Nos textos sagrados, nos quais cada letra e o número de letras e sua ordem eram ditados pela divindade, a compreensão plena exigia não apenas os olhos, mas também o resto do corpo: balançar na cadência das frases e levar aos lábios as palavras sagradas, de tal forma que nada do divino possa se perder na leitura.
Minha avó lia o Velho Testamento dessa maneira, pronunciando as palavras e movendo o corpo de um lado para o outro, ao ritmo da prece. Posso vê-la em seu apartamento sombrio no Barrio del Once, o bairro judeu de Buenos Aires, entoando as palavras antigas do único livro da casa, a Bíblia, cuja capa preta lembrava a textura de sua própria tez pálida amolecida pela idade. Também entre os muçulmanos o corpo inteiro participa da leitura sagrada. No islã, saber se um texto sagrado é para ser ouvido ou lido é uma questão de importância essencial. O erudito do século IX Ahmad ibn Muhammad ibn Hanbal expôs o problema nos seguintes termos: uma vez que o Corão original - a Mãe do Livro, a Palavra de Deus tal como revelada por Alá a Maomé - é incriado e eterno, torna-se ele presente apenas ao ser dito na oração ou ele se multiplica na página examinada pelo olho para ler, copiada por diferentes mãos ao longo das eras humanas? Não sabemos se obteve resposta, porque em 833 tal questão valeu-lhe a condenação do mihnah, ou inquisição islâmica, instituída pelos califas abássidas. Três séculos depois, o estudioso de leis e teólogo Abu Hamid Muhammad al-Ghazali estabeleceu uma série de regras para estudar o Corão, segundo as quais ler e ouvir o texto lido tornaram-se parte do mesmo ato sagrado. A regra número cinco estabelecida que o leitor deve seguir o texto lentamente e sem nenhum atropelo a fim de refletir sobre o que está lendo. A regra número seis mandava “chorar”. Se não consegues chorar naturalmente, então força-te a chorar, pois o pesar deve estar implícito na apreensão das palavras sagradas. A regra número nove exigia que O Corão fosse lido “alto o suficiente para que o leitor o escutasse, porque ler significa distinguir entre sons”, afastando assim as distrações do mundo externo.
O psicólogo americano Julian Jaynes, em um estudo controvertido sobre a origem da consciência, afirmou que a mente bicameral – na qual um dos hemisférios torna-se especializado na leitura silenciosa – é um desenvolvimento tardio da evolução da humanidade e que o processo pelo qual essa função se desenvolve ainda está mudando.
Ele sugeriu que a leitura possa ter sido inicialmente uma percepção aural, e não visual. “A leitura no terceiro milênio antes de Cristo pode, portanto, ter sido uma questão de ouvir o cuneiforme, isto é, uma alucinação do discurso a partir do movimento do olhar para suas figuras-símbolos, em vez de uma leitura visual de sílabas, no nosso sentido.”
Essa “alucinação aural” pode ter sido verdade também no tempo de Agostinho, quando as palavras na página não apenas se “tornavam” sons quando os olhos as percebiam: elas eram sons. A criança que cantava a canção reveladora no jardim vizinho, tal como Agostinho antes dela, tinha certamente aprendido que ideias, descrições, histórias verdadeiras e inventadas, qualquer coisa que a mente pudesse processar possuía uma realidade física em sons, sendo simplesmente lógico que esses sons, representados na tabuleta, rolo ou página manuscrita, fossem pronunciados pela língua quando reconhecidos pelo olho. Ler era uma forma de pensar e falar. Cícero, consolando os surdos em um de seus ensaios morais, escreveu: “Se gostam de recitações, deveriam primeiro lembrar que, antes da invenção dos poemas, muitos homens sábios viviam felizes; e, em segundo lugar que se pode ter prazer muito maior lendo e não ouvindo esses poemas”. Mas isso é apenas um prêmio de consolação oferecido por um filósofo que pode se regalar com o som da palavra escrita. Para Agostinho, como para Cícero, ler era uma habilidade oral: oratória, no caso de Cícero; pregação, no de Agostinho.
Alberto Manguel, "Uma história da leitura"
Alberto Manguel, "Uma história da leitura"
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