Lendo Orpheu 2, de Almada Negreiros |
domingo, agosto 31
Reminiscência
Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí nada demais. Muita gente nasce em
cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se
quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num
lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água
macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das
calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma
quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na
vida da gente. Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as
águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem
perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de
ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um
peixe grande em mar estranhamente grande. A verdade é que, um dia, a pensar e
refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair.
E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma ideia. Fixa. Caminhar era fácil.
A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — pra lá e pra cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada.
Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz. Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci.
Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande.
E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, pra se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? sem quintal? pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas.
Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei.
E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m... Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: Quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa (?) — sem usar uma vez sequer a letra O? Leiam mais uma vez. Atentamente. Se tiver um — além deste aí em cima — eu como!
Ziraldo Alves Pinto
O bom leitor
sábado, agosto 30
Tanque da leitura
O ativista e artista Raul Lemesoff criou o “Arma de Instrução Massiva”, uma biblioteca móvel pacífica. A obra de arte/veículo tem uma função muito séria: com cerca
de 900 livros sobre “prateleiras” no tanque, Lemesoff fornece materiais de
leitura gratuitos para qualquer um que queira conforme passeia por centros urbanos
e comunidades rurais da Argentina. O artista vê seu trabalho como uma missão
que “contribui para a paz através da literatura”.
A biblioteca é construída ao longo de um Ford Falcon 1979,
um veículo que era popular com as forças armadas da ditadura militar na época.
O que já trouxe opressão militar agora traz a literatura de todos os gêneros em
uma coleção constantemente reabastecida através de doações privadas. Ilustração
tanquedeleitura
Afrontando inimigos
ni energias,ni formas, ni ocasiones
de combatir con medios infalibles
la humedad, la polilla, los ratones,
que son sus enemigos más terribles
Dom Luis C. Viada y Lluch (Del amor al
libro)
sexta-feira, agosto 29
Leitura reduz pena
Parceria entre Funap e UnB permitirá diminuir quatro dias da condenação por obra lida |
A Fundação de Amparo ao
Trabalhador Preso do Distrito Federal (FUNAP) assinou a Lei 5.386, que prevê a
redução de penas por meio da leitura. A iniciativa vai contar com a ajuda da
Universidade de Brasília para avaliar os trabalhos educativos dos detentos, que
terão de formular resenhas ou relatórios das obras lidas. O projeto
Remissão pela Leitura tem previsão para ser iniciado no início do próximo ano.
Cada apenado poderá apresentar um relatório ou resenha por mês, dentro de
normas que serão estabelecidas por uma comissão avaliadora, o que reduzirá a
pena em quatro dias.
Atualmente, o sistema
prisional do Distrito Federal conta com 13,4 mil internos e o Remissão pela
Leitura valerá para todos. O acervo disponível é de 60 mil exemplares
distribuídos em 11 bibliotecas. As temáticas são as mais variadas, como
literatura brasileira, obras didáticas, psicologia e de autoajuda, entre outras.
Uma pesquisa de mestrado
feita na UnB mostra que os detentos do Complexo Penitenciário da Papuda, em
Brasília, leem em média 3 livros por mês, dez vezes a média do brasileiro, de
0,33 livros mensais ou quatro por ano, de acordo com dados da 3ª
edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em 2012.
A pesquisadora Maria Luzineide Costa Ribeiro, responsável pelos estudos da UnB, disse que cerca de 70% dos presos que estão na Penitenciária do Distrito Federal 1, no Complexo da Papuda, tornaram-se leitores assíduos de livros de romance, ação, autoajuda e literatura estrangeira dentro da cadeia.
A pesquisadora Maria Luzineide Costa Ribeiro, responsável pelos estudos da UnB, disse que cerca de 70% dos presos que estão na Penitenciária do Distrito Federal 1, no Complexo da Papuda, tornaram-se leitores assíduos de livros de romance, ação, autoajuda e literatura estrangeira dentro da cadeia.
Assim começa o livro...
Corpo Vivo
Encontrarão o ninho, é o que pensa. Nas
costas, oculta pela mata, ficara a serra. A terra devia ter se contorcido,
fervendo em lama, pedras e levas em atrito, para fazê-la o aleijão medonho.
