Comecemos pela definição. Campinho é qualquer área que a imaginação transforme em campo de futebol: um terreno de terra batida com 12 buracos (bom de torcer o pé); uma quadra de cimento (bom de ralar joelho); um pátio de escola com uma árvore no meio; um pasto com oito cupinzeiros.
Traves, mesmo aqueles dois gambitos de bambu, são um luxo desnecessário. No campinho, a dimensão do gol é marcada pela distância entre uma camiseta amarfanhada e uma latinha de refrigerante, ou um sandália velha e um boné do Açougue do Djalma. Não há marcação que defina quando a bola saiu pela lateral ou linha de fundo: tudo é uma questão de bom senso. Só na areia da praia que um dos limites é traçado pelo mar. Se a bola caiu na água, saiu. Quando sobe a maré, o campo diminui, favorecendo as retrancas.
No campinho, podem jogar 11 pra cada lado; mas 15 de um lado e 13 de outro também é permitido, desde que o craque do jogo esteja no segundo time. O juiz é dispensável: as faltas são marcadas quando os gritos pedindo a marcação parecem sinceros. Pênaltis são assuntos de grande gravidade, quando se discute ao menos três minutos: se foi fora da área, se houve intenção faltosa, e, em caso de impasse, pergunta-se a alguém de fora, que assistia ao jogo inocentemente, chupando um sorvete, se ele marcaria ou não. E ai de quem disser “ah, eu estava distraído com as gaivotas”.
Há sempre um zagueiro gordo, com a camisa do tempo em que era magro, a revelar a barriga; o volante ruim de doer, que se acha o capitão e reclama do time todo; um que joga pra burro, mas é meio cai-cai e pipoca nas divididas; o lateral que não sai debaixo da sombra nem a pau, por isso não consegue se achar em campo nos dias nublados; o goleiro com pinta de motorista de táxi esperando o passageiro; e uma cervejinha depois do jogo para a confraternização dos atletas.
Confira a escalação: nunca há um Otávio Augusto ou Carlos Eduardo, que tomaram conta do futebol profissional. É Nenê, Dodô, Meleca, Magrão, Tuim, Pulga, Tiqué, nomes mais fáceis na hora de gritar pra correr. Imagina um “Vai, Otávio Augusto!” Até o moço ouvir, processar e correr, o zagueiro já cortou o lance.
Outro detalhe fundamental: nunca, na história da humanidade, uma peleja no campinho terminou em zero a zero. Isso é para o mundo corrompido do esporte como negócio, com suas tramoias e politicagens. No verdadeiro futebol-arte, o placar costuma ser uns 14 a 9, e ninguém erra na conta.
Ah, sim, vamos ao que importa: a bola. Pois um campinho sem bola não passa de um cenário pobre, uma locação de terreno baldio ou floresta devastada. Com a bola, ele vira um Wembley em miniatura, um Maracanã sem aquele exagero. A bola jamais pode ser 100% redonda, mas sim, como a Terra, levemente achatada nos polos. Deve ser de dificílimo controle, para o constante aperfeiçoamento dos jogadores. Seus quiques irregulares devem envergonhar os pernas-de-pau e serem caprichosos com os craques. E nos gols bonitos, costuma estufar as redes até quando não há rede.
Não há dúvida de que Garrincha aprendeu muito nos campinhos, tendo que driblar os carreirões de quero-queros que faziam seus ninhos no gramado. Que Pelé aprendeu a arte de dominar a bola estudando a ação de cada buraco sobre sua trajetória. Ou que Rivellino aperfeiçoou a arte do chute com efeito nas bolas de capotão remendadas.
Nem o clássico “Casados versus Solteiros” temos visto. O time dos Casados vem perdendo seus craques a cada dia para o Divorciados. Fenômeno esportivo ou social? Isso as mesas redondas não esclarecem, nem na TV, nem nos botecos.
Não sei se somos ainda o melhor futebol do mundo. Certo é que ele não é mais jogado por aqui. Garoto bom de bola já é vendido para o Barcelona com 10 anos. Daí fica por lá mais 15 anos e, quando dá entrevista, se esquece das palavras do bom português futebolístico, como “dilbre, vareia, professor, crássico, menas”. Chato isso.
E o principal motivo dessa evidente decadência é o sumiço dos campinhos. Cadê as várzeas, os terrenos sem construção, as poças de lama onde a bola empaca? Sumiram. Deram lugar aos prédios, shoppings e condomínios. Não faço ideia de como resolver essa grave questão. Faz parte do progresso, pelo visto. No assunto futebol, confesso que sou do Saudosista Futebol Clube.
De tantos campinhos, sobraram alguns. Os preciosos. É preciso acionar o Ibama ou o Condephaat, e protegê-los. Deixá-los descuidados, com mais terra que grama, toscos, feinhos. Porque é nas suas grotescas irregularidades que nasce o futebol bonito. De novo: nada contra o progresso, é a vida. Só me deixem torcer aqui no meu canto. No jogo em que ainda imagino, a gente está dando um vareio no Progresso: 4 a 1. Três gols do Tiqué e um do Meleca.
Até que uma escavadeira invade o campo.
Cássio Zanatta
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