quarta-feira, novembro 20
Rua
Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba.
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba.
Torquato Neto
Cidade
Sou um efémero e não demasiado descontente cidadão de uma metrópole tida por moderna porque elude qualquer gosto conhecido tanto nos recheios e no exterior das casas como no plano da cidade. Aqui não detectaríeis os traços de algum monumento de superstição. A moral e a língua estão reduzidas à sua expressão mais simples, finalmente! Estes milhões de pessoas que não têm necessidade de se conhecer conduzem tão igualmente a educação, o ofício e a velhice, que o curso da sua vida deve ser várias vezes menos longo do que o descoberto por uma estatística louca para os povos do continente. Da mesma maneira que, da minha janela, vejo espectros novos rolando através do espesso e eterno fumo de carvão — nossa sombra dos bosques, nossa noite de Verão! —, novas Erínias, diante do meu cottage que é a minha pátria e todo o meu coração uma vez que tudo aqui a tal se assemelha —, a Morte sem lágrimas, nossa ativa filha e criada, um Amor desesperado, e um lindo Crime que pia na lama da rua.
Jean-Arthur Rimbaud, "Obra Completa"
Jean-Arthur Rimbaud, "Obra Completa"
Por que só dez?
Pedem-me que indique os dez melhores romances que até hoje li. A resposta é evidente que é impossível. Porquê dez? Porque não doze, ou vinte ou cinquenta? Há, neste número, dez, um não sei quê de arbitrário. Seja como for , entremos no jogo. Suponhamos , por exemplo, que se trata de limites de espaço, de limites de bagagem...
Por outro lado, quando se ama profundamente um autor, a tentação é grande de escolher os livros todos desse autor e esquecer os outros. Porque não? Porquê escolher o Le Rouge et le Noir de Stendhal e deixar de fora La Chartreuse de Parme e o Lucien Leuwen?
Por que aceitar a convenção (arbitrária e, se calhar, injusta) de que se não deve seleccionar mais do que um livro de cada autor? Por que os Karamazov e não Os possessos , o Crime e Castigo ou O Idiota? Quase percebo a tentação em que se deixou cair um crítico inglês, quando lhe perguntaram quais os seis maiores romances deste século. respondeu, sem hesitar: "Quaisquer seis , desde que sejam todos de Conrad." A mim, quando um dia me perguntaram pelos meus três compositores preferidos, também não hesitei: " Mozart, Mozart e Mozart". Há que ter a coragem das nossas convicções.
Segundo André Gide, foi Jules Lemaître que lançou a moda destes jogos: "Tendo que passar o resto dos seus dias numa ilha deserta, quais os vinte livros que desejaria levar consigo?" Jules Lemaître era menos rigoroso: vinte em vez de dez, e livros, em geral, sem indicação de que devessem ser romances. Romances, limita. Por outro lado, esta escolha reflecte sempre as inclinações pessoais de cada um. Como dizia Somerset Maugham, a quem também perguntaram pelos seus dez, uma pessoa apaixonada por música tenderá a incluir livros que tenham que ver com esse mundo (o Doutor Fausto, de Thomas Mann, por exemplo). Um espanhol ou um francês, segundo Maugham, nunca se lembrariam de incluir o Pride and Prejudice, de Jane Austen que, para um inglês, é provável que se torne obrigatório. Por outro lado, a Princesse de Clèves, de Madame de Lafayette, inevitável para um francês , poderá ser esquecida pelo inglês, pelo espanhol ou pelo alemão. E por ai fora. Quis apenas dar uma ideia, ainda que superficial, das armadilhas que espreitam este tipo de escolhas.
Por outro lado, quando se ama profundamente um autor, a tentação é grande de escolher os livros todos desse autor e esquecer os outros. Porque não? Porquê escolher o Le Rouge et le Noir de Stendhal e deixar de fora La Chartreuse de Parme e o Lucien Leuwen?
Por que aceitar a convenção (arbitrária e, se calhar, injusta) de que se não deve seleccionar mais do que um livro de cada autor? Por que os Karamazov e não Os possessos , o Crime e Castigo ou O Idiota? Quase percebo a tentação em que se deixou cair um crítico inglês, quando lhe perguntaram quais os seis maiores romances deste século. respondeu, sem hesitar: "Quaisquer seis , desde que sejam todos de Conrad." A mim, quando um dia me perguntaram pelos meus três compositores preferidos, também não hesitei: " Mozart, Mozart e Mozart". Há que ter a coragem das nossas convicções.
Brasil perdeu mais de 7 milhões de leitores
Mais da metade da população brasileira não lê livros. É o que aponta a 6ª edição da Retratos da Leitura no Brasil, divulgada nesta terça-feira (19), que avalia o comportamento do leitor desde 2007, com resultados a cada cinco anos. Pela primeira vez desde o início da série histórica, a proporção de não-leitores foi maior do que a de leitores, com reduções todas as classes, faixas etárias e níveis de escolaridades. Foram mais de 7 milhões de leitores perdidos nos últimos cinco anos (e um total de 11,3 milhões desde 2015).
Segundo o levantamento, 53% das pessoas não leram nem parte de um livro, em qualquer mídia (física e digital), e de qualquer gênero, incluindo didáticos, bíblia e religiosos, nos três meses anteriores à pesquisa. O número cai para 27% se for considerado apenas a leitura de livros inteiros.
A média de livros lidos também diminuiu, de 2,6 para 2,4. O número cai para 0,82% por entrevistado se for considerada apenas a leitura de livros inteiros.
A pesquisa foi realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL), com uma amostra de 5,5 mil entrevistados em 208 municípios.
Coordenadora da pesquisa, a socióloga Zoara Failla aponta diversos fatores para a queda geral dos índices de leitura. Um deles seria a pandemia, com a quarentena impactando a alfabetização e o letramento dos mais jovens e na distribuição de livros.
Como consequência, as salas de aula deixaram de ser um lugar de leitura. Quando perguntados sobre os lugares onde costumam ler livros, a grande maioria cita a própria casa (85%). O espaço escolar foi citado por apenas 19%, o menor índice já registrado (e uma queda de 4% em relação a 2019).
Outro fator para a queda seria o aumento do tempo de tela entre a população: 87% do público leitor e e 70% dos não-leitores mencionaram usar a internet no seu tempo livre.
- O número de pessoas que usam o tempo livre para ficar na internet vem aumentando desde 2015 - explica Failla. - As telas estão roubando o tempo do livro. Na pós-pandemia, quem passou a ler mais já era leitor. Já a população que não lia ficou mais afastada do livro e do letramento. Há mais dificuldade de manter uma leitura em alto nível com capacidade crítica.
Segundo a pesquisa, a principal motivação para a leitura continua sendo o gosto pessoal, citado por 24% dos entrevistados. No entanto, o percentual daqueles que afirmam não gostar de ler subiu para 29%, superando os que dizem gostar muito (26%).
O desinteresse pela leitura cresce com a idade. Entre crianças de 5 a 10 anos, 38% dizem ler por prazer, índice que cai drasticamente para 17% entre adultos acima de 40 anos. Para Failla, os dados revelam que o Brasil está perdendo leitores potenciais, já que a queda de interesse e a ampliação no percentual de quem diz não gostar de ler é verificada a partir dos 14 anos.
Em sintonia com esses dados, a pesquisa também mostra que há uma proporção maior de pessoas que já ganharam livros da família (51%) do que entre não leitores (24%). Só que o hábito de presentear livros caiu de 63% em 2019 para 61% em 2024.
- As famílias estão dando menos livros de presente para os filhos e estimulando o entretenimento por telas - observa Failla.
A pesquisa buscou compreender também o papel da internet, das redes sociais e dos influenciadores digitais no hábito da leitura. No geral, apenas 2% dos leitores mencionaram que a indicação de um influenciador digital motivou a escolha de um livro para ler.
segunda-feira, novembro 18
Biblioteca à noite
Quem possui muitos livros e tem o hábito de, à noite, visitá-los, percorrendo as estantes para encontrar determinado título, aprende que os livros são danados para “andar”. É que quem gosta de livro e vai durante a noite atrás de um específico na estante, ao se deparar com outro que atrai sua atenção, coloca este fora da prateleira para no dia seguinte buscá-lo. E começa a fazer isso com tantos que esquece o lugar onde cada um estava. Assim ao encontrar determinado livro fora do seu lugar fica com a impressão de que ele caminhou.
José Sarney
José Sarney
Conto de Natal
Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.
— Que é?
O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
— Porcaria…
Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
— Péra aí…
Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
— Vamos ver aqui…
Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
— Mulher!
Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.
— Péra aí…
Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.
— Não…
Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
— Eh, mulher…
Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.
— Oh, graças a Deus…
Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
— Eu acho que o jeito…
O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
— Natal?
Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava…
Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
— Eh, pai, vem vê…
— Uai! Péra aí…
O menino Jesus Cristo estava morto.
Rubem Braga, “Nós e o Natal”
— Que é?
O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
— Porcaria…
Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
— Péra aí…
Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
— Vamos ver aqui…
Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
— Mulher!
Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.
— Péra aí…
Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.
— Não…
Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
— Eh, mulher…
Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.
— Oh, graças a Deus…
Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
— Eu acho que o jeito…
O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
— Natal?
Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava…
Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
— Eh, pai, vem vê…
— Uai! Péra aí…
O menino Jesus Cristo estava morto.
Rubem Braga, “Nós e o Natal”
Drummond registrou paixão pelo cinema ao longo de 60 anos
Quem se aventurar a escrever a história da crítica de cinema praticada por poetas dificilmente encontrará um ancestral do norte-americano Vachel Lindsay (1879-1931).
Um dos fundadores da poesia cantada moderna, o jazz poet de Illinois também foi o primeiro poeta a escrever sobre filmes e estética cinematográfica de que se tem registro, inclusive sob a forma de livro: seu pioneiro "The Art of the Moving Picture" foi posto à venda em 1915, quando Hollywood era pouco mais que um matagal seco e dispunha de apenas um estúdio de filmagem em funcionamento.
Já pelas bandas de cá, só na década seguinte o modernismo abriria espaço, na revista Klaxon, para que dois poetas da terra, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, dessem vazão em público e letra de fôrma à sua paixão pelo cinema.
Mário de Andrade escreveu sobre filmes, cineastas e tópicos cognatos entre maio de 1922 e janeiro de 1923, por vezes oculto por um pseudônimo. Guilherme de Almeida foi mais longe, assinando críticas de filmes periodicamente no jornal O Estado de S. Paulo, entre 1926 e 1942, e editando um livro, "Gente de Cinema", em 1929.
Tempos depois, Vinicius de Moraes, o concretista José Lino Grünewald e Van Jafa, este mais comprometido com a crítica teatral diária, ampliaram a linhagem em variados veículos da imprensa carioca; noves fora Caetano Veloso, que, antes de virar compositor, foi crítico de cinema na Bahia.
Antes deles, porém, outro poeta, justo o maior de todos, Carlos Drummond de Andrade, já se dedicava, intensamente, a refletir e escrever sobre cinema e os sortilégios de seus ídolos. O poeta de Itabira foi um ativo cronista cinematográfico em publicações de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, ao longo de praticamente seis décadas.
Tinha apenas 17 anos ao lograr uma oportunidade no modesto diário Jornal de Minas. Emplacou, em 15 de abril de 1920, um comentário sobre "a moral e o cinema", motivado pela histérica perseguição que a Liga Pela Moralidade mineira moveu contra o filme norte-americano "Diana, a Caçadora", após sua estreia no cinema Pathé, de Belo Horizonte.
Também colaborou no Diário de Minas, quando os filmes ainda eram mudos e Carlitos era chamado de Carlito, fixando-se em seguida no Minas Gerais, órgão oficial do governo do Estado, no qual publicou mais de uma centena de crônicas entre 1929 e 1934, oculto a princípio sob os pseudônimos de Antônio Crispim, Barba Azul e Mickey (como o camundongo recém-inventado por Walt Disney).
Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, novos horizontes se lhe abriram na imprensa carioca e paulista. O prestigioso matutino carioca Correio da Manhã abrigou seus escritos entre 1954 e 1969. Em seu derradeiro mirante, no Jornal do Brasil (1969-1984), Drummond completaria 30 anos de atividade ininterrupta, à base de três crônicas por semana, quase sempre em prosa, com ocasionais observações e devaneios em versos.
Até haicais ele cometeu ao refletir sobre a "sétima arte" ou a "décima musa", expressões que, aliás, sempre evitou usar, assim como nunca se identificou como "cinéfilo", francesismo, a seu ver, pernóstico e com similar nacional.