Erguendo-se da chapada, montanha que sobre em desaprumo, florestas e rochedos
se abraçam nas quedas dos despenhadeiros. Furacão doido e bruto que rodava a
torcera, como se fosse um pano molhado, e malhas são as nuvens que a rodeiam. O
vento, detido pelas encostas do outro lado, não passa. Imagem nos olhos,
enquanto anda, João Caio sabe que ali o homem e a mulher encontrarão o ninho. Tudo, em seus olhos, se aloja. A serra
demora a apagar-se, subsistindo aos pedaços, as florestas como crinas
escuras. Em uma caverna ou em uma choça, agora livre como as feras, Cajango,
poderá dizer à mulher que uma vida ficou embaixo. É possível que tenha
atravessado a chapada abrindo caminho no capinzal. Esperava-o a serra, tromba
de mil voltas na arrancada para o céu. As pálpebras não descem, Bem-Bem
atrás, o bando na frente.
quinta-feira, agosto 28
Picasso, com tato e odor
Os deficientes visuais espanhóis foram premiados com um
livro que permite acompanhar as artes plásticas, e com o adicional de sentir
aromas e texturas. Foi lançado “La essência de Picasso”, projeto de Remedios
Rabadán, consultora de comércio internacional e amante das artes, que resolveu
dar cheiro e textura a algumas obras do artista espanhol.
Depois de um ano de pesquisa, o livro deve ser
comercializado até dezembro, reunindo 12 peças de Picasso tratadas com uma técnica
que permite relevo nas linhas dos desenhos, para que os “leitores” possam
seguir com os dedos e não se perderem e ainda ficarem com os dedos impregnados
de odo, cada um para cada quadro.
“Criamos um código que relaciona os aromas naturais com as
cores”, disse Rabadá. Os perfumes são microencapsulados de forma a aflorarem ao
toque. O projeto ainda inclui já em preparação as reproduções de quadros de Pop
Arte e de Amedeo Modigliani.
Estudo sobre violência
Da historiadora
e constitucionalista americana, Joyce Lee Malcolm, finalmente ganha sua versão
em português o livro “Violência e Armas: a experiência inglesa”, da VIDE
Editorial. O provocante estudo histórico sobre a sociedade inglesa, desde a
Idade Média até o século XX, analisa mudanças de atitudes frente à
criminalidade e suas punições, o impacto da guerra, variações econômicas e também
as modificações nos códigos penais. Malcolm destaca o nível de crimes à mão
armada na Inglaterra antes das modernas leis restritivas ao porte de armas de
fogo, as limitações por elas impostas, e se essas medidas foram ou não
bem-sucedidas na redução dos índices criminais.
A apresentação,
feita de forma concisa e objetiva, é de Bene Barbosa, presidente do Movimento
Viva Brasil. Reconhecido como um dos maiores especialistas brasileiros no
assunto, possui mais de 20 anos de estudos sobre a questão do desarmamento no
Brasil e no mundo, teve mais de uma centena de artigos publicados, além de ministrar
palestras pelo país sobre segurança pública e a legislação sobre armas de fogo.
quarta-feira, agosto 27
Ler é atividade
Ler implica um esforço: de atenção, de inteligência, de memória. Ler é uma atividade e a nossa cultura é quase inteiramente passiva. A televisão, o DVD, a música popular ou a conversa de computador não exigem nada, deixam a pessoa num repouso imperturbado e bovino
Vasco Valente
Cortázar, biografia íntima e pessoal
O 26 de agosto marcou os
100 anos de nascimento de um dos escritores mais originais e célebres de seu
tempo e grande inovador da literatura sul-americana, o argentino Julio
Cortázar. Para comemorar a data, a editora DSOP lançou, na 23ª Bienal
Internacional do Livro de São Paulo, o livro “Cortázar: notas para uma
biografia”, do também argentino e Mario Goloboff, com tradução de José Rubens
Siqueira.
Por ter sido amigo de Cortázar, o biógrafo Mario Goloboff poderia falar com
tamanha propriedade de sua vida, numa biografia de caráter tão íntimo e
pessoal. O livro aborda temas muito diversos da vida e obra de Cortázar que
proporcionam aos leitores uma maneira de chegar mais perto de um dos escritores
mais complexos e de maior sensibilidade literária de sua geração.
Nas palavras do tradutor, “muito além das referências biográficas, Mario
Goloboff trabalhou nesta obra para construir um arcabouço de informações até
então pouco abordadas sobre a vida de Julio Cotázar. No conjunto dos capítulos
do livro, pode-se perceber que são abordadas notas biográficas de diferentes
níveis e aspectos, pincelando as ações políticas, sociais e literárias desse
grande gênio do século XX. A partir de uma ampla pesquisa, o livro traz à luz
aspectos menos conhecidos desse autor magistral”.
