Ainda não morávamos aqui e ele já rondava a casa à noite numa sombra alta de orelhas espetadas desde o telhado da vizinha. Depois, mal desfeita a montanha de caixas da mudança, a vida da biblioteca do salão em seu primeiro alento, ele assomou pela fresta da janela com seus curiosíssimos olhos azuis e nem flagrado no pulo se vexou: saltou logo para dentro, sem fingir humildade, tão indisfarçavelmente leopardo na força de suas patas, macho robusto, embora o miado fino, cara de rei, embora a meiguice dos olhos estrábicos.
Não, não era um invasor como o do famoso poema de Eduardo Alves Costa (sempre confundido com Maiakovski, e não que isso seja propriamente má sina), nem o terrorista da ordem doméstica do Teorema de Pasolini. Era só um gatão da vizinhança sem receio de adentrar uma biblioteca afeita às noites pensantes, por isso mesmo propícia a felinos.
Pois meu amigo saltou aqui para dentro, não dando margem ao improviso, foi contornando determinado minha ilha de trabalho, só um rabo rápido sugerindo presença, meio sombra meio água, dando a volta no salão, já farejando a existência das minhas gatas. Elas, entre pasmas e indignadas, vendo meu visitante manso muito à vontade, começaram a se descobrir elas mesmas, para a própria surpresa, umas anfitriãs adoráveis.
Ravel, eu o chamo, por ter chegado pela primeira vez à luz do primeiro dia do ano, ao som do Bolero de Ravel no salão. Desde então ele vem, às vezes no meio da tarde, fugindo da chuva, e quase sempre à noite, no meio da madrugada. Já não se contenta em ficar só no salão, desenvolto desce a escada até a cozinha, entra na casa, vai até a ração das gatas, descobre uma nova saída pelo janelão da sala.
Faz três meses que o sr. Ravel tem dois nomes e duas casas. Sim, também sei seu outro nome, o que poderia lhe soar como um mistério inesgotável, não tivesse o efeito mágico de simplesmente o tranquilizar. Sei-o porque seu dono esteve na praça aqui em frente, dia desses, e, entre os assuntos de praça, que passam por jacas maduras e infestação de baratas, há os gatos. Foi quando soube que o sr. Ravel, a duas casas daqui, na rua de trás, chama-se Hikari. Terá lá seus hábitos e suas horas de Hikari, de satisfatória duração, de maneira a que não deem por sua falta. Mas, de madrugada, ah!, de madrugada, Hikari atende por Ravel nos domínios da minha biblioteca, afia as garras no sofá com o corpo em arco, depois se senta em frente ao grande dicionário, como que inspirado por uma disposição inédita.
Diga-me, Ravel, quantas casas o senhor tem? Quantos nomes? Ou melhor, não, não me diga. Vá por aí e por onde quiser, apenas vá com cuidado, que talvez o senhor não saiba ou mal perceba, mas, mesmo em sua ausência, desde o bolero de Ravel neste salão, desde as primeiras alegrias desta casa, todas as madrugadas eu o aguardo.
Mariana Ianelli
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