Quando as sirenes ressoavam sobre todos os telhados da cidade, era preciso descer à cave com uma vela acesa, até ao fim do sinal de alerta. Nos primeiros tempos, Justine conseguira arrastar o marido, mas este, depois começou a afundar-se na poltrona, agarrando-se aos braços. « Vão, se quiserem, por mim, prefiro morrer ao ar livre a ser enterrado como um rato»
Não se morria debaixo das bombas dos Ingleses e dos Americanos. Mas morria-se aos poucos, sem comer, sem respirar, sem liberdade, sem poder sonhar. O mar resumia-se a um traço azul, ao longe, entre as palmeiras , por cima dos telhados vermelhos. Ethel passava horas a contemplá-lo da janela do quarto dos pais, como se esperasse alguma coisa. O calabre inclinado de uma grua emergia dos telhados dos hangares, imóvel, inútil. Os barcos haviam naufragado à entrada do porto, já nada podia entrar nem sair. O farol já não se acendia à noite. Nas bancas do mercado, não havia nada, quase nada. As mesmas sombras continuavam a circular em redor dos vencedores , mas agora as cascas e as raízes também se vendiam. Nos jardins, os gatos vadios devoravam-se uns aos outros. Os pombos haviam desaparecido, e as armadilhas que Justine dispunha nas goteiras só serviam para apanhar ratos.
Certa manhã, no mês de Maio, ouviu um barulho desconhecido. A terra tremia, os vidros das janelas , os copos em cima das mesas. Sem perder tempo a vestir-se , correu para a janela. Afastou a cortina. Pela estrada, ao longo do rio, avançava uma coluna , faróis acesos. Camiões, viaturas blindadas, motas, seguidas de tanques. Cobertos de poeira, ar de insectos em marcha para um novo território. Avançavam lentamente, apertados uns contra os outros. Passaram em frente da casa, subiam para norte, em direcção às montanhas. Ethel permanecia imóvel, quase sem respirar. Atrás dos camiões, os tanques abalavam a terra com o barulho das lagartas. As torres blindadas dos canhões apontavam para a frente. Pareciam brinquedos inúteis.
O barulho acordou Justine. Aproximou-se da janela em camisa de noite, braços ligeiramente afastados do corpo, pés descalços encolhidos nas lajes frias. Ethel proferiu, num sopro: "Eles vão-se embora." Não estava muito certa de quem seriam «eles», mesmo depois de, atrás dos tanques , terem aparecido os camiões de caixa destapada onde se encontravam os soldados, e o barulho dos motores se ter tornado ainda mais preocupante. Justine puxava pelo braço de Ethel. "Vem!" Sussurrava como se os soldados nos camiões pudessem ouvi-la. Mas Ethel resistia. Queria vê-los todos, até ao último. Homens envergando sobretudos pesados, apertados uns contra outros, na sua maioria sem capacete, ar extenuado de fadiga. Nem um ergueu a cabeça para observar as janelas. Talvez tivessem medo. Aquela imagem de vazio penetrou no espírito de Ethel , expulsou todas as recordações anteriores. Mais tarde , virá a saber que os homens que avistou da janela da cozinha, em Roquebillière, eram os restos do exército de África do marechal Rommel, a caminho do Norte, na esperança de alcançar a Alemanha pelos Alpes. Ficará a saber que o chefe não ia na coluna, já regressara a Berlim de avião, deixando as tropas abandonadas num território hostil. Tentará imaginar que teriam sentido aqueles homens , na plataforma dos camiões, quando se dirigiam para a barreira crescente das montanhas, com a vibração das lagartas dos tanques que os ensurdecia, no maior dos silêncios, sem chefe, sem ordens, para transpor a pé as montanhas de neve do Boréon, perseguidos pelos lobos.
J.M.G. Le Clézio, "A Música da Fome"
J.M.G. Le Clézio, "A Música da Fome"
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