Um desses aspectos a que se refere Siqueira é o mergulho de Cortázar na vivência política, movido pela compaixão pela humanidade. Tal humanidade é sintetizada numa epígrafe de Juan Rulfo, na introdução do livro: “Tem um coração tão grande que Deus precisou fabricar um corpo também tão grande para acomodar esse seu coração”.
Um desses aspectos a que se refere Siqueira é o mergulho de Cortázar na vivência política, movido pela compaixão pela humanidade. Tal humanidade é sintetizada numa epígrafe de Juan Rulfo, na introdução do livro: “Tem um coração tão grande que Deus precisou fabricar um corpo também tão grande para acomodar esse seu coração”.
terça-feira, agosto 26
É hora de uma nova Bienal
O modelo de Bienal, eternamente criticado pelos profissionais do livro, já deu
Frequento a Bienal de São Paulo desde os anos 1970. No
começo, apenas como mais um dentre tantos visitantes. De 1996 para cá, como
profissional do livro. Desta vez, no entanto, ao me deparar com o mesmo
ambiente de anos, que é alvo de críticas – minhas e de muitos outros – também
há tempos, veio-me a sensação de que está mais do que na hora de mudar. Que
algo precisa ser feito a respeito, e rápido.
As fotos que apresento junto a esse artigo são
amostras da atmosfera de improviso e total falta de profissionalismo que rege a
Bienal de São Paulo. E do porquê de, mais uma vez, a Editora Évora, com seus
dois selos (Évora e Generale) e da qual sou presidente e fundador, não ter
estande no evento. Optamos por colocar nosso catálogo em estandes parceiros. A
Évora e muitas outras editoras, inclusive grandes, como a Objetiva. É a via
mais fácil, que extingue o risco e coloca algum dinheiro no bolso, mas que, por
outro lado, nos mostra acomodados, satisfeitos com o pouco que temos e a léguas
de aproveitarmos adequadamente as oportunidades latentes em um cenário em
mutação. Talvez meu atual excesso de peso, mais do que descuido com a saúde,
seja um símbolo em âmbito pessoal dessa acomodação. Vou pensar mais a
respeito... Distribuidores?! Alguém os viu por aí? Estão quase em extinção no
evento. A maioria só apareceu como visitante, de passagem, na sexta-feira.
O mundo encantado de Richard Doyle
Richard Doyle (1824-1883) foi um dos mais importantes
ilustradores da era vitoriana. Famoso por trabalhos com elfos, fadas e gnomos.
Um parque para o 'Pequeno Príncipe'
“Todos adultos foram primeiro crianças (apesar de
poucos deles recordarem)”, escreveu Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). A
célebre frase do livro “O Pequeno Príncipe”, de 1943, dá as boas vindas aos
visitantes em Ungersheim, cidade de pouco mais de 2 mil habitantes, na Alsácia,
que descobrem o novo parque temático consagrado à fábula do viajante vindo do
longínquo Asteroide B-612, que observa perplexo o mundo dos adultos.
Inaugurado em julho, o Parque do Pequeno Príncipe
ocupa 24 hectares perto da fronteira entre França e Alemanha. Considerado o
“primeiro parque aéreo no mundo”, o centro de diversão ao ar livre tem como
propostas reviver a viagem do Pequeno Príncipe, de planeta em planeta, assim
como seus encontros com personagens insólitos, através de 30 atrações que
respeitam a obra do escritor.
Olivier d’Agay, diretor da fundação que controla o
legado de Saint-Exupéry e sobrinho do escritor, disse que para se aproximar do
relato poético da obra os gestores do parque instalaram dois imensos globos
aerostáticos, estilo Montgolfier, que representam dois dos planetas visitados
pelo personagem, permitindo a adultos e crianças subir a 150 metros e
contemplar todo o parque e a paisagem circundante. A oferta aérea se completa
com a atração de cadeiras voadoras e um aerobar, onde os visitantes podem se
refrescar a 35 metros de altura, sentados e com os pés no vazio.
