Mas não teve tempo de contemplar a seu gosto aquela maravilha – e muito menos as outras maravilhas da sala, as cortinas de seda brochée, os porta-bibelôs carregados de figurinhas de biscuit, o estofo azul adamascado das cadeiras de pernas delgadas, o tapete rico do chão. Madame descia a escada arrastando atrás de si a saia imensa de um quimono de veludo, viu o pequeno tintureiro, franziu o cenho, e ralhou com a criada por receber entregadores no vestíbulo: “Para que existe a entrada de serviço, criatura?”
Ele se encolheu todo, recebeu o cabide, saiu.
Com o tempo, mudou de bairro, mudou de tinturaria; mas nunca esqueceu aquela casa, aquela madame que avançava escada abaixo, o pé metido em sandália de arminho, e aquela sala – nem nunca esqueceu, principalmente, o grande piano de cauda. A seus olhos o piano de cauda ficou sendo o símbolo do triunfo, da riqueza e da fidalguia.
Na terceira tinturaria em que se empregou – essa aliás já no novo bairro de Copacabana, afinal progrediu. Da bicicleta passou ao balcão, do balcão à caixa; foi sucessivamente interessado, sócio, e por fim quando o antigo patrão embarcou para a Europa, ficou sendo ele próprio o patrão único.
Enriqueceu. Alugou casa de dois pavimentos; teve automóvel. Afinal construiu um palacete, estilo tutti-frutti, com terraços suspensos, biqueiras de telha colonial, colunas barrigudas, portas imensas que são uma renda de ferro dourado, bancos de azulejo, piso de mármore na varanda e no hall. Lá dentro no salão, que já não se chama assim, chama-se living, há todos os esplendores do luxo: estatuetas de bronze, vasos de opalina, lustres de cristal, sofás de veludo, poltronas de cetim. O piso marchetado se esconde debaixo de uma quantidade de tapetes, uns claros, de desenho moderno, outros persas, com complicados arabescos, e as paredes vergam ao peso dos quadros, paisagens de mar e nus artificiais em pesadas molduras. E no fundo, como um rei no seu trono, ergue-se no estrado atapetado o piano de cauda, lustroso e imponente como um elefante sagrado, ornado de seda e flores. Não é o mesmo de Botafogo, mas evidentemente é seu parente próximo. Tem a mesma majestade, o mesmo verniz cintilante, a mesma impressionadora elegância. Em casa não existe quem nele toque, quem bata uma escala sequer: naquele palacete onde há em abundância o necessário e o supérfluo, jamais entrou um caderno de música. O piano continua virgem como veio da loja. Aliás pareceria talvez um sacrilégio ao proprietário se alguém se atrevesse a meter as mãos nas teclas de marfim do seu piano. Não é ele um objeto de entretenimento, não é um piano para se tocar; tem função específica bem diversa, que talvez só se pudesse exprimir corretamente dizendo que ele é o boi Ápis daquela casa.
Nas tardes de domingo, depois do ajantarado e da sesta, é a hora em que o nosso amigo dedica a saborear com largueza a sua felicidade.
O living abre diretamente para a varanda da frente. O dono da casa ocupa um dos sofás de pelúcia, com as portas de ferro escancaradas como sempre, porque não é homem de esconder-se a si, nem de esconder o que é seu; vive às claras, não tem complexos nem segredos. Traz no corpo um belo pijama de seda clara, põe os pés nus sobre uma banqueta estofada. Na mesinha de tampo de espelho, bem ao alcance da mão, tem uma garrafa de cerveja gelada. Ouve no rádio – que tem a forma de um santuário gótico – os lances do Fla-Flu; mas só escuta o jogo com vaga atenção, porque o melhor do seu tempo dedica-o a contemplar o piano, com olhos que não se fartam – a expressão do seu triunfo, o símbolo da luta vencida. Não precisa mais de céu quando morrer – o céu para ele é aquilo.
E as gentes que passam no bonde e que lhe demoram à porta, durante a parada no poste bem defronte, têm a impressão de que uma aura beatífica, um halo que não é apenas a fumaça do charuto, rodeia aquele homem gordo de pijama verde-alface, que entrefecha os olhos e leva aos lábios o copo de cerveja preta, e parece brindar a um deus presente, numa libação ritual.
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