sábado, março 26

Viagem no cargueiro

Deixe-me descrever o que será meu alojamento até que eu possa conseguir uma acomodação mais digna. A baia contém um beliche que parece um cocho, junto ao costado do barco, com duas gavetas construídas embaixo. Em uma extremidade da baia há uma peça de madeira dobrável que pode ser arriada e usada como escrivaninha, e na outra uma bacia de lona, com um balde embaixo. Suponho que haja no navio algum local mais confortável para a prática de nossas funções naturais! Há espaço para um espelho sobre a bacia e duas prateleiras destinadas a livros ao pé do beliche. Uma cadeira de lona é o único móvel neste nobre compartimento. Existe uma abertura razoável na porta, à altura da vista, que filtra alguma luz do dia, e as paredes de cada lado estão dotadas de ganchos. O piso, ou coberta, como devo chamá-lo, tem sulcos profundos o bastante para torcer um tornozelo. Creio que esses sulcos foram provocados pelas rodas de ferro das carretas dos canhões, na época em que o barco ainda era bastante novo e ágil para navegar com seu armamento completo! A baia é novidade, mas o teto — tombadilho superior? — e o costado, por trás de meu beliche, estão velhos, gastos, lascados e muito remendados. Imagine-me obrigado a morar em uma baia, em uma pocilga assim! Entretanto, hei de tolerar a situação com bom humor até que possa ver o capitão. O ato de respirar já diminuiu minha consciência do mau cheiro, e o generoso copo de conhaque que Wheeler trouxe quase me reconciliou com a fedentina.


Mas como é barulhento este mundo de madeira! O vento sudoeste, que nos obriga a ficar ancorados, ribomba e assobia no cordame e troveja sobre as suas — nossas (porque estou resolvido a aproveitar esta longa viagem para dominar inteiramente as coisas do mar) velas ferradas. Rajadas de chuva tamborilam em cada centímetro do barco, como se fossem tambores a dar um toque cavo de retirada. Como se não bastasse, chegam-nos da proa, alcançando até este convés, os balidos de carneiros, os mugidos de gado, gritos de homens e, sim,
gritos agudos de mulheres! Faz também bastante barulho aqui. Minha baia, ou pocilga, é apenas uma entre outra dúzia de semelhantes deste lado da coberta, dando para outras tantas do lado oposto do convés.

Um vestíbulo vazio separa as duas fileiras e é interrompido apenas pelo enorme cilindro ascendente de nosso mastro de mezena. Wheeler garante que a sala de jantar dos passageiros fica no fim desse vestíbulo, tendo de cada lado os cubículos destinados às suas necessidades. Figuras indistintas passam ou permanecem em grupos no vestíbulo. São — somos — os passageiros, devo crer; e o motivo de um antigo vaso de guerra como este ser destarte transformado em cargueiro, navio de passageiros e de transporte de animais de criação só pode
ser explicado pelos apuros em que se encontram nossas senhorias do almirantado, com mais de seiscentos vasos de guerra em serviço.
William Golding, "Ritos de passagem"

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