O parque ainda oferece atrações como raposas e
ovelhas, uma serpente-tobogã, uma granja de mariposas, um labirinto vegetal, um
jardim de rosas, um carrossel com motivos espaciais e um planetário onde se responde
a um quis sobre astronomia. Ainda há tirolesa, camas elásticas, um cinema em
3-D, uma exposição ao padre invento do balão e até um autêntico biplano Antonov
2 dos anos 1940.
segunda-feira, agosto 25
Marcador digital pra livro impresso
Redes sociais e comunicadores instantâneos juntaram-se às
inúmeras tarefas cotidianas das pessoas, roubando o espaço de uma atividade
saudável e prazerosa para a mente: a leitura. Na campanha para uma editora, em
vez de um vilão que impede o leitor de encarar os últimos capítulos do livro, o
digital atua como um aliado. Assim foi eleito o case de julho pelo IAB Brasil o
“Tweet For Read”, criado pela Mood para a editora Penguin, que emite alertas
com frases literárias para incentivar o hábito da leitura
O “Tuíte para Ler”, em tradução livre, consiste em marcador
de página que emite alerta no Twitter quando a pessoa passa um tempo sem ler. A
ferramenta possui um sensor de luz e um timer que é ativado no escuro. Se o
título não for aberto durante uma semana, ou em um período previamente
programado, um nano computador com wi-fi localizado no dispositivo dispara um
tuíte para o perfil do leitor com uma frase do autor que está sendo
lido. A ação partiu de uma pesquisa da Fundação Pró-Livro e do Ibope Inteligência,
divulgada no início do ano, cujos dados apontam que a queda do hábito de
leitura deve-se ao fato de que as pessoas preferem ver entretenimento na
televisão e na internet.
Empate de 12x12
Numa única jogada, a
editora DSOP traz para o seu time de autores 12 dos mais importantes nomes da
literatura infantil brasileira, em deliciosos textos que se somam aos traços de
12 dos mais interessantes ilustradores alemães contemporâneos em “Brasil 12 ×
12 Alemanha”, organizado por Hedi Gnädinger, com apoio cultural do Instituto
Goethe. A obra será apresentada na próxima semana no estande da Editora na 23ª
Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
O livro é a realização de um projeto original e inovador, cuja concepção
começou pelas ilustrações – o inverso do que costuma ocorrer no processo de
criação de um livro, em que normalmente o texto vem primeiro. Foi Hedi
Gnädinger a responsável por selecionar os renomados artistas alemães para criar
cenas de alguma forma relacionadas a futebol. São eles: Stefanie Harjes, Lilli
L’arronge, Helme Heine, Manuela Olten, Moni Port, Matze Doebele, Atak, Anke
Kuhl, Ole Könnecke, Joëlle Tourlonias, Wolf Erlbruch e Philip Waechter.
Inspirados nas ilustrações, os 12 autores brasileiros foram então “convocados”
a escrever sobre as mais diversas e inusitadas situações envolvendo o esporte
que é paixão nacional – o menino ansioso pelo jogo de sua vida, o time mais
maluco do mundo, o futebol do ponto de vista de um cachorro, entre muitas
outras. E encararam com primor o desafio Angela-Lago, Lalau, Heloisa Prieto,
Leo Cunha, Márcio Vassallo, Júlio Emílio Braz, Marco Haurélio, Daniel
Munduruku, José Santos, Selma Maria, Mary França e Ricardo Azevedo. Em cada uma
das breves histórias, o leitor se diverte e se emociona descobrindo como os
trechos do texto dialogam com detalhes da ilustração – ou com o conjunto da
cena.
domingo, agosto 24
No país dos livros
O ilustrador alemão Quint Buchholz reuniu 26 peças,
relacionadas ao livro, num livro que se parece uma joia para se ver e rever
O Livro da Solidão
Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Cecília Meireles, crônica publicada no jornal Folha da Manhã(SP), em 11 de julho de 1948
sábado, agosto 23
Um livro, um filme
Ratos e homens
Algumas milhas ao sul de Soledad, o rio Salinas desce bem
junto do flanco da colina e corre profundo e verde. A água é também morna,
porque antes de chegar ao estreito poço ela desliza cintilando ao sol por sobre
as areias amarelas. De um lado do rio as douradas encostas da colina
sobem numa curva até as montanhas Gabilan, fortes e rochosas, mas do lado do
vale a água está orlada de árvores: salgueiros frescos e verdes a cada Primavera,
cujas folhas inferiores retêm nas suas intersecções o cisco das enchentes de
inverno; sicômoros de folhas e galhos dum branco mosqueado que se alongam
e arqueiam sobre a água parada. Na margem arenosa, sob as árvores, as folhas
formam um tapete tão espesso e seco que a fuga dum lagarto por entre elas
provoca longa crepitação. Ao anoitecer os coelhos saem do mato e vêm sentar-se
na areia, e os baixios úmidos se cobrem das pegadas noturnas dos coatis, dos
cães das fazendas e dos vestígios das patas bipartidas dos cervos que chegam
para beber no escuro.
