quarta-feira, março 23

A loira com a faca

Alguns escritores precisam se esforçar para atingir o fracasso. Outros, a maioria, já nascem prontos.

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Há sonetos tão astuciosos que só revelam suas intenções e sua identidade um verso antes da chave de ouro.

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Se eu fosse agora, no fim da vida, fazer um resumo do que foi ela, só diria que consumi tempo demais com a literatura. Infelizmente, não o bastante.

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Pegou hoje na biblioteca uma biografia de Shakespeare. Não quer saber de Romeu e Julieta, de sucessos e consagrações. Espera, nas quatrocentas e tantas páginas, encontrar detalhes escabrosos sobre o pacto do Bardo com Deus, ou com o Diabo, ou, mais provavelmente, com os dois.

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Não há por que duvidar. Se com a morte nada se ganha, também nada se perde por esperar.

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No bar, ele viu a Morte de perto. Ela empunhava uma faca, não era loira e chamava-se Zé Roberto.

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Há muito tempo não me dizem nada certas palavras que me diziam tudo. Tantas, até amor, a mais sagrada, são forma, agora, mais que conteúdo.

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Wislawa e a poesia nunca precisaram marcar encontro. Topavam-se, esbarravam-se, caíam e, quando se levantavam, às vezes não sabiam mais quem era uma e quem era a outra.

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Lembra-se da poesia como um homem de oitenta anos se lembra da sua namorada da infância. Ora ela se chama Vera, ora Priscila, ora Lucrécia. Se hoje ela lhe aparecesse com a idade que tinha na época, ele talvez a reconhecesse e abrisse para ela um sorriso que vem murchando há tantas décadas.

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Deus talvez não seja parnasiano, apesar de todos os indícios. Mas aos poetas, sejam de que escola forem, recomenda-se que, quando chegar a hora de prestar-Lhe contas, não se esqueçam de levar uma chave de ouro e as melhores rimas para cisne.

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Jamais conseguirá, embora queira. Ama demais a poesia, mas a recíproca não é verdadeira.

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Felizes são os gatos, apátridas e sem ideologia. Não discursam, ronronam, e de território basta-lhes um sofá.
Raul Drewnick

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