Éramos todos "cinemeiros" simplesmente, prosaicos fãs de cinema, "esse complemento audiovisual que consola, estimula, distrai, chateia, irrita e fascina", nas palavras do poeta, fiel devoto da mais poderosa (e politeísta) religião laica do século passado.
A ida ao cinema era a sua missa dominical. Buscava viver outra vida "sem perder as garantias da nossa". Juntar as duas e corrigir uma com os recursos infinitos da outra era sua mais infalível receita existencial.
Idolatrava mais as estrelas do silencioso do que suas sucessoras na mitologia cinematográfica, por ele injustamente reduzidas à categoria de "mitinhos" para espectadores adolescentes.
Às suas favoritas, fez declarações de amor explícitas, ora e vez incitando-as a recusar papéis não condizentes com seu tipo físico ou sua aura, como fez numa crônica de 1971, para o Jornal do Brasil, tão logo soube que o italiano Luchino Visconti tentava convencer Greta Garbo a voltar às telas, por ela abandonadas 30 anos antes, no papel da proustiana rainha de Nápoles numa adaptação cinematográfica de "Em Busca do Tempo Perdido". "Nem sequer recuse, responda com seu majestoso silêncio", recomendou o cronista.
Com frequência imaginava suas musas presentes na vida real, a encher de magia e glamour a insipidez provinciana das Alterosas e até mesmo a cosmopolita paisagem carioca. Sublimou Clara Bow embriagando-se com champanhe num baile do Automóvel Clube do Rio, Eleanor Powell dançando "num lugar feito de nuvens cinzentas", e Romy Schneider dando sopa na mesma avenida Atlântica de Copacabana em que vislumbrou um desfile com os artistas da tela mortos naquele ano, devidamente anunciados por um alto-falante.
Talvez só num livro coubesse tudo o que em verso e prosa escreveu a respeito de Greta Garbo, a suprema deusa do seu devocionário. Definiu-a, em ocasiões diversas, como "mulher-fábula", "mulher enigma", "esfinge", "mito lunar", "ninfa-nenúfar". Admirava a renitência com que cultivava sua persona etérea e reclusa ("trancada em si mesma para preservar a intangibilidade do mito"), gostava até de seus "filmes deliquescentes", e chegou a incentivar os colegas de ofício a escrever sobre ela quando estivessem sem assunto.
Para protegê-la de qualquer ameaça, criou a Sociedade dos Templários de Greta Garbo, cuja presidência entregou a Manuel Bandeira, cabendo a Stéphane Mallarmé a "presidência metafísica" da entidade, a despeito de o poeta francês ter morrido sete anos antes de Greta Lovisa Gustafsson nascer.
Sua garbolatria desinibiu-se de vez em 1955, com a invenção de uma misteriosa viagem da atriz sueca à capital mineira, ocorrida 26 anos antes. Mais que misteriosa, delirante.
Segundo Drummond, em outubro de 1929, Garbo veio "dar com sua angulosa e perturbadora figura" em Belo Horizonte. O poeta Abgar Renault soubera da chegada da atriz, disfarçada de naturalista nórdica, por intermédio de um professor de sueco radicado nos Estados Unidos, e não resistiu à tentação de informar Drummond imediatamente.
O cinemeiro de Itabira não apenas ciceroneou a estrela pela cidade e arredores como se esmerou em mantê-la numa redoma, isolada até do círculo mais íntimo de amigos, e ainda a presenteou com um papagaio furtado do Parque da Cidade, que teria aprendido a falar "Hello, Greta!" e imitar a risada da atriz.
"Vimos descer do carro-dormitório, dentro de um capotão cinza que lhe cobria o queixo, e por trás dos primeiros óculos pretos que uma filha de Eva usou naquelas paragens, um vulto feminino estranho e seco, pisando duro em sapatões de salto baixo" —assim Drummond descreveu a chegada de Garbo à Estação Central de Belo Horizonte.
Por trás de seu par de "óculos pretos", ela olhou para ele como a um carregador, e disse: "I want to be alone." Revelou-se, contudo, cordialíssima, acrescentou o cronista.
Drummond admitiu que toda aquela história não passava de uma tremenda lorota na crônica "Sonho Modesto", mas o fez levando a brincadeira adiante. Segundo ele, a confissão tornou-se obrigatória apenas depois que o jornalista Pompeu de Sousa tentou persuadi-lo a relembrar o episódio numa entrevista ao Diário Carioca, suplementada por fotos, fac-símiles de bilhetes da atriz e outros souvenirs igualmente inexistentes.
Em defesa de sua musa suprema, Drummond terçou armas com Vinicius de Moraes, fã de Marlene Dietrich, por causa de um artigo de Vinicius no Diário Carioca, que, na opinião de Drummond, menoscabava o mito de Garbo, ousando comparar "uma mulher (a sra. Marlene Dietrich) com uma pura e transcendente abstração (Greta Garbo)".
Considerava a atriz de "O Anjo Azul" (1930) um mito puramente exterior, um fenômeno de fotogenia forjado em jogos de luz por um Pigmaleão vienense, chamado Josef von Sternberg.
Além de templário de Garbo, Drummond autodeclarou-se segundo tesoureiro perpétuo da Sociedade dos Amigos de Joan Crawford, xodó de outro poeta mineiro, Emílio Moura, que cuidava do livro de atas da agremiação.
É bem provável que Crawford, reconhecida por Drummond como "a única figura ou instituição que passou pela Segunda Guerra Mundial sem perda substancial de prestígio", tenha sido a segunda divindade do seu Olimpo.
Deixou-se enfeitiçar por sua "inteligência sensual", sobretudo por seus olhos grandes, meio esbugalhados, pelas sobrancelhas espessas, pela boca longa e úmida, pelo rosto quadrado, que, admitia, não era bonito. "Mas tudo que amamos verdadeiramente", ressalvou, "não é bonito, é intenso, e dói".
Comparou-a a uma "orquídea, cravo, trescalante", e, esgotado o jardim, a um verso de Baudelaire, a outro de William Blake e, turbinando a hipérbole, a uma equação einsteiniana.
Com Crawford, sublimou uma conversa, a bordo de um navio, mas não a viu pessoalmente em nenhuma das vezes em que a atriz e empresária (herdeira da Pepsi-Cola) visitou o Brasil. Dela se despediu com um poema in memoriam, em maio de 1977, preito que não pôde prestar à sua amada Garbo, que viveu mais três anos do que ele.
De todo modo, foi com ela na cabeça que Drummond escreveu seu penúltimo poema, em 1987. Àquela altura, nem precisava mais confessar que havia "imaginado, maquinado, vestido e amado" Garbo, mas o fez, para que não pairasse qualquer dúvida a respeito.
Das estrelas que lhe apertaram a mão no plano da fantasia, Catherine Deneuve parece ter sido outra das que mais vivamente o impressionavam. Supostamente apresentados em Paris, teriam mantido uma breve correspondência, tão platônica quanto fictícia, envolvendo pedras semipreciosas colecionadas pela atriz e abundantes na fazenda de soja que Cyro dos Anjos tinha em Montes Claros, no norte de Minas.
Saudosista, nostálgico, eclético em suas preferências, Drummond era visceralmente contrário à dublagem de filmes estrangeiros, prática que, segundo ele, "serve antes de incentivo à cristalização do analfabetismo, pela preguiça mental".
Ao contrário de Vinicius de Moraes, não se meteu na polêmica defesa do cinema mudo frente ao sonoro. Ligou-se mais no confronto entre os filmes em preto e branco e em cores. Nos primeiros, a seu ver, "as coisas feias doem menos, e as bonitas continuam bonitas, com possibilidade de se vestirem com roupagens ainda mais belas, criadas pela nossa fantasia".
Achava o cinema em Technicolor "de um cafajestismo que ofende nosso pudor visual" e não recebeu o CinemaScope e outras telas esticadas com chá e simpatia.
Adentrou a década de 1960 remando contra a maré, a torcer o nariz para os figurões da modernidade cinematográfica. Chegou a pedir uma "vacina cultural contra os gênios cinematográficos, tipo Godard, Pasolini, Antonioni", que, segundo ele, "costumam tirar à gente o gosto de ir ao cinema, devido à genialidade excessiva de suas criações". Nem sequer de Bergman livrou a cara.
Sempre cordial com o cinema brasileiro e atento aos seus eternos problemas de produção e distribuição, qualificou um plano salvacionista elaborado pelo cineasta Alberto Cavalcanti na década de 1950 de "bem-intencionado, mas inábil", pela possibilidade de manter nossa indústria de filmes controlada além da conta pelo governo.
Era uma voz permanentemente solidária contra a censura e um entusiasta do que de melhor o cinema brasileiro produziu nas últimas quatro décadas do século passado.
Defendeu e celebrou Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Ruy Guerra e, com especial desvelo, Joaquim Pedro de Andrade, autor de "O Padre e a Moça", filme de 1966, inspirado num fragmento de seu poema "O Padre, a Moça", que a censura tudo fez para proibir em todo o território nacional, por considerá-lo "imoral e anticlerical". Também daquela vez os dois Andrades venceram a parada.
Um dos fundadores da poesia cantada moderna, o jazz poet de Illinois também foi o primeiro poeta a escrever sobre filmes e estética cinematográfica de que se tem registro, inclusive sob a forma de livro: seu pioneiro "The Art of the Moving Picture" foi posto à venda em 1915, quando Hollywood era pouco mais que um matagal seco e dispunha de apenas um estúdio de filmagem em funcionamento.
Já pelas bandas de cá, só na década seguinte o modernismo abriria espaço, na revista Klaxon, para que dois poetas da terra, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, dessem vazão em público e letra de fôrma à sua paixão pelo cinema.
Mário de Andrade escreveu sobre filmes, cineastas e tópicos cognatos entre maio de 1922 e janeiro de 1923, por vezes oculto por um pseudônimo. Guilherme de Almeida foi mais longe, assinando críticas de filmes periodicamente no jornal O Estado de S. Paulo, entre 1926 e 1942, e editando um livro, "Gente de Cinema", em 1929.
Tempos depois, Vinicius de Moraes, o concretista José Lino Grünewald e Van Jafa, este mais comprometido com a crítica teatral diária, ampliaram a linhagem em variados veículos da imprensa carioca; noves fora Caetano Veloso, que, antes de virar compositor, foi crítico de cinema na Bahia.
Antes deles, porém, outro poeta, justo o maior de todos, Carlos Drummond de Andrade, já se dedicava, intensamente, a refletir e escrever sobre cinema e os sortilégios de seus ídolos. O poeta de Itabira foi um ativo cronista cinematográfico em publicações de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, ao longo de praticamente seis décadas.
Tinha apenas 17 anos ao lograr uma oportunidade no modesto diário Jornal de Minas. Emplacou, em 15 de abril de 1920, um comentário sobre "a moral e o cinema", motivado pela histérica perseguição que a Liga Pela Moralidade mineira moveu contra o filme norte-americano "Diana, a Caçadora", após sua estreia no cinema Pathé, de Belo Horizonte.
Também colaborou no Diário de Minas, quando os filmes ainda eram mudos e Carlitos era chamado de Carlito, fixando-se em seguida no Minas Gerais, órgão oficial do governo do Estado, no qual publicou mais de uma centena de crônicas entre 1929 e 1934, oculto a princípio sob os pseudônimos de Antônio Crispim, Barba Azul e Mickey (como o camundongo recém-inventado por Walt Disney).
Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, novos horizontes se lhe abriram na imprensa carioca e paulista. O prestigioso matutino carioca Correio da Manhã abrigou seus escritos entre 1954 e 1969. Em seu derradeiro mirante, no Jornal do Brasil (1969-1984), Drummond completaria 30 anos de atividade ininterrupta, à base de três crônicas por semana, quase sempre em prosa, com ocasionais observações e devaneios em versos.
Até haicais ele cometeu ao refletir sobre a "sétima arte" ou a "décima musa", expressões que, aliás, sempre evitou usar, assim como nunca se identificou como "cinéfilo", francesismo, a seu ver, pernóstico e com similar nacional.
Éramos todos "cinemeiros" simplesmente, prosaicos fãs de cinema, "esse complemento audiovisual que consola, estimula, distrai, chateia, irrita e fascina", nas palavras do poeta, fiel devoto da mais poderosa (e politeísta) religião laica do século passado.
A ida ao cinema era a sua missa dominical. Buscava viver outra vida "sem perder as garantias da nossa". Juntar as duas e corrigir uma com os recursos infinitos da outra era sua mais infalível receita existencial.