Nova
versão, de 1992, o filme tem direção
de Gary Sinise, estrelado por John
Malkovich
Rio retoma 'Livros nas Praças'
Com um acervo de 4 mil títulos, o projeto “Livros nas Praças”,
em sua terceira edição, deve na 20 mil
pessoas, até dia 19 de dezembro, quando 20 praças de comunidades carentes de
bibliotecas públicas no Rio vão receber a visita dos coletivos transformados em
salas de leitura, com sofás, ar condicionado e até água gelada, além de ser
adaptado para receber pessoas com necessidades especiais e idosos com
dificuldade de locomoção.
Os livros podem ser levados para casa ou lidos dentro do próprio ônibus. O público pode ainda participar de oficinas e ouvir histórias. O acervo conta com obras de temas infantis, juvenis e adultos. Cerca de 80% são de autores brasileiros, como Ana Maria Machado, Thalita Rebouças, Paulo Coelho e Monteiro Lobato. O projeto inclui ainda mais de 60 livros em braile, alguns com ilustração e áudio para crianças.
sexta-feira, agosto 22
Leitura e conforto na praia
Tributo a Leminski
Se estivesse vivo, Paulo
Leminski (1944-1989) completaria 70 anos no domingo. E há exatos 25
anos de sua morte, Leminski continua mais vivo do que nunca. Para relembrar sua
história, o escritor Domingos Pellegrini, amigo próximo do poeta, reuniu
diálogos e memórias de seu amigo meio hippie, meio beat, na biografia “Minhas
lembranças de Leminski”, lançada este ano pela Geração Editorial. Em
sua biografia-memória, Pellegrini apresenta um Leminski amigo, poeta libertário
assombrosamente inteligente, com quem se encontrava com frequência em Curitiba,
São Paulo e Florianópolis durante as décadas de 1960 e 1970. “Não é uma
biografia, é uma trança de lembranças e adjacências, trançada já desde os
pontos de vista dos narradores: eu e Leminski”, afirma Pellegrini.
Confira texto inédito escrito por Pellegrini em ocasião aos 70 anos de nascimento de Leminski.
Vida é estilingue questica
até nos lançar além
Quem vai não sabe pra
onde
como não sabe quem fica
mas isto é certo porém:
como não sabe quem fica
mas isto é certo porém:
continua vivo quem
mesmo se matando tanto
fez da vida uma fonte
mesmo se matando tanto
fez da vida uma fonte
Carta aos presidenciáveis
Pela primeira vez, Abeu, ABDL, ABDR, Abrelivros, ANL, CBL,
Libre e SNEL conseguiram se unir em um projeto comum, que apresentarão nesta
sexta-feira em São Paulo. Uma carta aberta aos presidenciáveis deverá colocar
em pauta reinvindicações como a criação de uma Organização Social (OS) para
instrumentalização do PNLL; regulamentação da Lei do Livro, Criação de leis que
institucionalize o Vale-Livro, que incentive pequenos livreiros e que
regulamente as políticas de preços do livro no país (Lei do Preço Único).
A carta recomenda ainda a atualização do conceito de livro
previsto no PL 4534/2012, que quer igualar os e-books aos livros, garantindo a
imunidade tributária aos livros digitais e a aprovação da Lei das Biografias.
Ao todo, são 15 tópicos que serão apresentados aos candidatos.
quinta-feira, agosto 21
Assim começa o livro ...
Voo noturno
Na tarde dourada, já as colinas, sob o avião, iam cavando o
seu rastro de sombra. Os campos tornavam-se luminosos. De uma luminosidade
perene: naquelas regiões, os campos não cessam de espalhar o seu ouro, assim
como no inverno não findam a sua apoteose de neve.
E o piloto Fabien, conduzindo, do extremo sul para Buenos
Aires, o correio da Patagônia, reconhecia a aproximação da noite pelos mesmos
sinais das águas de um porto: aquela calma, as pregas tênues esboçadas por
nuvens tranquilas. Entreva numa enseada vasta e feliz.
