segunda-feira, julho 6

A Inglaterra mística de Kazuo Ishiguro

Kazuo diz que escreveu  o novo livro influenciado
 por Homero, filmes de samurai e westerns
Depois de passar por vários gêneros em seus sete romances, Kazuo Ishiguro entra agora numa seara popular, especialmente entre os mais jovens. Talvez por isso o autor, nascido no Japão há 60 anos e radicado na Inglaterra desde os 5, tenha demorado uma década para completar a fantasia medieval “O gigante enterrado”, que a Companhia das Letras lança este mês no Brasil, depois de sua publicação na Europa e Estados Unidos.

De sua casa em Londres, Ishiguro conta que carrega um caderno de anotações, onde escreve ideias que porventura possam lhe ocorrer. Foi em um desses que ele anotou há muito tempo a premissa de seu novo romance: alguém ou alguma coisa causa perda de memória a uma sociedade ou à população de um país, e as pessoas têm de decidir se querem destruir aquilo ou aquela pessoa que lhes causa esse mal ou se querem permanecer sem as lembranças que perderam.

— Eles percebem que se as memórias voltarem coisas terríveis podem acontecer — disse ele, em entrevista exclusiva ao GLOBO. — Essa é a história. Pensei nisso em diversas formas, até como ficção científica futurista, numa perda memória causada pelos telefones celulares.

O autor de “Os resíduos do dia”, que lhe valeu o Man Booker Prize de 1989 e foi adaptado para o cinema com o nome de “Vestígios do dia” (1993), e de “Não me abandone jamais”, finalista em 2005 do mesmo prêmio, diz que o gênero não importa quando prepara um novo romance:

— Como escritor, eu sinto muita liberdade, lanço mão do que estiver ao meu alcance.

Ishiguro se compara a um cineasta em busca de locações adequadas para contar a história que quer. Antes de optar por uma Inglaterra mítica, situada por volta do século XV e habitada por fadas, ogros, gigantes e dragões, pensou em várias outras opções.

— Essa história pode ser contada em uma realidade alternativa, como em Ruanda. Outro país em que pensei foi a França, na época da ocupação nazista. O Japão também tem um período complicado durante a Segunda Guerra Mundial. Até a Bósnia, no período da Guerra dos Bálcãs, me passou pela cabeça — explicou ele.

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O gigante enterrado

Você teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilômetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas. A maior parte das estradas deixadas pelos romanos já teria àquela altura se fragmentado ou ficado coberta de vegeta- ção, muitas delas desaparecendo em meio ao mato. Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. As pessoas que moravam ali perto — e pode-se imaginar o grau de desespero que as teria levado a se estabelecer num lugar tão soturno — teriam razão de sobra para temer essas criaturas, cuja respiração ofegante se fazia ouvir muito antes de seus corpos deformados emergirem da neblina. Mas esses monstros não causavam espanto. As pessoas da época os teriam encarado como perigos cotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que 10 a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças. De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando — talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios —, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas em sua direção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades

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