Idolatrava mais as estrelas do silencioso do que suas sucessoras na mitologia cinematográfica, por ele injustamente reduzidas à categoria de "mitinhos" para espectadores adolescentes.
Às suas favoritas, fez declarações de amor explícitas, ora e vez incitando-as a recusar papéis não condizentes com seu tipo físico ou sua aura, como fez numa crônica de 1971, para o Jornal do Brasil, tão logo soube que o italiano Luchino Visconti tentava convencer Greta Garbo a voltar às telas, por ela abandonadas 30 anos antes, no papel da proustiana rainha de Nápoles numa adaptação cinematográfica de "Em Busca do Tempo Perdido". "Nem sequer recuse, responda com seu majestoso silêncio", recomendou o cronista.
Com frequência imaginava suas musas presentes na vida real, a encher de magia e glamour a insipidez provinciana das Alterosas e até mesmo a cosmopolita paisagem carioca. Sublimou Clara Bow embriagando-se com champanhe num baile do Automóvel Clube do Rio, Eleanor Powell dançando "num lugar feito de nuvens cinzentas", e Romy Schneider dando sopa na mesma avenida Atlântica de Copacabana em que vislumbrou um desfile com os artistas da tela mortos naquele ano, devidamente anunciados por um alto-falante.
Talvez só num livro coubesse tudo o que em verso e prosa escreveu a respeito de Greta Garbo, a suprema deusa do seu devocionário. Definiu-a, em ocasiões diversas, como "mulher-fábula", "mulher enigma", "esfinge", "mito lunar", "ninfa-nenúfar". Admirava a renitência com que cultivava sua persona etérea e reclusa ("trancada em si mesma para preservar a intangibilidade do mito"), gostava até de seus "filmes deliquescentes", e chegou a incentivar os colegas de ofício a escrever sobre ela quando estivessem sem assunto.
Para protegê-la de qualquer ameaça, criou a Sociedade dos Templários de Greta Garbo, cuja presidência entregou a Manuel Bandeira, cabendo a Stéphane Mallarmé a "presidência metafísica" da entidade, a despeito de o poeta francês ter morrido sete anos antes de Greta Lovisa Gustafsson nascer.
Sua garbolatria desinibiu-se de vez em 1955, com a invenção de uma misteriosa viagem da atriz sueca à capital mineira, ocorrida 26 anos antes. Mais que misteriosa, delirante.
Segundo Drummond, em outubro de 1929, Garbo veio "dar com sua angulosa e perturbadora figura" em Belo Horizonte. O poeta Abgar Renault soubera da chegada da atriz, disfarçada de naturalista nórdica, por intermédio de um professor de sueco radicado nos Estados Unidos, e não resistiu à tentação de informar Drummond imediatamente.
O cinemeiro de Itabira não apenas ciceroneou a estrela pela cidade e arredores como se esmerou em mantê-la numa redoma, isolada até do círculo mais íntimo de amigos, e ainda a presenteou com um papagaio furtado do Parque da Cidade, que teria aprendido a falar "Hello, Greta!" e imitar a risada da atriz.
"Vimos descer do carro-dormitório, dentro de um capotão cinza que lhe cobria o queixo, e por trás dos primeiros óculos pretos que uma filha de Eva usou naquelas paragens, um vulto feminino estranho e seco, pisando duro em sapatões de salto baixo" —assim Drummond descreveu a chegada de Garbo à Estação Central de Belo Horizonte.
Por trás de seu par de "óculos pretos", ela olhou para ele como a um carregador, e disse: "I want to be alone." Revelou-se, contudo, cordialíssima, acrescentou o cronista.
Drummond admitiu que toda aquela história não passava de uma tremenda lorota na crônica "Sonho Modesto", mas o fez levando a brincadeira adiante. Segundo ele, a confissão tornou-se obrigatória apenas depois que o jornalista Pompeu de Sousa tentou persuadi-lo a relembrar o episódio numa entrevista ao Diário Carioca, suplementada por fotos, fac-símiles de bilhetes da atriz e outros souvenirs igualmente inexistentes.
Em defesa de sua musa suprema, Drummond terçou armas com Vinicius de Moraes, fã de Marlene Dietrich, por causa de um artigo de Vinicius no Diário Carioca, que, na opinião de Drummond, menoscabava o mito de Garbo, ousando comparar "uma mulher (a sra. Marlene Dietrich) com uma pura e transcendente abstração (Greta Garbo)".
Considerava a atriz de "O Anjo Azul" (1930) um mito puramente exterior, um fenômeno de fotogenia forjado em jogos de luz por um Pigmaleão vienense, chamado Josef von Sternberg.
Além de templário de Garbo, Drummond autodeclarou-se segundo tesoureiro perpétuo da Sociedade dos Amigos de Joan Crawford, xodó de outro poeta mineiro, Emílio Moura, que cuidava do livro de atas da agremiação.
É bem provável que Crawford, reconhecida por Drummond como "a única figura ou instituição que passou pela Segunda Guerra Mundial sem perda substancial de prestígio", tenha sido a segunda divindade do seu Olimpo.
Deixou-se enfeitiçar por sua "inteligência sensual", sobretudo por seus olhos grandes, meio esbugalhados, pelas sobrancelhas espessas, pela boca longa e úmida, pelo rosto quadrado, que, admitia, não era bonito. "Mas tudo que amamos verdadeiramente", ressalvou, "não é bonito, é intenso, e dói".
Comparou-a a uma "orquídea, cravo, trescalante", e, esgotado o jardim, a um verso de Baudelaire, a outro de William Blake e, turbinando a hipérbole, a uma equação einsteiniana.
Com Crawford, sublimou uma conversa, a bordo de um navio, mas não a viu pessoalmente em nenhuma das vezes em que a atriz e empresária (herdeira da Pepsi-Cola) visitou o Brasil. Dela se despediu com um poema in memoriam, em maio de 1977, preito que não pôde prestar à sua amada Garbo, que viveu mais três anos do que ele.
De todo modo, foi com ela na cabeça que Drummond escreveu seu penúltimo poema, em 1987. Àquela altura, nem precisava mais confessar que havia "imaginado, maquinado, vestido e amado" Garbo, mas o fez, para que não pairasse qualquer dúvida a respeito.
Das estrelas que lhe apertaram a mão no plano da fantasia, Catherine Deneuve parece ter sido outra das que mais vivamente o impressionavam. Supostamente apresentados em Paris, teriam mantido uma breve correspondência, tão platônica quanto fictícia, envolvendo pedras semipreciosas colecionadas pela atriz e abundantes na fazenda de soja que Cyro dos Anjos tinha em Montes Claros, no norte de Minas.
Saudosista, nostálgico, eclético em suas preferências, Drummond era visceralmente contrário à dublagem de filmes estrangeiros, prática que, segundo ele, "serve antes de incentivo à cristalização do analfabetismo, pela preguiça mental".
Ao contrário de Vinicius de Moraes, não se meteu na polêmica defesa do cinema mudo frente ao sonoro. Ligou-se mais no confronto entre os filmes em preto e branco e em cores. Nos primeiros, a seu ver, "as coisas feias doem menos, e as bonitas continuam bonitas, com possibilidade de se vestirem com roupagens ainda mais belas, criadas pela nossa fantasia".
Achava o cinema em Technicolor "de um cafajestismo que ofende nosso pudor visual" e não recebeu o CinemaScope e outras telas esticadas com chá e simpatia.
Adentrou a década de 1960 remando contra a maré, a torcer o nariz para os figurões da modernidade cinematográfica. Chegou a pedir uma "vacina cultural contra os gênios cinematográficos, tipo Godard, Pasolini, Antonioni", que, segundo ele, "costumam tirar à gente o gosto de ir ao cinema, devido à genialidade excessiva de suas criações". Nem sequer de Bergman livrou a cara.
Sempre cordial com o cinema brasileiro e atento aos seus eternos problemas de produção e distribuição, qualificou um plano salvacionista elaborado pelo cineasta Alberto Cavalcanti na década de 1950 de "bem-intencionado, mas inábil", pela possibilidade de manter nossa indústria de filmes controlada além da conta pelo governo.
Era uma voz permanentemente solidária contra a censura e um entusiasta do que de melhor o cinema brasileiro produziu nas últimas quatro décadas do século passado.
Defendeu e celebrou Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Ruy Guerra e, com especial desvelo, Joaquim Pedro de Andrade, autor de "O Padre e a Moça", filme de 1966, inspirado num fragmento de seu poema "O Padre, a Moça", que a censura tudo fez para proibir em todo o território nacional, por considerá-lo "imoral e anticlerical". Também daquela vez os dois Andrades venceram a parada.
Sérgio Augusto, prefácio para "O Cinema de Perto", que reúne prosa e verso de Carlos Drummond de Andrade sobre o tema, entre 1920 a 1980
Contemplação da angústia
Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de indignação social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque a poética precisão de dum ato humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.
Agustina Bessa-Luís, "Contemplação carinhosa da angústia"
Algumas coisas invisíveis
Ontem, perdi a carteira com todos os meus cartões e documentos.
Quero pedir-vos desculpas antecipadas por ter de voltar a escrever sobre a morte. Não é por mal. Não é porque queira perturbar-vos. Às vezes, perguntam-me se não tenho outro tema e chego a pensar que não. Perguntam-me se não me canso. Eu canso-me. Antes do verão, uma senhora disse-me: um escritor vê beleza nos lugares mais difíceis. Eu sorri, cobri a sua frase com silêncio e pensei: não é verdade.
Nesta semana que passou, na terça-feira, sentei-me no sofá da casa da minha irmã e estive a ver filmagens antigas. Metade das conversas eram: estás a filmar?, não me filmes, ela está a filmar?, não está a filmar, pois não? Depois, havia minutos longos em que esqueciam a máquina ligada e filmavam o chão: as pedras da rua, os passos mais lentos ou mais rápidos, a respiração. Está a filmar? Isto está a filmar? Havia partes em que estávamos todos juntos, todos mais novos. Entre nós, a falar connosco, a rir connosco, estavam os nossos mortos. A minha sobrinha, que agora se deprime e usa soutiens, era um bebé ao colo de um dos nossos mortos. Eu era um adolescente despenteado e desagradável, com um pulôver de lã. A minha mãe raramente se sentava. Como nós, os nossos mortos perguntavam: ela não está a filmar, pois não? E ouvia-se a voz da minha irmã, atrás da máquina, a dizer: olhe para aqui, diga lá qualquer coisa.
Cada vez que participo num programa de televisão em direto, tenho vontade de me levantar e de, a completo despropósito, dar uma estalada no apresentador. Não tenho nenhuma espécie de aversão para com qualquer apresentador. Pelo contrário. Normalmente, são pessoas que sabem fazer muito mais expressões faciais do que aquelas que mostram. A corrente que me puxa é a curiosidade acerca daquilo que aconteceria depois. Fazem-me perguntas: quando começou a escrever?, porque escreve?, quais são os autores que mais o influenciaram? Eu respondo devagar, e, por detrás de cada palavra, sinto vontade de levantar-me, ter a completa percepção de todos os meus movimentos e dar-lhes uma estalada.
Houve um dia desta semana em que perguntei aos nossos mortos se podia ser insensato. Eles disseram logo que sim.
No domingo, quando já começava a anoitecer, passei por uma criança que estava à espera, sozinha, dentro de um carro. Era um rapaz de seis ou sete anos. Estava sentado, muito direito, no banco de trás, e brincava com os dedos. Temo não ser capaz de explicar a opressão que senti no peito. Num instante, fui levado para um passado de há trinta anos atrás. Lembrei-me de ser aquele exacto menino e de não saber se os meus pais voltavam. Posso ir também? Não, espera aí. Por favor, posso ir também? Não, espera aí. O tempo passa de maneira diferente para as crianças. Cinco minutos é muito tempo, dez minutos é muito tempo, meia hora nunca mais acaba. Eu olhei para esse rapaz de seis ou sete anos, mas creio que ele não me viu. Melhor assim. Eu não iria querer um estranho a olhar para mim enquanto me doía o medo de ficar sozinho para sempre.
Perguntei aos nossos mortos se podia chorar. Eles disseram que sim, podia chorar o quanto quisesse.
Chorei dentro do carro com seis ou sete anos e chorei fora do carro, trinta e quatro anos, atrás de uma árvore, ridiculamente, a fingir que atava um sapato.
Quero pedir-vos desculpa por ter chorado.