Perante tão profunda calma, Fabien poderia também julgar-se
em longo passeio, como um pastor. Os pastores da Patagônia vão, sem pressa, de
um rebanho a outro: ele ia de uma cidade a outra, era o pastor das pequenas
cidades. De duas em duas horas encontrava uma. Aplacando a sede à beira de um
rio ou ruminando no meio do seu campo.
Bom hábito
"Uma criança que cresce com livros na mão mesmo antes de saber ler, é com certeza um adulto que terá o bom e edificante hábito da leitura"
Imagem: decifra-me ou te devoro
“Devorar
imagens” ou “ser devorado por elas” não são possibilidades alternativas, mas
simultâneas. É um estado de questão, descrição de nossa realidade cotidiana,
condição inexorável da qual os humanos na era digital não podem escapar.
Com base
nessas afirmativas, Norval Baitello, traz, pela Paulus, a obra "A era da
Iconofagia – Reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura". O autor
apresenta o que ele mesmo denominou “a era da iconofagia”, título que destaca
os simulacros que perpassam nossa vida em uma sociedade mediatizada e
globalizada.
O livro,
dividido em duas partes, no primeiro momento fala sobre a comunicação, a
violência e seus dialetos. Depois, aborda a comunicação, seus trânsitos e
transformações. Trata das relações entre corpos e imagens: ora as imagens se
oferecem como alimento para os corpos, ora os corpos perdem sua identidade e se
deixam devorar pelas imagens.
quarta-feira, agosto 20
Verdade
“As pessoas da Amazon não se importam realmente com o que você quer como consumidor.”Jason Merkoski, primeiro responsável por disseminar novas tendências da Amazon e um dos membros da equipe que desenvolveu o primeiro leitor de livros digitais Kindle, lançado em 2007.
O que fazer além de reclamar
A 24ª Convenção Nacional de Livrarias, que se realiza em São
Paulo, pretende, segundo Augusto Mariotto Kater, vice-presidente da Associação
Nacional de Livrarias, entidade que organiza a convenção, a ideia é ampliar as
discussões em torno de “o que a gente pode fazer além de reclamar”. Pesquisa
realizada pela entidade mostra que a média de livrarias por habitantes ainda é
baixa no Brasil em relação ao recomendado pela Unesco de uma livraria para cada
10 mil habitantes. No Brasil, há uma livraria para cada 64.954 pessoas.
Segundo a ANL, o último levantamento
do segmento feito junto às casas
associadas à entidade em 2011 apontou que o crescimento das livrarias não
acompanhou a inflação e o Diagnóstico
ANL do Setor Livreiro de 2012 registrou
um encolhimento no faturamento de livrarias de pequeno e médio portes.
Ruffato estreia reinventando clássico
Luiz Ruffato reinventa a conhecida história da princesa que beija o sapo para
que ele se transforme num príncipe em seu mais novo livro, o primeiro voltado
ao público infantojuvenil. “Era uma vez um reino distante...”. É com essas familiares palavras que começa “A
história verdadeira do sapo Luiz”, com ilustrações de Ionit Zilberman, que será
lançada pela editora DSOP, na 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
A nova obra do autor, que marca sua estreia no universo das crianças e jovens, mistura diversos elementos característicos de contos de fadas, como um rei justo, sábio e generoso, irmãs invejosas e uma maldição que se contrapõem à bondade e à beleza da donzela. Na versão de Ruffato, a protagonista, princesa Juliana, é inteligente, sabe o que quer e não aceita nenhum dos pretendentes cheios de títulos e qualidades que seu pai lhe apresenta. Ela espera pelo amor, que acaba encontrando no sapo Luiz.
A busca pelo grande amor, entretanto, não é tão fácil. Só
depois de beijar centenas de sapos e quase desistir é que ela se apaixona –
qualquer semelhança, metafórica, com a vida real não é coincidência. “Muitas
vezes, a boa fortuna se encontra onde menos se suspeita”, diz sua aia.A nova obra do autor, que marca sua estreia no universo das crianças e jovens, mistura diversos elementos característicos de contos de fadas, como um rei justo, sábio e generoso, irmãs invejosas e uma maldição que se contrapõem à bondade e à beleza da donzela. Na versão de Ruffato, a protagonista, princesa Juliana, é inteligente, sabe o que quer e não aceita nenhum dos pretendentes cheios de títulos e qualidades que seu pai lhe apresenta. Ela espera pelo amor, que acaba encontrando no sapo Luiz.
