Bem-vindos ao Berghof, um sanatório de luxo para doenças respiratórias, isolado nos Alpes Suíços, onde pacientes de tuberculose apostam na cura pelo ar fresco das montanhas. Esse é o cenário escolhido pelo autor alemão Thomas Mann (1875-1955) para seu romance A Montanha Mágica (Der Zauberberg).
A história começa no ano de 1907: prestes a iniciar a carreira de engenheiro naval, Hans Castorp, filho de um comerciante de Hamburgo, vai visitar o primo doente no Berghof. Originalmente, só pretendia passar lá três semanas, que no entanto acabam virando sete anos.
O curioso é que o próprio Castorp está saudável, "mas ele é como que sugado pela vida no sanatório", explica o especialista em literatura Kai Sina. "Os pacientes, seus debates filosóficos e seus costumes, as rígidas rotinas de saúde, as refeições luxuosas e a obsessiva medição da febre: ele se torna parte desse mundo."
O sanatório totalmente isolado é um microcosmo que revela a crise de uma sociedade em transformação. A virada para o século 20 é uma época de reviravoltas radicais na Europa: a industrialização modificou a vida fundamentalmente, a ciência coloca cada vez mais em xeque as certezas religiosas, e movimentos nacionalistas e socialistas avançam.
A perda dos valores tradicionais e a desorientação resultam em tensões e agressão, também entre a ilustre roda do Berghof: "Estava no ar", adverte o romance. Hans Wisskirchen, presidente da Sociedade Thomas Mann, analisa esse sentimento: "Sente-se um tremendo mal-estar, um medo do futuro. O pessoal de serviço é insultado, há pancadarias, nascem as ideias mais loucas, as pessoas literalmente perdem as estribeiras."
Se não fosse a linguagem antiquada, daria para pensar que o autor é do século 21. Pois também hoje em dia se percebe por toda parte "a grande irritabilidade, o ponto de ruptura", compara Caren Heuer, diretora da Casa Buddenbrook, a antiga residência dos avós do escritor em Lübeck. "Basta sintonizar um talkshow de domingo à noite qualquer. A gente vê como os participantes se interrompem, não se escutam. O que importa é despejar opiniões."
Também o herói de A Montanha Mágica encontra defensores fanáticos das mais diversas ideologias, que se combatem ferrenhamente. De um lado está o humanista Lodovico Settembrini; de outro, o jesuíta ultrarreacionário Leo Naphta. Em seus diálogos, liberalismo e crença no progresso se chocam com o entusiasmo por um regime totalitário como única forma correta de sociedade.
Ambos competem pelas atenções de Castorp, que se vê dividido entre as visões de mundo conflitantes. No fim, há um duelo a pistola entre os dois rivais, em que Settembrini atira intencionalmente para o alto. Incapaz de suportar a desonra, Naphta se suicida. E a onda de violência se desencadeia.
Ao escrever A Montanha Mágica, o escritor natural do norte da Alemanha tomou como modelo sua própria mutação política. Ele colocara as primeiras linhas no papel em 1913, só concluindo 12 anos mais tarde, interrompido pela Primeira Guerra Mundial. De início, era belicista convicto, explica Sina.
"Thomas Mann se deixou contagiar pela euforia pró-guerra que então ocupava tantos intelectuais, artistas e autores. E em 1918, percebeu que lutara do lado errado." Daí em diante, tornou-se um dos opositores mais determinados do fascismo.
"O que mais me fascina em Mann é a coragem de autorrevisão, sua disposição honesta e íntegra de colocar repetidamente no banco de testes posicionamentos antes tomados. E A Montanha Mágica ilustra justamente isso."
Instituída em 1918, a República de Weimar foi a primeira tentativa de uma verdadeira democracia parlamentar na Alemanha, encerrada em 1933 com a tomada do poder pelos nazistas.
Tudo isso reverbera no romance de Mann: nesse mesmo ano ele abandonou o país, indo para a Suíça com a família. Expatriado em 1936, de 1938 a 1952 morou nos Estados Unidos. Em seguida retornou à Suíça, e batalhou pela tolerância e a dignidade humana até sua morte, em 1955.
Difícil acreditar que de início o autor só pretendia escrever um conto humorístico, como contraparte à novela Morte em Veneza. Ele escolheu um sanatório como local da trama porque em 1912 sua esposa, Katia, teve que passar três semanas numa clínica do gênero, devido a um diagnóstico de tuberculose.
"Isso é que é louco, que histórias assim tão grandes – sobre as quais a gente ainda fala hoje, e pensa que ele tenha ficado pensando anos a fio 'como é que eu vou fazer isso' – que elas tenham sido acaso", comenta Wisskirchen, da Sociedade Thomas Mann.
O resultado foi um romance do século de mais de mil páginas. Mas A Montanha Mágica trata não só de ideologias, e sim também da morte – afinal, a maioria dos internos só saía do sanatório no caixão (na época não se usavam antibióticos). E, por contraposição, trata também uma fome desenfreada de viver e, é claro, do amor.
Hans Castorp se apaixona pela misteriosa russa Claudia Chauchat, que lhe concede uma única noite de amor. Ela lhe lembra um camarada da escola, com seus "olhos quirguizes". Para o crítico literário Kai Sina, aí Mann alude a suas próprias inclinações homoeróticas.
"A questão de o que é um homem, o que é uma mulher, o que é masculino, o que é feminino e o que, em cada caso, é percebido como eroticamente atraente: aqui, tudo isso está como que flutuando, de certo modo."
Publicamente, o futuro Nobel da Literatura era um digno cidadão heterossexual, com esposa e seis filhos. A única possibilidade de viver seu desejo por outros homens – se havia alguma – era em segredo. E em seus livros.
Talvez Castorp tivesse esperanças de novos favores da bela russa, mas aí a Primeira Guerra Mundial irrompe, e os pacientes debandam do Berghof. O protagonista se alista num regimento de voluntários, seu rastro se perde no campo de batalha. Ao fim de A Montanha Mágica, Mann pergunta: "Será que dessa festa mundial da morte [...] um dia o amor emergirá?"
Publicada pela primeira vez em alemão em novembro de 1924 e traduzida em 27 idiomas, a obra se tornou um clássico literário mundial, que nada perdeu de sua força e pertinência. Isabel García Adánez, que a adaptou para o espanhol, resume: "Um século se passou, e nós continuamos sendo os mesmos, e resolvemos conflitos através de guerras."
Para quem tenha dúvida sobre a atualidade do texto, a tradutora acrescenta: "Trata-se de coisas muito sérias, mas o livro, em si, é uma experiência prazerosa. E não é preciso três títulos de doutor para ter acesso a Thomas Mann: ele é cheio de ironia e humor."
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