Nestes últimos dias, nesta semana, no supermercado e noutros lugares bem iluminados, tem-me acontecido estar a conversar com a minha mãe ou com a minha sobrinha e, de repente, reparo que estou a falar para uma pessoa qualquer que não conheço e que olha para mim muito admirada. A minha mãe ou a minha sobrinha ficaram lá atrás a ver qualquer coisa e eu fico muito envergonhado por estar a demonstrar tanta familiaridade para uma desconhecida que só de modo remoto poderia ser confundida com a minha mãe ou com a minha sobrinha. Uma vez, só reparei nesse engano quando já ia começar a zangar-me por não me responder. Noutra vez, só reparei quando já estava a abanar-lhe o braço para que visse algum objecto que me parecia importante e que, agora, já não me consigo lembrar do que era.
Durante esta semana, várias vezes, também perguntei aos nossos mortos se podia fechar os olhos. Eles disseram que sim, claro que sim. E pediram para não lhes fazer mais perguntas, disseram que a resposta será sempre sim.
José Luís Peixoto, "Abraço"
Quero pedir-vos desculpas antecipadas por ter de voltar a escrever sobre a morte. Não é por mal. Não é porque queira perturbar-vos. Às vezes, perguntam-me se não tenho outro tema e chego a pensar que não. Perguntam-me se não me canso. Eu canso-me. Antes do verão, uma senhora disse-me: um escritor vê beleza nos lugares mais difíceis. Eu sorri, cobri a sua frase com silêncio e pensei: não é verdade.
Nesta semana que passou, na terça-feira, sentei-me no sofá da casa da minha irmã e estive a ver filmagens antigas. Metade das conversas eram: estás a filmar?, não me filmes, ela está a filmar?, não está a filmar, pois não? Depois, havia minutos longos em que esqueciam a máquina ligada e filmavam o chão: as pedras da rua, os passos mais lentos ou mais rápidos, a respiração. Está a filmar? Isto está a filmar? Havia partes em que estávamos todos juntos, todos mais novos. Entre nós, a falar connosco, a rir connosco, estavam os nossos mortos. A minha sobrinha, que agora se deprime e usa soutiens, era um bebé ao colo de um dos nossos mortos. Eu era um adolescente despenteado e desagradável, com um pulôver de lã. A minha mãe raramente se sentava. Como nós, os nossos mortos perguntavam: ela não está a filmar, pois não? E ouvia-se a voz da minha irmã, atrás da máquina, a dizer: olhe para aqui, diga lá qualquer coisa.
Cada vez que participo num programa de televisão em direto, tenho vontade de me levantar e de, a completo despropósito, dar uma estalada no apresentador. Não tenho nenhuma espécie de aversão para com qualquer apresentador. Pelo contrário. Normalmente, são pessoas que sabem fazer muito mais expressões faciais do que aquelas que mostram. A corrente que me puxa é a curiosidade acerca daquilo que aconteceria depois. Fazem-me perguntas: quando começou a escrever?, porque escreve?, quais são os autores que mais o influenciaram? Eu respondo devagar, e, por detrás de cada palavra, sinto vontade de levantar-me, ter a completa percepção de todos os meus movimentos e dar-lhes uma estalada.
Houve um dia desta semana em que perguntei aos nossos mortos se podia ser insensato. Eles disseram logo que sim.
No domingo, quando já começava a anoitecer, passei por uma criança que estava à espera, sozinha, dentro de um carro. Era um rapaz de seis ou sete anos. Estava sentado, muito direito, no banco de trás, e brincava com os dedos. Temo não ser capaz de explicar a opressão que senti no peito. Num instante, fui levado para um passado de há trinta anos atrás. Lembrei-me de ser aquele exacto menino e de não saber se os meus pais voltavam. Posso ir também? Não, espera aí. Por favor, posso ir também? Não, espera aí. O tempo passa de maneira diferente para as crianças. Cinco minutos é muito tempo, dez minutos é muito tempo, meia hora nunca mais acaba. Eu olhei para esse rapaz de seis ou sete anos, mas creio que ele não me viu. Melhor assim. Eu não iria querer um estranho a olhar para mim enquanto me doía o medo de ficar sozinho para sempre.
Perguntei aos nossos mortos se podia chorar. Eles disseram que sim, podia chorar o quanto quisesse.
Chorei dentro do carro com seis ou sete anos e chorei fora do carro, trinta e quatro anos, atrás de uma árvore, ridiculamente, a fingir que atava um sapato.
Quero pedir-vos desculpa por ter chorado.
Nestes últimos dias, nesta semana, no supermercado e noutros lugares bem iluminados, tem-me acontecido estar a conversar com a minha mãe ou com a minha sobrinha e, de repente, reparo que estou a falar para uma pessoa qualquer que não conheço e que olha para mim muito admirada. A minha mãe ou a minha sobrinha ficaram lá atrás a ver qualquer coisa e eu fico muito envergonhado por estar a demonstrar tanta familiaridade para uma desconhecida que só de modo remoto poderia ser confundida com a minha mãe ou com a minha sobrinha. Uma vez, só reparei nesse engano quando já ia começar a zangar-me por não me responder. Noutra vez, só reparei quando já estava a abanar-lhe o braço para que visse algum objecto que me parecia importante e que, agora, já não me consigo lembrar do que era.
Durante esta semana, várias vezes, também perguntei aos nossos mortos se podia fechar os olhos. Eles disseram que sim, claro que sim. E pediram para não lhes fazer mais perguntas, disseram que a resposta será sempre sim.
José Luís Peixoto, "Abraço"
sábado, novembro 16
O presente inexistente
Nunca nos detemos no momento presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence; e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista porque nos aflige; e se nos é agradável, lamentamos vê-lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que não temos garantia alguma de chegar.
Examine cada um os seus pensamentos, e há-de encontrá-los todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.
Blaise Pascal, “Pensamentos”
Examine cada um os seus pensamentos, e há-de encontrá-los todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.
Blaise Pascal, “Pensamentos”
De como Itaguaí ganhou uma casa de orates
As crônicas da Vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção — o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis” — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do beneficio da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma um sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Allah lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude, aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto — e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo — porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí tinha finalmente uma casa de orates.
Machado de Assis, "O alienista"
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção — o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis” — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do beneficio da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma um sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Allah lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude, aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto — e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo — porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí tinha finalmente uma casa de orates.
Machado de Assis, "O alienista"
Amanhecer na biblioteca
São páginas à espera de serem folheadas, histórias à espera de serem descobertas. Cada livro é uma conversa íntima, um diálogo que transcende o tempo e convida a refletir sobre a nossa jornada.
João da Silva
João da Silva
O olho precoce
Ainda menino eu já colava pedaços da Europa e da Ásia em grandes cadernos. Eram fotografias de quadros e estátuas, cidades, lugares, monumentos, homens e mulheres ilustres, meu primeiro contato com um futuro universo de surpresas.
Colava também fotografias de estrelas e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas. Cedo começou minha fascinação pelos dois mundos, o visível e o invisível.
E não escreveu São Paulo que este mundo é um sistema de coisas invisíveis manifestadas visivelmente? Não vivemos inseridos num contexto de imagens e signos?
Confesso que uma boa parte desta minha incipiente diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher, que remontava a tempos recuados da minha infância. Não me contentando em ver mulheres no meu ambiente queria ainda ter ao menos imagens fotográficas de mulheres de outros países e outras épocas.
Tratava-se não somente da fascinação pela mulher nua ou seminua, embora estas frequentassem minha imaginação: era a mulher na variedade dos seus tipos, sua forma, sua indumentária.
Um relevo especial mereciam as fotografias de cantoras, artistas dramáticas, vestidas à grega, à romana, à oriental e à moda do Império. Lamentava também que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde.
Como seria por exemplo Ruth? Raquel? Semíramis? A rainha de Sabá? Cleópatra?
O universo poderá ser reduzido a uma grande metáfora; claro que não me refiro somente à metáfora literária; também à metáfora plástica, musical e científica. Todas as coisas implicam signo, intersigno, alusão, mito, alegoria.
Contrariando Gertrude Stein, uma flor desde o início era para mim uma flor e mais que uma flor; um bicho era um bicho mesmo e ainda mais que um bicho, etc.
Cedo atraiam-me as esfinges, as gárgulas, as medusas, as máscaras, as mas-carilhas, as gigantas, as figuras de proa, as demônias, as participantes das metamorfoses de Siva ou Vishnu, as sacerdotisas; paralelamente às pessoas em carne e osso, via figuras e pessoas míticas.
Deus passou a ser para mim, não o corregedor da moral, o severo guardião da lei, mas o Ser infinitamente variado na sua unidade, capaz de todas as metamorfoses, criador da imaginação, inspirador da fábula, pai e destruidor de milhões de corpos e almas, único ator que não repete diariamente seus papeis.
Assim o universo em breve alargou-se-me. A mitização da vida cotidiana, dos objetos familiares, enriqueceu meu tempo e meu espaço, tirando-me o apetite para os trabalhos triviais; daí minha falta de vocação para um determinado ofício, carreira, profissão. “Quel siècle à mains!" segundo, desdenhosamente, Rimbaud.
O prazer, a sabedoria de ver, chegavam a justificar minha existência. Uma curiosidade inextinguível pelas formas me assaltava e me assalta sempre.
Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida.
Murilo Mendes
Colava também fotografias de estrelas e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas. Cedo começou minha fascinação pelos dois mundos, o visível e o invisível.
E não escreveu São Paulo que este mundo é um sistema de coisas invisíveis manifestadas visivelmente? Não vivemos inseridos num contexto de imagens e signos?
Confesso que uma boa parte desta minha incipiente diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher, que remontava a tempos recuados da minha infância. Não me contentando em ver mulheres no meu ambiente queria ainda ter ao menos imagens fotográficas de mulheres de outros países e outras épocas.
Tratava-se não somente da fascinação pela mulher nua ou seminua, embora estas frequentassem minha imaginação: era a mulher na variedade dos seus tipos, sua forma, sua indumentária.
Um relevo especial mereciam as fotografias de cantoras, artistas dramáticas, vestidas à grega, à romana, à oriental e à moda do Império. Lamentava também que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde.
Como seria por exemplo Ruth? Raquel? Semíramis? A rainha de Sabá? Cleópatra?
O universo poderá ser reduzido a uma grande metáfora; claro que não me refiro somente à metáfora literária; também à metáfora plástica, musical e científica. Todas as coisas implicam signo, intersigno, alusão, mito, alegoria.
Contrariando Gertrude Stein, uma flor desde o início era para mim uma flor e mais que uma flor; um bicho era um bicho mesmo e ainda mais que um bicho, etc.
Cedo atraiam-me as esfinges, as gárgulas, as medusas, as máscaras, as mas-carilhas, as gigantas, as figuras de proa, as demônias, as participantes das metamorfoses de Siva ou Vishnu, as sacerdotisas; paralelamente às pessoas em carne e osso, via figuras e pessoas míticas.
Deus passou a ser para mim, não o corregedor da moral, o severo guardião da lei, mas o Ser infinitamente variado na sua unidade, capaz de todas as metamorfoses, criador da imaginação, inspirador da fábula, pai e destruidor de milhões de corpos e almas, único ator que não repete diariamente seus papeis.
Assim o universo em breve alargou-se-me. A mitização da vida cotidiana, dos objetos familiares, enriqueceu meu tempo e meu espaço, tirando-me o apetite para os trabalhos triviais; daí minha falta de vocação para um determinado ofício, carreira, profissão. “Quel siècle à mains!" segundo, desdenhosamente, Rimbaud.
O prazer, a sabedoria de ver, chegavam a justificar minha existência. Uma curiosidade inextinguível pelas formas me assaltava e me assalta sempre.
Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida.
Murilo Mendes
sexta-feira, novembro 15
A primeira passeata de um filho
O frangote despertou mais cedo que o relógio. Mal lavou o rosto Engoliu o café queimando a língua. Enfiou no bolso uma nota de dez paus, a carteirinha de estudante, e não deu a menor bola para a mochila dos livros e apostilas.
Não estava com cara de quem ia assistir às aulas de química, português e geografia.
O pai ficou na marcação. Esses filhos de hoje... --- ele pensou, lembrando-se do tempo em que também era filho e cabulava a escola para ver os filmes do cinemundi e os jogos de futebol da Várzea do Glicério.
- Que folga é essa? - perguntou sorrindo.
O garoto, da turma de Humanas, deu resposta exata:
- Vou à passeata.
