Era uma casa muito engraçada, percebi depois, porque muito embora também tivesse porta e também tivesse teto, itens que além do penico faltam na música do Vinicius, ela não tinha um item fundamental numa casa que se pretende como tal – as casas dentro das casas do CasaCor não têm estantes de livros.
Muitas delas são decoradas por estantes sem sombra de dúvida elegantes, estantes antenadas com design de última geração, prateleiras onde cabem objetos de fina porcelana, esculturas de assinaturas contemporâneas, livros de arte do Matisse e, claro, vasos com plantas que se derramam samambaias abaixo, dando o toque de natureza hoje tão fundamental e ecologicamente correto.
Estante de livros, no entanto, com aquele espaço tão confort-decoration desenhado para eles, na altura padrão de suas belezas milenares, onde uma Patrícia Highsmith possa ficar aconchegada sem sobras, quase de conchinha com um Damon Runyon, que por sua vez está quentinho com sua lombada perfilada na prateleira das histórias policiais ao lado de um Raymond Chandler – isso não tem não. E em todo o percurso da exposição (em cartaz até dia 24) a musiquinha do Vinicius tocou divertida no fundo do meu inconsciente.
Uma casa sem estantes de livros é como uma Ferrari sem gasolina, um Picasso sem tinta, um Roberto Carlos resfriado, um jornalista que nunca leu os perfis do Gay Talese – só que pior. Ficam faltando poesia nos corredores, romances ardentes encoxados nas paredes, receitas para um almoço de domingo com amigos de cama-e-mesa, ideias para enfrentar o mundo atrás das portas e o perfume de um lustra móveis que faça a imaginação brilhar para fora das nossas janelinhas cotidianas.
Tempos atrás uma estante de livros era algo chique, dava status ao proprietário. O empresário Humberto Saad tinha em seu apartamento no Arpoador uma fake, com livros idem, as lombadas de madeira harmonizadas em pseudo-couro vermelho. Ornava linda nas fotos para a Caras e, como estava protegida por uma mesa, mantinha-se livre da aproximação investigativa dos curiosos.
Humberto Saad tinha muita grana e poucas letras. Homem de um outro tempo, no entanto, achava que leitura era patrimônio bonito, poderia lhe enriquecer o espírito ou, como era um tanto desparagonado fisicamente, poderia até mesmo lhe embelezar a diagramação. Em 2024, os enfeites são outros. Os poderosos nas primeiras páginas dos jornais exibem a marra vitoriosa de quem desprezou essas coisas de cultura e se deu bem investindo na ignorância, a commodity mais moderna. A estante de livros ficou de fora, ultrapassada na decoração como se fosse a nova escarradeira.
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