sexta-feira, março 11

Cenas da vida na província

22 de agosto de 1972

No Sunday Times de ontem, uma reportagem de Francistown, em Botswana. Em algum momento da semana passada, no meio da noite, um carro, modelo americano, branco, foi até uma casa numa área residencial. Homens com gorros balaclava saltaram, arrombaram aos chutes a porta de entrada e começaram a atirar. Quando cansaram de atirar, tocaram fogo à casa e foram embora. Das brasas, os vizinhos retiraram sete corpos calcinados: dois homens, três mulheres, duas crianças.

Os assassinos pareciam ser negros, mas um dos vizinhos ouviu que falavam africânder entre eles e estava convencido de que eram brancos pintados de preto. Os mortos eram sul-africanos, refugiados que tinham mudado para a casa poucas semanas antes.


Consultado, o ministro das Relações Exteriores sul-africano, por intermédio de um porta-voz, qualificou a reportagem de “sem comprovação”. Serão realizadas investigações, diz ele, para determinar se os mortos eram de fato cidadãos sul-africanos. Quanto aos militares, uma fonte não identificada nega que a Força de Defesa sul-africana tenha qualquer coisa a ver com o assunto. Os assassinatos são provavelmente uma questão interna do Congresso Nacional Africano, sugere ele, que revela as “tensões existentes” entre facções.

Assim vão se sucedendo, semana após semana, essas histórias de países limítrofes, assassinatos seguidos de débeis negativas. Ele lê as reportagens e sente-se conspurcado. Então foi para isso que voltou? Porém onde no mundo alguém pode se esconder sem se sentir conspurcado? Será que se sentiria mais limpo nas neves da Suécia, lendo a distância sobre seu povo e suas últimas travessuras?

Como escapar da sujeira: não uma questão nova. Uma velha questão corrosiva que não larga, que deixa sua feia ferida supurando. Remorso moral.

“Pelo visto a Força de Defesa está de volta aos velhos hábitos”, ele observa a seu pai. “Em Botswana desta vez.” Mas o pai está desconfiado demais para morder a isca. Quando pega o jornal, toma o cuidado de ir direto para as páginas de esporte e pular a política; a política e os assassinatos.

Seu pai sente apenas desdém pelo continente ao norte. “Bufões” é a palavra que usa para desqualificar os líderes de Estados africanos: tiranos miúdos que mal conseguem soletrar o próprio nome, levados de um banquete a outro em seus Rolls-Royce, usan do uniformes de forças imaginárias enfeitados com medalhas que outorgaram a si mesmos. África: um lugar de massas esfaimadas presididas por bufões homicidas.

“Invadiram uma casa em Francistown e mataram todo mundo”, ele insiste mesmo assim. “Executaram. Inclusive as crianças. Olhe. Leia a reportagem. Está na primeira página.”

O pai dá de ombros. Não consegue encontrar palavras que abarquem sua repulsa por matadores que executam mulheres e crianças indefesas, de um lado, e, de outro, por terroristas que fazem guerra a partir de refúgios fora das fronteiras. Ele resolve o problema mergulhando nos resultados do críquete. Como reação a um dilema moral, a atitude do pai é frágil; mas a resposta dele próprio (ataques de raiva e desespero) será melhor?

Houve tempo em que pensava que os homens que sonharam a versão sul-africana de ordem pública, que deram origem ao vasto sistema de reservas de trabalho, passaportes internos e cidades-satélite, tinham baseado sua visão em uma leitura tragicamente equivocada da história. Tinham interpretado mal a história porque, nascidos em fazendas ou em pequenas cidades no interior, e isolados dentro de uma língua que não era falada em nenhum outro lugar do mundo, eles não sabiam avaliar a escala de forças que desde 1945 vinha arrasando o velho mundo colonial. Mas era errado dizer que tinham interpretado mal a história. Porque eles não faziam nenhuma leitura da história. Ao contrário, viravam as costas para ela, descartando a história como uma massa de enganos concatenados por estrangeiros que sentiam desprezo pelos africânderes e que fechariam os olhos se eles fossem massacrados pelos negros, até a última mulher e criança. Sozinhos e sem amigos na ponta remota de um continente hostil, eles erigiram seu Estado-fortaleza e se retiraram para trás de suas muralhas: ali manteriam a chama da civilização cristã ocidental acesa até finalmente o mundo recuperar a razão.

Era assim que falavam, mais ou menos, os homens que lideravam o Partido Nacional e o Estado de segurança, e durante longo tempo ele achou que falavam com sinceridade. Mas não mais. Essa conversa de salvar a civilização, ele tende a pensar agora, nunca foi nada além de um blefe. Por trás de uma cortina de fumaça de patriotismo, eles estão neste mesmo instante calculando por quanto tempo conseguirão manter a coisa em movimento (as minas, as fábricas) antes de precisar fazer as malas, retalhar qualquer documento comprometedor e voar para Zurique, Mônaco ou San Diego, onde, sob a capa de companhias de holding com nomes como Algro Trading ou Handfast Securities, eles compraram anos atrás mansões e apartamentos como seguro para o dia do juízo (“dies irae, dies illa”).

Segundo esse seu novo, revisado modo de pensar, os homens que mandaram o esquadrão de chacina a Francistown não têm nenhuma visão errônea da história, muito menos uma visão trágica. Na verdade, é muito provável que, por baixo do pano, riam das pessoas tolas a ponto de ter qualquer tipo de visão. Quanto ao destino da civilização cristã na África, eles nunca deram a menor importância a isso. E esses — esses! — são os homens em cujas sórdidas garras ele vive!
J. .M. Coetzee

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