- Homessa! (Mesmo os pais modernos têm interjeições antigas.) Que besteira, menino. É assim que tudo começa. De repente dá uma confusão na praça, um corre-corre, você cai, me quebra a perna, vem um cavalo da polícia, te pisa, te amassa, tua vó vai brigar comigo. Que eu que fui culpado. Você não sabe o estrago que faz um cassetete. Já vi esse filme. É melhor ficar em casa bem quietinho, lendo um livro, jogando um game, a passeata vai passar pela TV. Ou então, se não tiver nada que fazer, coce o saco. Pelo menos, não tem perigo.
Mas o pai (sujeito vivido) não falou nada. Apenas ficou com o coração aflito. Essas coisas bobas de pai. O que tem que acontecer sempre acontece. Como a primeira vez que saltou do bonde andando e se esborrachou na calçada. Como a primeira vez que tragou um cigarrinho, bituca de Aspásia, e ficou com gosto de cabo de guarda-chuva uma semana na garganta. Como o primeiro gole de cachaça, num domingo, num piquenique no Pico do Jaraguá, e soltou o mico, vomitou até as tripas.
Mas aquela era a primeira passeata do menino.
- Mania que o senhor tem de me chamar de menino!
A primeira passeata não é uma coisa à toa. Daqui a cem anos, quando ele crescer, for um velhinho de bengala e próstata safada, se lembrará desse dia antigo jamais esquecido. Contará aos filhos e aos netos. Roncará papo, como fazem todos os velhinhos depois dos 30. Mas agora ele não passa de um garoto franzino, camiseta de algodão, nem se agasalha o porcaria do filho, uns tênis fedidos, e metido a querer traçar seu próprio destino. É muita presunção! Até outro dia, a única vez que desfilou com o povo foi atrás da bateria da torcida do Corinthians.
- Cuidado, filho. A rua tem perigos.
Mas o pai nada falou. Apenas seu coração batia. Não se pode aparar as asas de um menino (eterno menino). Deixa-lo ir, embandeirado, unir sua voz desafinada de roqueiro fracassado às vozes da cidade enfeitiçada, a qual sorri, embevecida, ao ver que ainda existe a mocidade.
No alto da passeata, o sol fulgia.
Lourenço Diaféria. "O imitador de gatos e outras crônicas"
Não estava com cara de quem ia assistir às aulas de química, português e geografia.
O pai ficou na marcação. Esses filhos de hoje... --- ele pensou, lembrando-se do tempo em que também era filho e cabulava a escola para ver os filmes do cinemundi e os jogos de futebol da Várzea do Glicério.
- Que folga é essa? - perguntou sorrindo.
O garoto, da turma de Humanas, deu resposta exata:
- Vou à passeata.
- Homessa! (Mesmo os pais modernos têm interjeições antigas.) Que besteira, menino. É assim que tudo começa. De repente dá uma confusão na praça, um corre-corre, você cai, me quebra a perna, vem um cavalo da polícia, te pisa, te amassa, tua vó vai brigar comigo. Que eu que fui culpado. Você não sabe o estrago que faz um cassetete. Já vi esse filme. É melhor ficar em casa bem quietinho, lendo um livro, jogando um game, a passeata vai passar pela TV. Ou então, se não tiver nada que fazer, coce o saco. Pelo menos, não tem perigo.
Mas o pai (sujeito vivido) não falou nada. Apenas ficou com o coração aflito. Essas coisas bobas de pai. O que tem que acontecer sempre acontece. Como a primeira vez que saltou do bonde andando e se esborrachou na calçada. Como a primeira vez que tragou um cigarrinho, bituca de Aspásia, e ficou com gosto de cabo de guarda-chuva uma semana na garganta. Como o primeiro gole de cachaça, num domingo, num piquenique no Pico do Jaraguá, e soltou o mico, vomitou até as tripas.
Mas aquela era a primeira passeata do menino.
- Mania que o senhor tem de me chamar de menino!
A primeira passeata não é uma coisa à toa. Daqui a cem anos, quando ele crescer, for um velhinho de bengala e próstata safada, se lembrará desse dia antigo jamais esquecido. Contará aos filhos e aos netos. Roncará papo, como fazem todos os velhinhos depois dos 30. Mas agora ele não passa de um garoto franzino, camiseta de algodão, nem se agasalha o porcaria do filho, uns tênis fedidos, e metido a querer traçar seu próprio destino. É muita presunção! Até outro dia, a única vez que desfilou com o povo foi atrás da bateria da torcida do Corinthians.
- Cuidado, filho. A rua tem perigos.
Mas o pai nada falou. Apenas seu coração batia. Não se pode aparar as asas de um menino (eterno menino). Deixa-lo ir, embandeirado, unir sua voz desafinada de roqueiro fracassado às vozes da cidade enfeitiçada, a qual sorri, embevecida, ao ver que ainda existe a mocidade.
No alto da passeata, o sol fulgia.
Lourenço Diaféria. "O imitador de gatos e outras crônicas"
A companhia da literatura é perigosa
A companhia da literatura é perigosa, tanto que eu, por vezes, a pessoas que aprecio não vejo motivos nenhuns para lhes aplaudir que leiam muito e penetrem tanto nos livros, e o que lhes desejo é o Bem, e qualquer um que tenha lido por exemplo Kafka conhece perfeitamente "quanta angústia excessiva para nada" (como dizia Pessoa) há na literatura.
Como diz Magris: "Kafka sabia perfeitamente que a literatura o afastava do território da morte e permitia-lhe compreender a vida, mas deixando-o de fora. Assim como lhe permitia compreender a grandeza do padre judeu, modelo de homem, mas não lhe permitia precisamente sê-lo."
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, deixa-nos fora dela. É duro, mas às vezes é o melhor que nos pode acontecer. A leitura, a escrita, buscam a vida, mas podem perdê-la precisamente porque estão inteiramente concentradas na vida e na sua própria busca.
Talvez seja a melancolia da tarde em que estou a escrever isto, mas a verdade é que estou a falar de um nó inextricável de bem e de mal, de luzes e sombras inerentes à leitura e à literatura. Tudo isto é duro, para quê nos enganarmos. Trata-se de uma dureza que, segundo Gombrowicz, a boa literatura possui como produto de um instinto de agudizar a vida espiritual. Há dias em que recomendaria ler aos meus piores inimigos.
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, fala-nos do que pode ser mas também do que podia ter sido. Às vezes não há nada mais distante da realidade do que a literatura, que nos recorda a todo o momento que a vida é assim e o mundo foi organizado assado, mas poderia ser de outra forma. Não há nada mais subversivo que ela, que se ocupa de devolver-nos à verdadeira vida ao expor o que a vida real e a História sufocam.
Enrique Vila-Matas, "O Mal de Montano"
Como diz Magris: "Kafka sabia perfeitamente que a literatura o afastava do território da morte e permitia-lhe compreender a vida, mas deixando-o de fora. Assim como lhe permitia compreender a grandeza do padre judeu, modelo de homem, mas não lhe permitia precisamente sê-lo."
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, deixa-nos fora dela. É duro, mas às vezes é o melhor que nos pode acontecer. A leitura, a escrita, buscam a vida, mas podem perdê-la precisamente porque estão inteiramente concentradas na vida e na sua própria busca.
Talvez seja a melancolia da tarde em que estou a escrever isto, mas a verdade é que estou a falar de um nó inextricável de bem e de mal, de luzes e sombras inerentes à leitura e à literatura. Tudo isto é duro, para quê nos enganarmos. Trata-se de uma dureza que, segundo Gombrowicz, a boa literatura possui como produto de um instinto de agudizar a vida espiritual. Há dias em que recomendaria ler aos meus piores inimigos.
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, fala-nos do que pode ser mas também do que podia ter sido. Às vezes não há nada mais distante da realidade do que a literatura, que nos recorda a todo o momento que a vida é assim e o mundo foi organizado assado, mas poderia ser de outra forma. Não há nada mais subversivo que ela, que se ocupa de devolver-nos à verdadeira vida ao expor o que a vida real e a História sufocam.
Enrique Vila-Matas, "O Mal de Montano"
Pormenor que nos estilhaça
Vivemos mesquinhamente, quais formigas, ainda que a fábula nos relate que há muito tempo atrás fomos transformados em homens; como os pigmeus lutamos com gruas; e é erro sobre erro, remendo sobre remendo, e a nossa melhor virtude decorre de uma miséria supérflua e evitável. A nossa vida é estilhaçada pelo pormenor.
Um homem honesto dificilmente precisa de contar para além dos seus dez dedos das mãos, acrescentando, em caso extremo, os seus dez dedos dos pés, e o resto que se amontoe. Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo: ocupai-vos de dois ou três afazeres, e não de cem ou mil; contai meia dúzia em vez de um milhão e tomai nota das receitas e despesas na ponta do polegar. A meio do agitado mar da vida civilizada, tantas são as nuvens, as tempestades, as areias movediças, tantos são os mil e um imprevistos a ser levados em conta, que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, um homem tem de ser um grande calculista para lograr êxito.
Simplificar, simplificar, simplificar. Em vez de três refeições por dia, se preciso for, comer apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduzir proporcionalmente as outras coisas. A nossa vida é como uma Confederação Germânica, composta de insignificantes Estados e com as fronteiras sempre a flutuar, de modo que nem uma alemão sabe, em dado momento, dizer quais são.
Henry David Thoreau, "Walden"
Um homem honesto dificilmente precisa de contar para além dos seus dez dedos das mãos, acrescentando, em caso extremo, os seus dez dedos dos pés, e o resto que se amontoe. Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo: ocupai-vos de dois ou três afazeres, e não de cem ou mil; contai meia dúzia em vez de um milhão e tomai nota das receitas e despesas na ponta do polegar. A meio do agitado mar da vida civilizada, tantas são as nuvens, as tempestades, as areias movediças, tantos são os mil e um imprevistos a ser levados em conta, que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, um homem tem de ser um grande calculista para lograr êxito.
Simplificar, simplificar, simplificar. Em vez de três refeições por dia, se preciso for, comer apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduzir proporcionalmente as outras coisas. A nossa vida é como uma Confederação Germânica, composta de insignificantes Estados e com as fronteiras sempre a flutuar, de modo que nem uma alemão sabe, em dado momento, dizer quais são.
Henry David Thoreau, "Walden"
Tratado geral das grandezas do ínfimo
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
quinta-feira, novembro 14
Cidadezinha
Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...
Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!…
Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!
Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar…
Mário Quintana, "Lili inventa o mundo"
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...
Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!…
Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!
Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar…
Mário Quintana, "Lili inventa o mundo"
O impossível tempo atual
Paredes de mim mesmo
Lins de Vasconcelos, pela pureza do clima e silêncio das noites, já foi lugar recomendado para pessoas fracas. Hoje, com ladrões fazendo footing e malandros à solta, só se recomenda às pessoas fortes, bem arrumadas e de pouco amor à vida. E se você já foi ou não foi à Bahia, mas ainda não foi a Lins de Vasconcelos, então vá! Não tem caruru nem mungunzá, mas tem uma rua chamada das Mangueiras, com Rosas e Carlotas pelas calçadas, que é doce como canção. Cruzando-a perpendicularmente, através de um pequenino beco, você chegará à rua paralela que desce suavemente para a Fonte do Maduro (Fonte das Águas de Nazaré), aonde, nos domingos e feriados, chegam namorados com sede de amor e pessoas doentes que vão lavar o fígado.
Advirto que ninguém deverá se surpreender com o número de cegos que encontrar pelos caminhos: lá em cima, na rua das Mangueiras, construíram um asilo para eles. É um casarão todo branco boiando no verde (um asilo de cegos dentro de uma paisagem tão singularmente bela não é um socorro, é um castigo).
As casas da rua das Mangueiras são todas antigas e líricas. Muitas delas trazem na fachada nomes como Vila Amélia, Lar de Zulmira etc. etc. A mais triste e mais melancólica, porém, é uma casa pequena, de dois quartos e duas salas, de portas e janelas verdes e que agora começam a demolir. A metade já está no chão, e o que resta de pé não há de durar muito. São uns poucos homens, modestos operários de mãos calosas, que se encarregam da ingrata tarefa e que jamais entenderão o que lhes pedi: que a demolissem com carinho, tijolo por tijolo, sem ferir de picareta e martelo aquelas paredes amigas.
Não tive coragem de lhes dizer que minha infância, que se guardava ali, vai perder o pouso. Durante a conversa os operários me informaram que vão construir um prédio de quatro andares, com elevador e tudo.
Naquela época, há mais de vinte e cinco anos, era difícil imaginar que os engenheiros da Otis entrassem por aquela porta para instalar o progresso.
Corro depois ao quintal (ah, o quintal!) e procuro a mangueira que, quando saí, deixei jovem e verde. Encontro-a matrona e cheia de frutos. Mas deve ter me reconhecido, porque deixou cair sobre os meus ombros, como pancada de mão amiga, um dos melhores e mais belos rebentos.
