segunda-feira, outubro 4

Algumas, todas miúdas

Temos no corpo ainda algumas marcas do tempo em que o amor nos tomou por servos. Olhá-las é o que nos resta. Que se conservem como lembrança de uma época em que nossa carne jovem merecia atenção. Que dentes, que chicotes a escolheriam hoje para deixar seus testemunhos?


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Que a palavra amor te embriague sempre que a disseres, e que a digas sempre que te perguntarem que maravilhosa loucura é essa que te move e que faz de ti a criatura única que és.

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Seja sensato. Mantenha os olhos sempre abertos para tudo. E não se esqueça de que até a sensatez deve admitir exceções. O amor é uma delas.

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Aos vinte, era a esperança. Aos oitenta, o que o move ainda no rumo da poesia é a mais obstinada, cega e tola teimosia.

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Passagens de alguns poemas antigos, pelo seu brilho único, não pareciam escritas por mãos humanas. Foi um tempo, infelizmente curto, em que os deuses, enfastiados com a inépcia dos poetas, às vezes lhes davam uma ajuda.

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As palavras me escarnecem, se afastam de mim, me esquecem. Se as chamo, não me obedecem, se as busco desaparecem.

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Fatos são fatos. Hoje lavamos mais as mãos do que no tempo de Pilatos.

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Que inveja nos dão aqueles que, numa festa, dizem “eu lido com o mercado de capitais” ou “meu trabalho é na inspetoria de portos”. Alguém se infla ao dizer “meu negócio é a literatura”.

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Depois dos oitenta, a prática da literatura passa a ser um pecado menor, como fumar escondido dos netos.

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Para não nos afligir e nem nos ouvidos doer, a lei não deve vigir, a lei deve viger.
Raul Drewnick

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