Pego no sono enquanto leio “Três perguntas”, narrativa filosófica que Tolstói escreveu em 1903. Dois anos antes, apesar da conversão religiosa, é excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa por “escrever obras repugnantes para Cristo e a Igreja”. Torna-se um profeta incompreendido – embora, em todo o mundo, seja lido e respeitado. Leva uma vida simples, abdica dos direitos autorais, torna-se vegetariano e luta contra a propriedade privada. Entre a penúria e a bravura, escreve “Três perguntas”, delicada parábola a respeito da inutilidade das perguntas e a favor da potência dos atos.
O ensaio tem cinco páginas, eu já estou nas últimas linhas. O sono vem e sonho: um sonho distante de Tolstói e de sua Rússia. Eu sou um pianista. No palco de um teatro, em um piano negro, interpreto um “Concerto para piano”. Meus solos são comoventes, eu mesmo não acredito que venham de minhas mãos. A música se infiltra em meu sonho; mais que imagens, eu sonho sons. Até que, em uma escala mais longa, noto, ao meu lado, um segundo pianista. Divide comigo o piano, veste uma casaca solene, tem a cabeleira branca. Só agora me dou conta de que é um concerto a quatro mãos. O pianista, meu parceiro, me ignora.
Sua presença, ao contrário, me fulmina. As teclas em que toco começam a soltar, meu banco range, minhas mãos deslizam. Por algum tempo, ainda mantenho o controle. Enquanto pensamentos atrozes me invadem, meu parceiro, sereno e sóbrio, limita-se a tocar. Quando dou por mim, dedilho sobre buracos, armo acordes sobre teclas inexistentes, bordejo o abismo. Uma pergunta toma conta, então, de minha mente: interpreto um “Concerto para piano” ou um “Piano para conserto”? A pergunta – prova irrefutável de que o inconsciente tem a estrutura de uma linguagem – me atordoa. Aos poucos, acordo. Custo a entender que não estou em um teatro, mas em minha cama. Que não sou um pianista, mas apenas eu mesmo. A pergunta ainda me inferniza quando, já no banheiro, em busca de uma imagem mais firme, me observo no espelho.
Só quando volto para o quarto, me dou conta do livro de Tolstói aberto a meu lado. Sento-me na cama e, ainda trêmulo, busco um elo entre “Três perguntas” e meu pesadelo. Sim, foi um pesadelo: acordei ofegante e a pergunta ainda me inferniza. De alguma maneira, cujo sentido me escapa, o relato de Tolstói invadiu minha noite. Preciso entender o que me aconteceu. Venho para o escritório e, bem devagar, releio a parábola de Liev Tolstói.
É a história de um tsar que promete uma grande recompensa a quem lhe responder três perguntas. Como saber a hora certa de cada coisa? Como saber quais são as pessoas mais necessárias? Como não se enganar ao julgar, entre todas as coisas, qual a mais importante? Ninguém lhe dá respostas convincentes. Em busca de respostas mais verdadeiras, o soberano se veste de homem comum e, sozinho, viaja até a morada de um eremita. “O eremita era magro e fraco – enfiava a pá na terra e arrancava pequenos torrões, respirando a custo.” Mal dá conta de si, como poderá saciar sua fome de respostas? Mesmo assim, o soberano lhe faz as três perguntas. O homem ouve em silêncio, depois retoma sua pá e volta a trabalhar na terra.
Comovido com seu esforço, o tsar lhe toma a pá e começa, ele mesmo, a cavar. Surge, logo depois, um desconhecido, que, com as mãos trêmulas, segura o próprio ventre, coberto de sangue. Sem pensar no que faz, movido só pela compaixão, o soberano lhe rasga a roupa e cuida de seu ferimento. Depois lhe dá água fresca e o acomoda em uma cama. No dia seguinte, já melhor, o homem o surpreende com um pedido de perdão. “Não tenho por que o perdoar”, o tsar lhe diz. O desconhecido revela, então, sua identidade: é um inimigo do imperador, que executara seu irmão e lhe tirara todos os bens. Cheio de ódio, jurara vingar-se. “Eu queria matá-lo, mas você salvou minha vida.” Gestos silenciosos, e não palavras, salvaram os dois homens.
Antes de retornar a seu palácio, o tsar ainda tenta, pela última vez, obter do eremita as respostas que busca. “Pela última vez, sábio homem, lhe peço que responda.” O velho parece surpreso. “Mas elas já foram respondidas”, diz. A hora certa foi aquela em que o tsar tomou a pá do velho para ajudá-lo a cavar o chão. A hora certa foi, também, o momento em que decidiu tratar da ferida do desconhecido. “A hora mais importante é agora”, o eremita resume. O homem mais importante é aquele com quem estamos no momento. A coisa mais importante a fazer é a coisa que o momento nos pede – e não pensar sobre isso. O eremita leva o tsar a ver que ele já não precisa de respostas. Ele mesmo as formulara através de seus atos.
Volto, incomodado, a meu sonho. Por que o intrometo aqui? A literatura é uma máquina de interpretar. Máquina sutil, que a cada página, a cada palavra, se move de maneira diferente. Máquina imprevisível, que nunca produz as mesmas respostas. Um “concerto para piano” ou um “piano para o conserto”? Sigo a pista que Liev Tolstói me deixou: há horas em que devemos nos entregar à beleza – a música que toco em meu piano – e preferir o silêncio. Há muitas horas em que as palavras não servem para nada. Mil palavras não valem um pequeno ato.
A literatura nos ajuda a ler a vida – ainda que se trate apenas de um pesadelo. Na vigília, eu admito, ainda me espanto com o Tolstói messiânico, que trocou a literatura pela fé. Prefiro o “primeiro Tolstói”, que escreveu Anna Karenina e Guerra e paz. Contudo, o “segundo Tolstói” existe – e agora tenho seus escritos em minhas mãos. Preciso aprender alguma coisa com ele. Alguma coisa precisamos sempre fazer do que lemos.
José Castello, "Sábados inquietos"
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