos cadernos é uma grandeza. Mas o esvaziamento semântico de resgatar é tão absoluto que, de uns tempos para cá, nem os sequestradores querem saber mais disso — sequestram um infeliz e somem com ele de uma vez, sem pedir resgate. E a última moda (passada a febre de “Fulano relê o filme ou peça do Beltrano”) é “um novo olhar sobre isso‑assim‑assado”. Os franceses já brincavam disso em 1968: “Godard lança un nouveau regard sobre o cinema” — e nós, por aqui, também.

Tenho sentido falta, nos últimos tempos, do “leque de opções” e do “apostar todas as fichas”. São clichês que, depois de anos de uso exaustivo na imprensa e na fala diária, parecem ter sido, até que enfim, descontinuados. Pelo visto, as pessoas se mancaram e descobriram que os leques, mesmo os de opções, são apenas para se abanar em dia de calor. Quanto às fichas, devem ter apostado todas e perdido, o que também já não era sem tempo.

Mas o clichê mais imbatível (aliás, “imbatível” também é clichê) continua sendo a notícia de que “Fulaninho entrou em estúdio para gravar seu novo disco”. Bolas, onde queriam que ele gravasse o disco? Na rua, no outro lado da calçada? É verdade que há uma tíbia justificativa para essa mania de dizer que o fulano entrou em estúdio. Um simples disco, hoje, leva meses para ser gravado — e um dos motivos é o de que nossos compositores‑cantores passam o ano inteiro fazendo shows e não têm tempo para compor. Mas, por obrigação contratual, são obrigados a gravar um disco por ano, e para sair no mês xis. Com isso, entram em estúdio de mãos abanando, às vezes sem uma única canção, e deixam para compor tudo de uma vez, durante a gravação do próprio disco. Isso pode explicar por que os últimos discos dos nossos grandes nomes não têm tantas coisas memoráveis quanto os seus discos mais antigos, do tempo em que eles só entravam em estúdio depois de fazer a — outro clichê — lição de casa.

Nada mais triste e antigo do que um clichê usado, abusado e abandonado. Lembra certas coisas queridas que um dia estiveram em grande evidência, até que foram deixando de estar e hoje só são lembradas durante surtos de nostalgia. Como o estrogonofe, o coquetel de camarão, a samambaia-chorona, o perfume Pinho Silvestre, o vestido saco, as camisas Ban‑Lon, a garçonnière, o concretismo e o bambolê.
Ruy Castro, O Estado de S. Paulo, 23/1/1999

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