E na rua, como antigamente, vem passando um boi que um menino conduz. Lento e pesadão, vai esmagando no barro os últimos sonhos que porventura eu tenha esquecido por lá.
Max Nunes, "Uma pulga na camisola"
As casas da rua das Mangueiras são todas antigas e líricas. Muitas delas trazem na fachada nomes como Vila Amélia, Lar de Zulmira etc. etc. A mais triste e mais melancólica, porém, é uma casa pequena, de dois quartos e duas salas, de portas e janelas verdes e que agora começam a demolir. A metade já está no chão, e o que resta de pé não há de durar muito. São uns poucos homens, modestos operários de mãos calosas, que se encarregam da ingrata tarefa e que jamais entenderão o que lhes pedi: que a demolissem com carinho, tijolo por tijolo, sem ferir de picareta e martelo aquelas paredes amigas.
Não tive coragem de lhes dizer que minha infância, que se guardava ali, vai perder o pouso. Durante a conversa os operários me informaram que vão construir um prédio de quatro andares, com elevador e tudo.
Naquela época, há mais de vinte e cinco anos, era difícil imaginar que os engenheiros da Otis entrassem por aquela porta para instalar o progresso.
Corro depois ao quintal (ah, o quintal!) e procuro a mangueira que, quando saí, deixei jovem e verde. Encontro-a matrona e cheia de frutos. Mas deve ter me reconhecido, porque deixou cair sobre os meus ombros, como pancada de mão amiga, um dos melhores e mais belos rebentos.
E na rua, como antigamente, vem passando um boi que um menino conduz. Lento e pesadão, vai esmagando no barro os últimos sonhos que porventura eu tenha esquecido por lá.
Max Nunes, "Uma pulga na camisola"
Etelvina
Aparentemente tudo principiou com Etelvina, ama de leite dos meninos mais velhos, precursora de Sebastiana. O nome Etelvina pertence a uma eternidadezinha anterior à minha primeira notícia de Deus, do cosmo; Etelvina, placa recebendo nossas mais remotas impressões digitais; excluída do elenco das mulheres diademadas. De suas profundezas trouxe-nos a primeira ideia da cor preta, a noite e adjacências. Fazia escuro, fazia medo no corpo de Etelvina. Seu leite trouxe-nos a primeira ideia da cor branca. Etelvina implicava síntese da cor e ausência da cor. Penso mesmo que Etelvina trouxe-nos o fogo, a mais remota imagem que tenho dele: vejo-a que acende no quadrado da cozinha uma lasca do brinquedo subversivo furtado aos deuses. Etelvina era enigmática, sentada em silêncios duros, abrindo-se somente quando empurrada; mesmo assim foi-nos ajudante da palavra, recordo- -me que mencionava geringonça ou antes giringonça, papão, cocô, mula sem cabeça, brabuleta. Etelvina serviu-nos de primitiva toca e santuário; aqueles peitos aliciantes, beiços vermelhos, olhos de terror, isto é, do nosso terror, faziam de emblemas.
Etelvina foi a primeira a cantar para nós o tristíssimo “Quindum sererê”:
Fui na fonte de meu pai,
Quindum sererê,
Fui lavar meu rosarinho,
Quindum sererê,
Lá o bicho me pegou,
Quindum sererê,
Me pôs dentro dum surrão,
Quindum sererê.
Canta canta meu surrão
Que eu te dou com o meu bordão. (bis)
Esta cantiga entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem começava; era uma vez, e será para todo o sempre.
●
Etelvina foi a primeira a cantar para nós o tristíssimo “Quindum sererê”:
Fui na fonte de meu pai,
Quindum sererê,
Fui lavar meu rosarinho,
Quindum sererê,
Lá o bicho me pegou,
Quindum sererê,
Me pôs dentro dum surrão,
Quindum sererê.
Canta canta meu surrão
Que eu te dou com o meu bordão. (bis)
Esta cantiga entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem começava; era uma vez, e será para todo o sempre.
Murilo Mendes, "A idade do serrote"
terça-feira, novembro 12
Amanhecer doutra Era?
É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave.
Miguel Torga, "Diário (1942)"
Miguel Torga, "Diário (1942)"
A muralha e os livros
Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase infinita muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Che Huang-ti, que também mandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastas operações – as quinhentas a seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição da história, isto é, do passado – procederem da mesma pessoa e serem de certo modo seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me. Indagar as razões dessa emoção é o fito desta nota.
Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das guerras de Aníbal, Che Huang-ti, rei de Tsin, reduziu os Seis Reinos a seu poder e aboliu o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eram defesas; queimou os livros, porque a oposição os invocava para louvar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos príncipes; a única singularidade de Che Huang-ti foi a escala em que ele atuou.
É o que dão a entender alguns sinólogos, mas eu sinto que os fatos referidos são algo mais que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Cercar uma horta ou um jardim é comum; não, cercar um império. Tampouco é rotineiro pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória de seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e, nesses anos, o Imperador Amarelo, e Chuang Tzu, e Confúcio, e Lao-tsé), quando Che Huang-ti ordenou que a história começasse com ele.
Che Huang-ti condenara a mãe ao desterro por libertinagem; em sua dura justiça, os ortodoxos não viram senão impiedade; Che Huang-ti talvez quisesse suprimir os livros canônicos porque estes o acusavam; Che Huang-ti talvez quisesse abolir todo o passado para abolir uma única lembrança: a infâmia de sua mãe. (Não de outra sorte um rei, na Judéia, mandou matar todas as crianças para matar uma.)
Essa conjetura é aceitável, mas nada nos diz da muralha, da segunda face do mito. Che Huang-ti, segundo os historiadores, proibiu qualquer menção à morte, e procurou o elixir da imortalidade, e recluiu-se em um palácio figurativo, que constava de tantos aposentos como dias tem o ano; esses dados sugerem que a muralha no espaço e o incêndio no tempo foram barreiras mágicas destinadas a deter a morte. Todas as coisas querem persistir em seu ser, escreveu Baruch Spinoza; pode ser que o imperador e seus magos acreditassem que a imortalidade é intrínseca e que a corrupção não pode entrar em um orbe fechado. Pode ser que o Imperador tenha tentado recriar o princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o primeiro, e Huang-ti para de certo modo ser Huang-ti, o legendário imperador que inventou a escrita e a bússola. Este, segundo o Livro dos Ritos, deu às coisas seu nome verdadeiro; semelhantemente, Che Huang-ti jactou-se, em inscrições que perduram, de que, sob seu império, todas as coisas receberam o nome que lhes convém. Sonhou em fundar uma dinastia imortal; ordenou que seus herdeiros se chamassem Segundo Imperador, Terceiro Imperador, Quarto Imperador, e assem até o infinito…
Falei de um propósito mágico; também poderíamos supor que erigir a muralha e queimar os livros não foram atos simultâneos. Isso (segundo a ordem que escolhêssemos) dar-nos-ia a imagem de um rei que começou por destruir e mais tarde resignou-se a conservar, ou a de um rei desiludido que destruiu o que antes defendia. Ambas as conjeturas são dramáticas, mas, que eu saiba, carecem de base histórica. Herbert Allen Giles conta que aqueles que ocultaram livros foram marcados a ferro candente e condenados a construir, até o dia de sua morte, a desmedida muralha. Essa notícia favorece ou tolera outra interpretação.
Talvez a muralha fosse uma metáfora, talvez Che Huang-ti tenha condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado, tão néscia e tão inútil. Talvez a muralha fosse um desafio e Che Huang-ti tenha pensado: “Os homens amam o passado, e contra esse amor nada posso nem podem meus carrascos, mas um dia há de viver um homem que sinta como eu, e ele destruirá minha muralha, como eu destruí os livros, e ele apagará minha memória e será minha sombra e meu espelho, e não o saberá”. Talvez Che Huang-ti tenha amuralhado o império porque sabia que este era precário e destruído os livros por entender que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universo inteiro ou a consciência de cada homem. Talvez o incêndio das bibliotecas e a edificação da muralha sejam operações que de modo secreto se anulam.
A muralha tenaz que neste momento, e em todos, projeta seu sistema de sombras sobre terras que não verei é a sombra de um César que ordenou que a mais reverente das nações queimasse seu passado; é verossímil que a ideia nos toque por si mesma, para além das conjeturas que permite. (Sua virtude pode estar na oposição entre construir e destruir, em enorme escala.) Generalizando o caso anterior, poderíamos inferir que todas as formas têm sua virtude em si mesmas e não em um “conteúdo” conjeturai. Isso coincidiria com a tese de Benedetto Croce; já Pater, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram à condição da música, que é apenas forma. A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético.
Jorge Luís Borges, “Outras inquisições”
Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das guerras de Aníbal, Che Huang-ti, rei de Tsin, reduziu os Seis Reinos a seu poder e aboliu o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eram defesas; queimou os livros, porque a oposição os invocava para louvar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos príncipes; a única singularidade de Che Huang-ti foi a escala em que ele atuou.
É o que dão a entender alguns sinólogos, mas eu sinto que os fatos referidos são algo mais que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Cercar uma horta ou um jardim é comum; não, cercar um império. Tampouco é rotineiro pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória de seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e, nesses anos, o Imperador Amarelo, e Chuang Tzu, e Confúcio, e Lao-tsé), quando Che Huang-ti ordenou que a história começasse com ele.
Che Huang-ti condenara a mãe ao desterro por libertinagem; em sua dura justiça, os ortodoxos não viram senão impiedade; Che Huang-ti talvez quisesse suprimir os livros canônicos porque estes o acusavam; Che Huang-ti talvez quisesse abolir todo o passado para abolir uma única lembrança: a infâmia de sua mãe. (Não de outra sorte um rei, na Judéia, mandou matar todas as crianças para matar uma.)
Essa conjetura é aceitável, mas nada nos diz da muralha, da segunda face do mito. Che Huang-ti, segundo os historiadores, proibiu qualquer menção à morte, e procurou o elixir da imortalidade, e recluiu-se em um palácio figurativo, que constava de tantos aposentos como dias tem o ano; esses dados sugerem que a muralha no espaço e o incêndio no tempo foram barreiras mágicas destinadas a deter a morte. Todas as coisas querem persistir em seu ser, escreveu Baruch Spinoza; pode ser que o imperador e seus magos acreditassem que a imortalidade é intrínseca e que a corrupção não pode entrar em um orbe fechado. Pode ser que o Imperador tenha tentado recriar o princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o primeiro, e Huang-ti para de certo modo ser Huang-ti, o legendário imperador que inventou a escrita e a bússola. Este, segundo o Livro dos Ritos, deu às coisas seu nome verdadeiro; semelhantemente, Che Huang-ti jactou-se, em inscrições que perduram, de que, sob seu império, todas as coisas receberam o nome que lhes convém. Sonhou em fundar uma dinastia imortal; ordenou que seus herdeiros se chamassem Segundo Imperador, Terceiro Imperador, Quarto Imperador, e assem até o infinito…
Falei de um propósito mágico; também poderíamos supor que erigir a muralha e queimar os livros não foram atos simultâneos. Isso (segundo a ordem que escolhêssemos) dar-nos-ia a imagem de um rei que começou por destruir e mais tarde resignou-se a conservar, ou a de um rei desiludido que destruiu o que antes defendia. Ambas as conjeturas são dramáticas, mas, que eu saiba, carecem de base histórica. Herbert Allen Giles conta que aqueles que ocultaram livros foram marcados a ferro candente e condenados a construir, até o dia de sua morte, a desmedida muralha. Essa notícia favorece ou tolera outra interpretação.
Talvez a muralha fosse uma metáfora, talvez Che Huang-ti tenha condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado, tão néscia e tão inútil. Talvez a muralha fosse um desafio e Che Huang-ti tenha pensado: “Os homens amam o passado, e contra esse amor nada posso nem podem meus carrascos, mas um dia há de viver um homem que sinta como eu, e ele destruirá minha muralha, como eu destruí os livros, e ele apagará minha memória e será minha sombra e meu espelho, e não o saberá”. Talvez Che Huang-ti tenha amuralhado o império porque sabia que este era precário e destruído os livros por entender que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universo inteiro ou a consciência de cada homem. Talvez o incêndio das bibliotecas e a edificação da muralha sejam operações que de modo secreto se anulam.