terça-feira, agosto 19
Lendo no vizinho
'Cápsula' de leitura
No bairro
Nolita, em Nova Iorque, desde 2013, a unidade de prateleiras ao ar livre
funciona também como uma biblioteca totalmente gratuita. O design inteligente
da biblioteca protege os livros dos elementos como chuva e vento, permitindo
que as pessoas fiquem sob uma tampa para ver o que está disponível. A
biblioteca foi projetada pela empresa de design venezuelana Stereotank como
parte de uma colaboração com a Architectural League de Nova Iorque e o Pen
Mundial Voices Festival, que selecionou 10 designers para construir bibliotecas
livres em miniatura no centro de Manhattan.
SC prepara plano do livro e da leitura
Biblioteca Pública Municipal Olavo Bilac, em Tubarão |
Santa
Catarina espera reverter os índices de leitura no estado com um Plano Estadual
do Livro e da Leitura, que começou a ser elaborado no ano passado por
iniciativa do Forum Catarinense do Livro e da Leitura. O projeto foi lançado
este ano on line para novas propostas e segundo o sociólogo José Paulo
Teixeira, a minuta estará concluída até o final do ano. Em 2015, será entregue
aos conselhos de Educaçlão e de Cultura para formalização com metas para os
próximos dez anos.
Santa
Catarina possui 289 bibliotecas públicas em 295 municípios com a média de 4,5
bibliotecas para cada 100 mil habitantes.
segunda-feira, agosto 18
Feira ganha apoio inédito
Feira gaúcha é a mais antiga do país |
A
tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, que fará sua 60ª edição em 2014,
foi um dos 21 projetos culturais escolhidos pelo BNDES para serem patrocinados
entre setembro de 2014 e fevereiro de 2015. No Estado, a Mostra Internacional
de Música das Missões também foi selecionada.
A Feira do
Livro é um dos cinco projetos de literatura selecionados, além desse projeto,
foram selecionados, no ramo editorial: a IX Bienal do Livro do Ceará, o Fórum
das Letras de Ouro Preto (MG), a FLUPP – Festa Literária das Periferias, no Rio
de Janeiro, e a Primavera dos Livros, em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador.
Livro nunca acaba
Um romance nunca está acabado pelo simples fato de estar escrito e publicado. Quando chega às mãos, só metade do caminho está percorrido. Quando o leitor projeta num romance os seus sonhos, a sua vida, os seus outros livros, os seus ódios, os seus amores, percorre o resto da estrada.
Arturo Pérez-Reverte
'Geladeirotecas" para troca de livros
Iniciativa quer estimular leitura nos pontos de ônibus de Santa
Maria
|
Apanhar um livro grátis dentro de uma geladeira e depois
embarcar em um ônibus para lê-lo. Por mais estranho e surreal que possa
parecer, a proposta virou realidade em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
As “geladeirotecas”, com capacidade de
comportar 50 volumes cada, foram criadas pelos alunos do curso de publicidade e
propaganda do Centro Universitário Franciscano e estão em dois pontos de ônibus
da cidade como parte de um projeto que tenta estimular o hábito da leitura
entre a população.
Segundo os estudantes, o dono de sebo no município, parceiro
na iniciativa, doou mais de 500 livros para "rechear" as geladeiras,
coloridas por grafiteiros para chamar ainda mais atenção de quem passa pelos
locais. As publicações podem ser retiradas pela população gratuitamente. A
meta, porém, é estimular usuários do transporte público a trocar os livros, sem
mediações.
domingo, agosto 17
Surfe, areia e biblioteca...
Herman Kompernas construiu uma biblioteca na praia búlgara do resort Bulgarian Black Sea, em Albena, e a abasteceu com mais de 2.500 livros em 10 idiomas. Os hóspedes são convidados a pegar os livros gratuitamente e deixar outros ali para que as demais pessoas possam ler.
Receita de domingo
Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz
cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido
incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que
se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota
madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu
canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à
terra só ao som da trombeta do arcanjo.
Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas, frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz domingo.
Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.
Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilingüida de toda a redondeza.
Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.
Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em forma de pingüim, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais as crianças.
No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.
A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.
O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.
Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: “never more”.
Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.
Paulo Mendes Campos, em "O Cego de Ipanema"
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