sábado, novembro 16

O olho precoce

Ainda menino eu já colava pedaços da Europa e da Ásia em grandes cadernos. Eram fotografias de quadros e estátuas, cidades, lugares, monumentos, homens e mulheres ilustres, meu primeiro contato com um futuro universo de surpresas.

Colava também fotografias de estrelas e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas. Cedo começou minha fascinação pelos dois mundos, o visível e o invisível.

E não escreveu São Paulo que este mundo é um sistema de coisas invisíveis manifestadas visivelmente? Não vivemos inseridos num contexto de imagens e signos?

Confesso que uma boa parte desta minha incipiente diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher, que remontava a tempos recuados da minha infância. Não me contentando em ver mulheres no meu ambiente queria ainda ter ao menos imagens fotográficas de mulheres de outros países e outras épocas.

Tratava-se não somente da fascinação pela mulher nua ou seminua, embora estas frequentassem minha imaginação: era a mulher na variedade dos seus tipos, sua forma, sua indumentária.

Um relevo especial mereciam as fotografias de cantoras, artistas dramáticas, vestidas à grega, à romana, à oriental e à moda do Império. Lamentava também que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde.

Como seria por exemplo Ruth? Raquel? Semíramis? A rainha de Sabá? Cleópatra?

O universo poderá ser reduzido a uma grande metáfora; claro que não me refiro somente à metáfora literária; também à metáfora plástica, musical e científica. Todas as coisas implicam signo, intersigno, alusão, mito, alegoria.

Contrariando Gertrude Stein, uma flor desde o início era para mim uma flor e mais que uma flor; um bicho era um bicho mesmo e ainda mais que um bicho, etc.

Cedo atraiam-me as esfinges, as gárgulas, as medusas, as máscaras, as mas-carilhas, as gigantas, as figuras de proa, as demônias, as participantes das metamorfoses de Siva ou Vishnu, as sacerdotisas; paralelamente às pessoas em carne e osso, via figuras e pessoas míticas.

Deus passou a ser para mim, não o corregedor da moral, o severo guardião da lei, mas o Ser infinitamente variado na sua unidade, capaz de todas as metamorfoses, criador da imaginação, inspirador da fábula, pai e destruidor de milhões de corpos e almas, único ator que não repete diariamente seus papeis.

Assim o universo em breve alargou-se-me. A mitização da vida cotidiana, dos objetos familiares, enriqueceu meu tempo e meu espaço, tirando-me o apetite para os trabalhos triviais; daí minha falta de vocação para um determinado ofício, carreira, profissão. “Quel siècle à mains!" segundo, desdenhosamente, Rimbaud.

O prazer, a sabedoria de ver, chegavam a justificar minha existência. Uma curiosidade inextinguível pelas formas me assaltava e me assalta sempre.

Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida.
Murilo Mendes

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