A muralha tenaz que neste momento, e em todos, projeta seu sistema de sombras sobre terras que não verei é a sombra de um César que ordenou que a mais reverente das nações queimasse seu passado; é verossímil que a ideia nos toque por si mesma, para além das conjeturas que permite. (Sua virtude pode estar na oposição entre construir e destruir, em enorme escala.) Generalizando o caso anterior, poderíamos inferir que todas as formas têm sua virtude em si mesmas e não em um “conteúdo” conjeturai. Isso coincidiria com a tese de Benedetto Croce; já Pater, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram à condição da música, que é apenas forma. A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético.
Jorge Luís Borges, “Outras inquisições”
Os olhos das crianças
Estes olhos vazios e brilhantes
que na criança se abrem para o mundo.
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.
São terríveis.
Porque a vida é isto.
O amor, o medo, o ódio, a mesma morte.
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.
São terríveis.
Porque a vida é isto.
Jorge de Sena, "Poesia-III"
que na criança se abrem para o mundo.
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.
São terríveis.
Porque a vida é isto.
O amor, o medo, o ódio, a mesma morte.
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.
São terríveis.
Porque a vida é isto.
Jorge de Sena, "Poesia-III"
Meu trem partiu
Ao ver, ali dobrado, um pequeno jornal da província, de repente sinto o enorme cansaço da grande cidade.
O jornalzinho dobrado me traz o cheiro de café com leite e pão com manteiga, ruas estreitas com chão de terra, armarinhos onde comprarei todo o pouco de que preciso, grupo escolar com sineta chamando e para onde se vai a pé mesmo. E bem perto das lojinhas o começo da grande, grande estrada onde é descortesia não cumprimentar estranhos. Até que mais além ainda – campo, capim alto, e, se Deus ajudar, algumas vacas.
Lá está, ao alcance da mão, como um bilhete de trem, a minha volta. Abrirei o jornal e saberei enfim de notícias que importam: se andou chovendo muito, se o armazém recebeu nova remessa de goiabada cascão, que vizinho pediu a mão ao pai de que vizinha, em que dia da semana tem matinê de cinema, se na domingueira há distribuição grátis de chocolate Falchi para senhorinhas e crianças.
Abro o jornal, meu trem partiu. Às primeiras linhas, porém, recuo com o susto de quem fosse tocar em pão e sentisse a dureza do ouro.
É que esse pão duro não posso comer: “A reunião prolongou-se por muito tempo, sempre no meio de uma verdadeira apoteose de cordialidade e distinção.”
Não me afobo ainda, trata-se na certa de um equívoco, pois caí no pior de uma cidade, na apoteose do que eu teria de chamar de “urbe”. Não é certamente nessa notícia que encontrarei o “bom dia, dona” que procuro.
Vai ver que é nesta aqui, sobre a agremiação local, e é claro que vou já saber em que dia é o chá dançante. Leio: “Solicitamos a colaboração dos vates que não residem, bem como pedimos retratos aos aedos da terra de Bicudo Leme.”
Bem, mas neste artigo assinado por um médico vou encontrar o bom doutor com sua maleta. O doutor diz no entanto que “no veículo do beijo viajam gostosamente os micróbios”. Não faz mal, errei de consultório e, como na cidade, caí num especialista.
Sim, mas pelo menos nessa coluna de reclamações ficarei sabendo das agruras ocultas, do que o político prometeu, do que Deus mandou falecer antes do tempo, da chuva que inundou as ruas e alagou os campos. Leio: “Pedimos providências enérgicas para minorar o sofrimento dos que, além de serem os baluartes da procriação, ainda o são da grandeza da Pátria!” E, herméticos, não me contam qual é o sofrimento, não me explicam sequer se baluartes da procriação são as mães e os pais ou os criadores de gado.
Vejo o retrato de um figurão que visitou o Rio, uma das pessoas “que elaboram planos para vir a inspirar o aroma sedutor que propaga por todo o mundo a Cidade Maravilhosa”. Para ele, então, quem está no lugar certo sou eu? O bondinho do Pão de Açúcar, “esse veículo aéreo áptero de locomoção suspensa”. Dessa até gostei, só que era inútil a redundância de “aéreo”, qualquer um “sente” que “áptero” só poderia ser coisa que voa, mesmo que o dicionário defina como “sem asas”.O Cristo do Corcovado é o “mausoléu brasileiro”, na Quinta da Boa Vista o museu “entorna relíquias”. “Sim, meus leitores, se apreciarmos o Rio de Janeiro, em pleno palco, quando iniciado o espetáculo, é apresentado este cenário deslumbrante, onde os espectadores, extasiados pela vaidade natural do homem moderno, deixam-se frustrar pelas maquilagens das coristas, como também, pelas plásticas suscitantes das vedetas, com cuja graça e humorismo dissimulados procuram elas envolver a grande plateia, em busca de atrações e renomes.”
Como se divertiu no Rio, esse aí, e só está contanto metade da história. “Frustrado”, não diria eu; “suscitado”, nem tem dúvida. Tento sorrir, procuro corresponder com uma apoteose de cordialidade.
Mas a verdade triste é que “fui no Tororó beber água e não achei”, como a gente cantava em Recife.
Pior ainda, é que me pergunto: e quando de fato estive em Tororó, havia mesmo água? Recordo-me de um conto de Graham Greene: o homem cansado e vivido de repente lembra-se de que uma vez, quando menino, apaixonara-se por uma menina loura e frágil, e lhe escrevera um bilhete de amor. Como devia ser límpido aquele amor primeiro, de um menino cândido e ardente. A única vez em que ele fora puro na vida! Com nostalgia da pureza perdida, procura o bilhete que nunca tivera a coragem de entregar. Acha-o enfim, com emoção desdobra o papelzinho já amarelado. Era o bilhete de amor, sim. Onde, com horror, ele descobre que escrevera apenas as mais ardentes pornografias.
Minha província primeira existiu jamais? Ou, quem sabe, o que sempre existiu foi a nostalgia da província.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
O jornalzinho dobrado me traz o cheiro de café com leite e pão com manteiga, ruas estreitas com chão de terra, armarinhos onde comprarei todo o pouco de que preciso, grupo escolar com sineta chamando e para onde se vai a pé mesmo. E bem perto das lojinhas o começo da grande, grande estrada onde é descortesia não cumprimentar estranhos. Até que mais além ainda – campo, capim alto, e, se Deus ajudar, algumas vacas.
Lá está, ao alcance da mão, como um bilhete de trem, a minha volta. Abrirei o jornal e saberei enfim de notícias que importam: se andou chovendo muito, se o armazém recebeu nova remessa de goiabada cascão, que vizinho pediu a mão ao pai de que vizinha, em que dia da semana tem matinê de cinema, se na domingueira há distribuição grátis de chocolate Falchi para senhorinhas e crianças.
Abro o jornal, meu trem partiu. Às primeiras linhas, porém, recuo com o susto de quem fosse tocar em pão e sentisse a dureza do ouro.
É que esse pão duro não posso comer: “A reunião prolongou-se por muito tempo, sempre no meio de uma verdadeira apoteose de cordialidade e distinção.”
Não me afobo ainda, trata-se na certa de um equívoco, pois caí no pior de uma cidade, na apoteose do que eu teria de chamar de “urbe”. Não é certamente nessa notícia que encontrarei o “bom dia, dona” que procuro.
Vai ver que é nesta aqui, sobre a agremiação local, e é claro que vou já saber em que dia é o chá dançante. Leio: “Solicitamos a colaboração dos vates que não residem, bem como pedimos retratos aos aedos da terra de Bicudo Leme.”
Bem, mas neste artigo assinado por um médico vou encontrar o bom doutor com sua maleta. O doutor diz no entanto que “no veículo do beijo viajam gostosamente os micróbios”. Não faz mal, errei de consultório e, como na cidade, caí num especialista.
Sim, mas pelo menos nessa coluna de reclamações ficarei sabendo das agruras ocultas, do que o político prometeu, do que Deus mandou falecer antes do tempo, da chuva que inundou as ruas e alagou os campos. Leio: “Pedimos providências enérgicas para minorar o sofrimento dos que, além de serem os baluartes da procriação, ainda o são da grandeza da Pátria!” E, herméticos, não me contam qual é o sofrimento, não me explicam sequer se baluartes da procriação são as mães e os pais ou os criadores de gado.
Vejo o retrato de um figurão que visitou o Rio, uma das pessoas “que elaboram planos para vir a inspirar o aroma sedutor que propaga por todo o mundo a Cidade Maravilhosa”. Para ele, então, quem está no lugar certo sou eu? O bondinho do Pão de Açúcar, “esse veículo aéreo áptero de locomoção suspensa”. Dessa até gostei, só que era inútil a redundância de “aéreo”, qualquer um “sente” que “áptero” só poderia ser coisa que voa, mesmo que o dicionário defina como “sem asas”.O Cristo do Corcovado é o “mausoléu brasileiro”, na Quinta da Boa Vista o museu “entorna relíquias”. “Sim, meus leitores, se apreciarmos o Rio de Janeiro, em pleno palco, quando iniciado o espetáculo, é apresentado este cenário deslumbrante, onde os espectadores, extasiados pela vaidade natural do homem moderno, deixam-se frustrar pelas maquilagens das coristas, como também, pelas plásticas suscitantes das vedetas, com cuja graça e humorismo dissimulados procuram elas envolver a grande plateia, em busca de atrações e renomes.”
Como se divertiu no Rio, esse aí, e só está contanto metade da história. “Frustrado”, não diria eu; “suscitado”, nem tem dúvida. Tento sorrir, procuro corresponder com uma apoteose de cordialidade.
Mas a verdade triste é que “fui no Tororó beber água e não achei”, como a gente cantava em Recife.
Pior ainda, é que me pergunto: e quando de fato estive em Tororó, havia mesmo água? Recordo-me de um conto de Graham Greene: o homem cansado e vivido de repente lembra-se de que uma vez, quando menino, apaixonara-se por uma menina loura e frágil, e lhe escrevera um bilhete de amor. Como devia ser límpido aquele amor primeiro, de um menino cândido e ardente. A única vez em que ele fora puro na vida! Com nostalgia da pureza perdida, procura o bilhete que nunca tivera a coragem de entregar. Acha-o enfim, com emoção desdobra o papelzinho já amarelado. Era o bilhete de amor, sim. Onde, com horror, ele descobre que escrevera apenas as mais ardentes pornografias.
Minha província primeira existiu jamais? Ou, quem sabe, o que sempre existiu foi a nostalgia da província.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
segunda-feira, novembro 11
Paris
XLVIII
Quando o amoroso aeronauta entrou no metrô, já lá estavam os três padres de boina preta, com ar campônio e o cheiro peculiar de incenso e suor. Ocupavam os lugares reservados aos mutilados de guerra, cegos ou inválidos civis, e a idade que os separava podia fazer pensar em avô, filho e neto, embora os seus gestos tivessem a mesma idade – mil e novecentos anos de falsa humildade.
O aeronauta era gordinho, baixinho, vermelhote. E não entrou sozinho. Entrou avec. E a dona era assim como um colchão amarrado, com marcas de frio nos dedos vermelhos e maltratados e de falta de sabão em vários outros pontos do anafado corpo. Mas que importância, digamos, tem o sabão ou a falta de sabão para quem está apaixonado? E o bravo dominador dos ares demonstrava publicamente na terra o seu exaltado estado lírico. Com um looping de cabeça enfiou o nariz no cangote da dama, que se sentara ao lado de um dos reverendos, enquanto seu par ficara debruçado nas costas do banco. Ela deu uma sacudidela como se espantasse mosca, e ele, certamente um herói da guerra, metralhou-lhe o pescoço com uma saraivada de beijos. A gorducha demonstrou, por conhecidíssimos estremecimentos, que a sua adiposidade não a encouraçava contra tais projéteis e que o coração fora atingido por eles. Impulsionado pelo êxito do impacto, o aeronauta voltou furiosamente à carga, acompanhando os beijos de palavras consequentes em tom meloso e audível para os passageiros em geral e muito particularmente para os sacerdotes, que se entreolharam com sabedoria de sacristia, tendo o mais velho, por um sorriso condenatório, mostrado seu desprezo por tais práticas terrenas. E o aviador desceu em pique até o volumoso seio da sua Dulcineia. Desceu e mergulhou a mão enamorada naquelas irresistíveis profundezas. Não sei se foi um riso, um grito, ou as duas coisas juntas o que a dama deu. Mas os padres levantaram-se. Levantaram-se ao mesmo tempo como num passo de ballet, enfiaram-se pela porta que se abrira com um suspiro pneumático – estava-se na Concórdia. Da plataforma, num tríplice olhar, condenavam ou invejavam o aviador. Esse, porém, nem eles se tinham levantado e já estava com a sua dama ocupando o banco todo que se vagara. Novo suspiro pneumático e o veículo arrancou, e antes que o aviador praticasse mais um ato por demais aviatório, fui obrigado a descer pois tinha encontro marcado na outra estação.
