quinta-feira, outubro 7

Assim começa...

Assim, depois de muitos anos, via-me em casa outra vez. De pé na grande praça (que criança, depois garoto, depois rapaz, atravessara mil vezes), não sentia nenhuma emoção; ao contrário, achava que aquele espaço, cuja torre (semelhante a um cavaleiro medieval sob o seu elmo) domina os telhados, lembrava o amplo pátio de exercícios de uma caserna, e que o passado militar desta cidade da Morávia, outrora baluarte contra os ataques dos magiares e dos turcos, havia imprimido em sua face a marca de uma feiura irrevogável. 

Por muitos anos, nada me atraíra para minha cidade natal; dizia comigo mesmo que ela se tornara indiferente para mim, e isso me parecia natural: já fazia quinze anos que morava longe, aqui tinha apenas alguns conhecidos, amigos até (que, aliás, preferia evitar), minha mãe estava enterrada numa sepultura estranha de que eu não cuidava. Mas eu me enganava: aquilo que chamava indiferença era na verdade rancor; as razões disso me escapavam, pois tinham me acontecido coisas boas e ruins nesta cidade como em todas as outras, e em todo caso havia esse rancor; tomei consciência disso por ocasião de minha viagem: a tarefa que me trazia aqui, pensando bem, poderia ter sido cumprida da mesma forma em Praga, mas de repente tinha sido irresistivelmente atraído pela oportunidade oferecida de executá-la na minha cidade natal justamente porque se tratava de uma tarefa cínica e terra a terra, que, com ironia, me isentava da suspeita de voltar aqui sob o efeito de um enternecimento piegas em relação ao tempo perdido. 

Uma vez mais percorri com um olhar malicioso a praça pouco atraente, antes de lhe dar as costas para entrar na rua 10 do hotel em que tinha reservado um quarto para passar a noite. O porteiro me entregou uma chave com uma pera de madeira dizendo: “Segundo andar”. O quarto não era muito convidativo: uma cama encostada na parede; no meio, uma pequena mesa com uma única cadeira; ao lado da cama, uma pretensiosa mesa de toalete de mogno com um espelho; perto da porta, uma pia descascada, absolutamente minúscula. Coloquei a pasta em cima da mesa e abri a janela: dava para um pátio e algumas casas que mostravam ao hotel suas costas nuas e sujas. Fechei a janela, baixei as cortinas e me aproximei da pia, que tinha duas torneiras, uma marcada de azul, outra de vermelho; experimentei-as — a água escorria igualmente fria de ambas. Examinei a mesa, que a rigor serviria a seu propósito, acomodaria muito bem uma garrafa e copos; infelizmente, apenas uma pessoa poderia usá-la, já que não havia uma segunda cadeira no quarto. Tendo empurrado a mesa em direção à cama, tentei me sentar nesta, só que ela era muito baixa e a mesa, muito alta; além disso, afundou tanto embaixo de mim que, ficou logo claro, ela mal serviria de assento e preencheria de maneira duvidosa sua função de cama. Apoiei-me nas mãos fechadas; em seguida me estendi, levantando com precaução os pés calçados, a fim de não sujar a coberta e o lençol. O colchão cedeu sob o meu peso e eu fiquei estendido como numa rede ou num túmulo estreito: não era possível imaginar alguém dividindo essa cama comigo. 

Sentei-me na cadeira, o olhar perdido em direção às cortinas, cuja transparência deixava passar a claridade, e fiquei pensando. Nesse momento, ouvi passos e vozes no corredor; duas pessoas conversavam, um homem e uma mulher, e cada uma de suas palavras era inteligível: falavam de um tal Petr que tinha fugido de casa e de uma tia Klara que era idiota e estragava o menino; depois veio o som de uma chave virando na fechadura, uma porta se abriu e as vozes continuaram no 11 quarto ao lado; ouvi os suspiros da mulher (é, mesmo os suspiros chegavam até mim!) e a decisão do homem de dizer, de uma vez por todas, umas verdades a Klara. 

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