Eles não escolhem mais hora, uivam de madrugada, uivam sob o sol matador desses dias. Esse concerto canino de vozes, que deixou Cecília Meireles insone e assombrada em sua primeira noite na Aclimação, esse mistério de cantores “meio sobrenaturais”, que ela ouvia sem ver, tentando alcançar a mensagem (pois alguma devia de haver que lhe valesse a noite em claro), é mistério que continua onde ainda existe o anfiteatro dos velhos quintais abertos para o céu, em casinhas com hera grimpando os muros.
Sim, os cães da Aclimação continuam a uivar por aqui, modulando um coro de azuis, os mesmos cães do passado, apenas agora em voz mais encovilada, trabalhada pelo século. Continuam também invisíveis, embora uivando à luz do dia. Começam à hora deles, sem aviso – outro mistério –, e, um puxando o choro, jamais os outros se omitem, cada um dá seu timbre, sua cor, sua alma, para essa vaga que se alteia sobre as casas e que nos leva.
Cecília foi levada por esse canto até eras e lugares remotos, num sonho de poeta próprio da insônia. Agora sonho eu, a bordo desse choro, e vou até os cães mudos de pânico, abrigados nos metrôs de uma Ucrânia bombardeada, depois até o silêncio de morte do velho Azorka, pobre companheiro estendido no chão, aos pés do velho dono, o focinho coberto pelas patas, Azorka intacto em sua solidão, cumprindo sua sina envolto em asco.
E assim, inesperadamente, tal como vem, esse coro de azuis também se vai. Ele se vai e nos traz de volta. As noites, e agora os dias, os recolhem, a esses azuis, e quem sabe alguns de nós também recolham qualquer coisa dessa obscura mensagem. É uma emergência, eles deixam saber enquanto choram. Depois, o silêncio é uma vaga maior e nós afundamos, desassombrados, ficamos surdos de novo, cegos de novo, de novo nos empanturramos de palavras.
Mariana Ianelli
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