Marques Rebelo, “Correio europeu”
O Sudoeste e a casuarina
Entre a fuga do vento Nordeste e o primeiro sopro frio do Sudoeste, há um instante vazio e ansioso: as cigarras calam, se eriçam as águas da lagoa e as casuarinas, que se balançavam indolentes, imobilizam-se na rigidez morta e reta dos ciprestes. Os urubus debandam das palmeiras, os pescadores recolhem as velas, e daqui da varanda vejo os lagartos procurarem medrosos os seus esconderijos. “É o sudoeste”, penso, e logo ele chega carpindo penas e desgraças que não são suas.
“Estou vindo do mar alto, trago histórias”, diz ele com a sua voz agourenta. Ao que responde, enfastiada, a Casuarina:
“Detesto as tuas histórias”.
Assim são as histórias do Sudoeste. Ouvindo-as (e tenho de ouvi-las, como se elas viessem de dentro de mim, como se por dentro eu tivesse mil frinchas por entre as quais o Sudoeste passa e geme) ressuscito os meus mortos e minhas tristezas e a eles incorporo a amargura dos incertos e a angústia sobressaltada dos que têm medo – tão minhas agora. E vejo, destacada na escuridão como uma medusa no mar, a mão lívida do meu pai morto, imobilizada no gesto, talvez amigo, que não chegou a ser feito; e os pequenos dentes do meu irmão Francisco, que morreu sorrindo; e escuto, nos soluços do vento, aquele terrível convulso regougar de Maria que a morte levou num mar de sangue e vômito; e tremo e me apavoro, não por receio de não ter enterrado para sempre meus mortos, mas por medo de tê-los enterrado antes de ter pago tudo o que lhes devia.
Joel Silveira
“Estou vindo do mar alto, trago histórias”, diz ele com a sua voz agourenta. Ao que responde, enfastiada, a Casuarina:
“Detesto as tuas histórias”.
Também eu, porque sei o que significa pra mim o pranto desatado e frio. Logo esta varanda, que o Nordeste amornara para o meu sono, estará tomada por tudo o que o vento ruim traz consigo: a baba do oceano doente, a escuma amarela e pútrida, o calhau sangrento, o grito derradeiro dos náufragos, os olhos esbugalhados das crianças afogadas que não entenderam o último instante, o hálito pesado do marinheiro que morreu bêbado e blasfemo, o lamento do grumete que o mastaréu partido matou e atirou ao mar.
Assim são as histórias do Sudoeste. Ouvindo-as (e tenho de ouvi-las, como se elas viessem de dentro de mim, como se por dentro eu tivesse mil frinchas por entre as quais o Sudoeste passa e geme) ressuscito os meus mortos e minhas tristezas e a eles incorporo a amargura dos incertos e a angústia sobressaltada dos que têm medo – tão minhas agora. E vejo, destacada na escuridão como uma medusa no mar, a mão lívida do meu pai morto, imobilizada no gesto, talvez amigo, que não chegou a ser feito; e os pequenos dentes do meu irmão Francisco, que morreu sorrindo; e escuto, nos soluços do vento, aquele terrível convulso regougar de Maria que a morte levou num mar de sangue e vômito; e tremo e me apavoro, não por receio de não ter enterrado para sempre meus mortos, mas por medo de tê-los enterrado antes de ter pago tudo o que lhes devia.
Joel Silveira
Frases anotadas num bloquinho
Fruto tardio, quem me dera tivesses vindo quando eu ainda podia ver em ti a cor da alegria e apalpar tua polpa macia, quando eu ainda tinha dentes e as tuas sementes podia com minhas mãos à terra lançar. Fruto tardio, quem me dera tivesses vindo quando eu ainda podia olhar-te e ver-te, olhar-te e ver-te apenas, sem a perda lastimar de não poder morder-te, de não poder provar-te, de não poder ter-te. Quem te dera, ah, quem te dera, fruto tardio, não tivesses frutificado e estivesses ainda florindo, pelo sereno roçado e perolado pelo rocio.
Ficar conversando com seus botões não dá camisa a ninguém.
Quando já era o único fruto da árvore e parecia destinado, como os anteriores, a cair, foi descoberto no fim de uma manhã por um passarinho peregrino e voraz que amorosa e intensamente o bicou até que, ao chegar a tarde, ele não fosse senão a lembrança de algo já quase podre que havia estado no galho e que, redimido e levado por um par de asas, rumava agora para algum lugar do horizonte.
Salvo uma exceção em mil, o soneto não passa de uma bem-sucedida união do autor com o leitor para uma perda de tempo compartilhada.
Continuo, há quatro anos, onde me disseram que ela ia passar. Já se tornou um gato velho o gatinho que eu lhe trouxe de presente.
Há livros tão irremediavelmente ruins que nem uma epígrafe de Shakespeare conseguiria salvar.
O homem sabia que aquele instante, como os demais, seria apagado pelo tempo, ou pela morte, mas não pensaria nisso nem sofreria tão agudamente essa perda se a mulher, ao acabar de pôr uma pipoca nos lábios, não se surpreendesse ao ver uma pequena ave furtá-la e fugir, o que o levou a pensar por que, em vez do passarinho, não tinha ele mesmo assumido aquela audácia.
***
Ficar conversando com seus botões não dá camisa a ninguém.
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Quando já era o único fruto da árvore e parecia destinado, como os anteriores, a cair, foi descoberto no fim de uma manhã por um passarinho peregrino e voraz que amorosa e intensamente o bicou até que, ao chegar a tarde, ele não fosse senão a lembrança de algo já quase podre que havia estado no galho e que, redimido e levado por um par de asas, rumava agora para algum lugar do horizonte.
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Salvo uma exceção em mil, o soneto não passa de uma bem-sucedida união do autor com o leitor para uma perda de tempo compartilhada.
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Continuo, há quatro anos, onde me disseram que ela ia passar. Já se tornou um gato velho o gatinho que eu lhe trouxe de presente.
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Há livros tão irremediavelmente ruins que nem uma epígrafe de Shakespeare conseguiria salvar.
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O homem sabia que aquele instante, como os demais, seria apagado pelo tempo, ou pela morte, mas não pensaria nisso nem sofreria tão agudamente essa perda se a mulher, ao acabar de pôr uma pipoca nos lábios, não se surpreendesse ao ver uma pequena ave furtá-la e fugir, o que o levou a pensar por que, em vez do passarinho, não tinha ele mesmo assumido aquela audácia.
A estante de livros é a nova escarradeira
Era uma casa muito engraçada, eu ia pensando enquanto flanava pela CasaCor no Fashion Mall, e não sabia direito por que a musiquinha do Vinicius de Moraes passava pela minha cabeça numa mostra tão bacana. A letra diz que ninguém podia fazer xixi porque penico não tinha ali, e, definitivamente, não era o caso. Estavam expostos bons banheiros, equipados de vasos sanitários de um luxo tal que de modo algum permitiriam a alguém sentir falta de um simples penico – e mesmo assim, apesar do apartamento de cores lindas do Chicô Gouvêa, a musiquinha continuava no Spotify que carrego o tempo todo tocando nas internas.
Era uma casa muito engraçada, percebi depois, porque muito embora também tivesse porta e também tivesse teto, itens que além do penico faltam na música do Vinicius, ela não tinha um item fundamental numa casa que se pretende como tal – as casas dentro das casas do CasaCor não têm estantes de livros.
Muitas delas são decoradas por estantes sem sombra de dúvida elegantes, estantes antenadas com design de última geração, prateleiras onde cabem objetos de fina porcelana, esculturas de assinaturas contemporâneas, livros de arte do Matisse e, claro, vasos com plantas que se derramam samambaias abaixo, dando o toque de natureza hoje tão fundamental e ecologicamente correto.
Estante de livros, no entanto, com aquele espaço tão confort-decoration desenhado para eles, na altura padrão de suas belezas milenares, onde uma Patrícia Highsmith possa ficar aconchegada sem sobras, quase de conchinha com um Damon Runyon, que por sua vez está quentinho com sua lombada perfilada na prateleira das histórias policiais ao lado de um Raymond Chandler – isso não tem não. E em todo o percurso da exposição (em cartaz até dia 24) a musiquinha do Vinicius tocou divertida no fundo do meu inconsciente.
Uma casa sem estantes de livros é como uma Ferrari sem gasolina, um Picasso sem tinta, um Roberto Carlos resfriado, um jornalista que nunca leu os perfis do Gay Talese – só que pior. Ficam faltando poesia nos corredores, romances ardentes encoxados nas paredes, receitas para um almoço de domingo com amigos de cama-e-mesa, ideias para enfrentar o mundo atrás das portas e o perfume de um lustra móveis que faça a imaginação brilhar para fora das nossas janelinhas cotidianas.
Tempos atrás uma estante de livros era algo chique, dava status ao proprietário. O empresário Humberto Saad tinha em seu apartamento no Arpoador uma fake, com livros idem, as lombadas de madeira harmonizadas em pseudo-couro vermelho. Ornava linda nas fotos para a Caras e, como estava protegida por uma mesa, mantinha-se livre da aproximação investigativa dos curiosos.
Humberto Saad tinha muita grana e poucas letras. Homem de um outro tempo, no entanto, achava que leitura era patrimônio bonito, poderia lhe enriquecer o espírito ou, como era um tanto desparagonado fisicamente, poderia até mesmo lhe embelezar a diagramação. Em 2024, os enfeites são outros. Os poderosos nas primeiras páginas dos jornais exibem a marra vitoriosa de quem desprezou essas coisas de cultura e se deu bem investindo na ignorância, a commodity mais moderna. A estante de livros ficou de fora, ultrapassada na decoração como se fosse a nova escarradeira.
Era uma casa muito engraçada, percebi depois, porque muito embora também tivesse porta e também tivesse teto, itens que além do penico faltam na música do Vinicius, ela não tinha um item fundamental numa casa que se pretende como tal – as casas dentro das casas do CasaCor não têm estantes de livros.
Muitas delas são decoradas por estantes sem sombra de dúvida elegantes, estantes antenadas com design de última geração, prateleiras onde cabem objetos de fina porcelana, esculturas de assinaturas contemporâneas, livros de arte do Matisse e, claro, vasos com plantas que se derramam samambaias abaixo, dando o toque de natureza hoje tão fundamental e ecologicamente correto.
Estante de livros, no entanto, com aquele espaço tão confort-decoration desenhado para eles, na altura padrão de suas belezas milenares, onde uma Patrícia Highsmith possa ficar aconchegada sem sobras, quase de conchinha com um Damon Runyon, que por sua vez está quentinho com sua lombada perfilada na prateleira das histórias policiais ao lado de um Raymond Chandler – isso não tem não. E em todo o percurso da exposição (em cartaz até dia 24) a musiquinha do Vinicius tocou divertida no fundo do meu inconsciente.
Uma casa sem estantes de livros é como uma Ferrari sem gasolina, um Picasso sem tinta, um Roberto Carlos resfriado, um jornalista que nunca leu os perfis do Gay Talese – só que pior. Ficam faltando poesia nos corredores, romances ardentes encoxados nas paredes, receitas para um almoço de domingo com amigos de cama-e-mesa, ideias para enfrentar o mundo atrás das portas e o perfume de um lustra móveis que faça a imaginação brilhar para fora das nossas janelinhas cotidianas.
Tempos atrás uma estante de livros era algo chique, dava status ao proprietário. O empresário Humberto Saad tinha em seu apartamento no Arpoador uma fake, com livros idem, as lombadas de madeira harmonizadas em pseudo-couro vermelho. Ornava linda nas fotos para a Caras e, como estava protegida por uma mesa, mantinha-se livre da aproximação investigativa dos curiosos.
Humberto Saad tinha muita grana e poucas letras. Homem de um outro tempo, no entanto, achava que leitura era patrimônio bonito, poderia lhe enriquecer o espírito ou, como era um tanto desparagonado fisicamente, poderia até mesmo lhe embelezar a diagramação. Em 2024, os enfeites são outros. Os poderosos nas primeiras páginas dos jornais exibem a marra vitoriosa de quem desprezou essas coisas de cultura e se deu bem investindo na ignorância, a commodity mais moderna. A estante de livros ficou de fora, ultrapassada na decoração como se fosse a nova escarradeira.
domingo, novembro 10
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