sexta-feira, novembro 15

A primeira passeata de um filho

O frangote despertou mais cedo que o relógio. Mal lavou o rosto Engoliu o café queimando a língua. Enfiou no bolso uma nota de dez paus, a carteirinha de estudante, e não deu a menor bola para a mochila dos livros e apostilas.
Não estava com cara de quem ia assistir às aulas de química, português e geografia.

O pai ficou na marcação. Esses filhos de hoje... --- ele pensou, lembrando-se do tempo em que também era filho e cabulava a escola para ver os filmes do cinemundi e os jogos de futebol da Várzea do Glicério.

- Que folga é essa? - perguntou sorrindo.

O garoto, da turma de Humanas, deu resposta exata:

- Vou à passeata.
- Homessa! (Mesmo os pais modernos têm interjeições antigas.) Que besteira, menino. É assim que tudo começa. De repente dá uma confusão na praça, um corre-corre, você cai, me quebra a perna, vem um cavalo da polícia, te pisa, te amassa, tua vó vai brigar comigo. Que eu que fui culpado. Você não sabe o estrago que faz um cassetete. Já vi esse filme. É melhor ficar em casa bem quietinho, lendo um livro, jogando um game, a passeata vai passar pela TV. Ou então, se não tiver nada que fazer, coce o saco. Pelo menos, não tem perigo.

Mas o pai (sujeito vivido) não falou nada. Apenas ficou com o coração aflito. Essas coisas bobas de pai. O que tem que acontecer sempre acontece. Como a primeira vez que saltou do bonde andando e se esborrachou na calçada. Como a primeira vez que tragou um cigarrinho, bituca de Aspásia, e ficou com gosto de cabo de guarda-chuva uma semana na garganta. Como o primeiro gole de cachaça, num domingo, num piquenique no Pico do Jaraguá, e soltou o mico, vomitou até as tripas.

Mas aquela era a primeira passeata do menino.

- Mania que o senhor tem de me chamar de menino!

A primeira passeata não é uma coisa à toa. Daqui a cem anos, quando ele crescer, for um velhinho de bengala e próstata safada, se lembrará desse dia antigo jamais esquecido. Contará aos filhos e aos netos. Roncará papo, como fazem todos os velhinhos depois dos 30. Mas agora ele não passa de um garoto franzino, camiseta de algodão, nem se agasalha o porcaria do filho, uns tênis fedidos, e metido a querer traçar seu próprio destino. É muita presunção! Até outro dia, a única vez que desfilou com o povo foi atrás da bateria da torcida do Corinthians.

- Cuidado, filho. A rua tem perigos.

Mas o pai nada falou. Apenas seu coração batia. Não se pode aparar as asas de um menino (eterno menino). Deixa-lo ir, embandeirado, unir sua voz desafinada de roqueiro fracassado às vozes da cidade enfeitiçada, a qual sorri, embevecida, ao ver que ainda existe a mocidade.

No alto da passeata, o sol fulgia.
Lourenço Diaféria. "O imitador de gatos e outras crônicas"

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