terça-feira, novembro 12

Meu trem partiu

Ao ver, ali dobrado, um pequeno jornal da província, de repente sinto o enorme cansaço da grande cidade.

O jornalzinho dobrado me traz o cheiro de café com leite e pão com manteiga, ruas estreitas com chão de terra, armarinhos onde comprarei todo o pouco de que preciso, grupo escolar com sineta chamando e para onde se vai a pé mesmo. E bem perto das lojinhas o começo da grande, grande estrada onde é descortesia não cumprimentar estranhos. Até que mais além ainda – campo, capim alto, e, se Deus ajudar, algumas vacas.

Lá está, ao alcance da mão, como um bilhete de trem, a minha volta. Abrirei o jornal e saberei enfim de notícias que importam: se andou chovendo muito, se o armazém recebeu nova remessa de goiabada cascão, que vizinho pediu a mão ao pai de que vizinha, em que dia da semana tem matinê de cinema, se na domingueira há distribuição grátis de chocolate Falchi para senhorinhas e crianças.

Abro o jornal, meu trem partiu. Às primeiras linhas, porém, recuo com o susto de quem fosse tocar em pão e sentisse a dureza do ouro.

É que esse pão duro não posso comer: “A reunião prolongou-se por muito tempo, sempre no meio de uma verdadeira apoteose de cordialidade e distinção.”
Não me afobo ainda, trata-se na certa de um equívoco, pois caí no pior de uma cidade, na apoteose do que eu teria de chamar de “urbe”. Não é certamente nessa notícia que encontrarei o “bom dia, dona” que procuro.

Vai ver que é nesta aqui, sobre a agremiação local, e é claro que vou já saber em que dia é o chá dançante. Leio: “Solicitamos a colaboração dos vates que não residem, bem como pedimos retratos aos aedos da terra de Bicudo Leme.”
Bem, mas neste artigo assinado por um médico vou encontrar o bom doutor com sua maleta. O doutor diz no entanto que “no veículo do beijo viajam gostosamente os micróbios”. Não faz mal, errei de consultório e, como na cidade, caí num especialista.

Sim, mas pelo menos nessa coluna de reclamações ficarei sabendo das agruras ocultas, do que o político prometeu, do que Deus mandou falecer antes do tempo, da chuva que inundou as ruas e alagou os campos. Leio: “Pedimos providências enérgicas para minorar o sofrimento dos que, além de serem os baluartes da procriação, ainda o são da grandeza da Pátria!” E, herméticos, não me contam qual é o sofrimento, não me explicam sequer se baluartes da procriação são as mães e os pais ou os criadores de gado.

Vejo o retrato de um figurão que visitou o Rio, uma das pessoas “que elaboram planos para vir a inspirar o aroma sedutor que propaga por todo o mundo a Cidade Maravilhosa”. Para ele, então, quem está no lugar certo sou eu? O bondinho do Pão de Açúcar, “esse veículo aéreo áptero de locomoção suspensa”. Dessa até gostei, só que era inútil a redundância de “aéreo”, qualquer um “sente” que “áptero” só poderia ser coisa que voa, mesmo que o dicionário defina como “sem asas”.O Cristo do Corcovado é o “mausoléu brasileiro”, na Quinta da Boa Vista o museu “entorna relíquias”. “Sim, meus leitores, se apreciarmos o Rio de Janeiro, em pleno palco, quando iniciado o espetáculo, é apresentado este cenário deslumbrante, onde os espectadores, extasiados pela vaidade natural do homem moderno, deixam-se frustrar pelas maquilagens das coristas, como também, pelas plásticas suscitantes das vedetas, com cuja graça e humorismo dissimulados procuram elas envolver a grande plateia, em busca de atrações e renomes.”

Como se divertiu no Rio, esse aí, e só está contanto metade da história. “Frustrado”, não diria eu; “suscitado”, nem tem dúvida. Tento sorrir, procuro corresponder com uma apoteose de cordialidade.

Mas a verdade triste é que “fui no Tororó beber água e não achei”, como a gente cantava em Recife.

Pior ainda, é que me pergunto: e quando de fato estive em Tororó, havia mesmo água? Recordo-me de um conto de Graham Greene: o homem cansado e vivido de repente lembra-se de que uma vez, quando menino, apaixonara-se por uma menina loura e frágil, e lhe escrevera um bilhete de amor. Como devia ser límpido aquele amor primeiro, de um menino cândido e ardente. A única vez em que ele fora puro na vida! Com nostalgia da pureza perdida, procura o bilhete que nunca tivera a coragem de entregar. Acha-o enfim, com emoção desdobra o papelzinho já amarelado. Era o bilhete de amor, sim. Onde, com horror, ele descobre que escrevera apenas as mais ardentes pornografias.

Minha província primeira existiu jamais? Ou, quem sabe, o que sempre existiu foi a nostalgia da província.

Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

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